Com gargalo de testes para coronavírus, Brasil vê só a ponta do iceberg com seus 2.201 casos e 46 mortes
Testagem restrita a pacientes mais graves e demora nos resultados diminuem a precisão da curva epidêmica do país. Governo afirma que de cada 100 pacientes com a doença, 14 são identificados
A limitação na realização de testes para confirmar os casos de coronavírus no Brasil dificulta a avaliação do quadro real da evolução da doença no país, que oficialmente tem 2.201 casos confirmados com 46 mortes. A quantidade de testes disponíveis atualmente é insuficiente para o tamanho da população brasileira, e o país precisou escolher quais casos priorizaria para usá-los. Se num primeiro momento pacientes com sintomas mais brandos de gripe conseguiam ser testados com mais facilidade, agora a recomendação tanto na rede pública quanto na privada é testar apenas os casos mais graves. Mesmo assim, a demanda aumentou tanto nas últimas semanas que o tempo entre a coleta e o resultado do teste também aumentou. Há relatos de pessoas que esperaram até sete dias para saber que tinham ou não a doença, um processo que, tecnicamente, demoraria apenas quatro a dez horas de processamento.
Com esses gargalos, os dados conhecidos no Brasil são apenas a ponta de um iceberg provavelmente muito maior de infectados, que podem transmitir o vírus mesmo sem apresentar sintomas. E desenham um retrato epidemiológico constantemente atrasado, já que a demora na testagem provoca um delay na notificação dos casos e impacta diretamente as estatísticas com as quais os Governos trabalham para conter a disseminação do coronavírus. A experiência internacional mostra que países que adotaram a testagem em massa na população, como a Coreia do Sul, conseguiram controlar melhor a epidemia. Após uma indicação de que os países realizassem testes em massa pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Governo Federal afirmou, na semana passada, que não o país não tinha condições de realizar testes em massa. Mas nesta semana anunciou medidas no sentido de ampliar essa capacidade de testagem para uma parcela maior da população.
Nos últimos dias, a Anvisa aprovou pouco mais de uma dezena de novos tipos de testes para diagnosticar a Covid-19, e o Ministério da Saúde anunciou, no domingo (22), a compra de 10 milhões de testes rápidos de um fornecedor chinês. Nesta terça (24) disse que ampliará para 22,9 milhões o número de testes disponíveis. O volume de testes adquiridos é referente a compras diretas, doações e parcerias público-privadas. Parte desses testes, 14,9 milhões, servirá para testar, além de doentes internados, pessoas com sintomas leves, por amostragem —é o tipo de teste mais complexo, que necessita de laboratórios para a análise; o restante é o chamado teste rápido, que será utilizado para a triagem em alguns pronto-socorros e em profissionais de segurança pública e da saúde. “Orientação da OMS a gente segue. E está seguindo dessa maneira”, afirmou nesta terça-feira o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Wanderson Oliveira.
O problema é que as soluções apresentadas até agora não são capazes de abraçar a necessidade de um país com 210 milhões de habitantes. Além disso, não há previsão de quando esse reforço na testagem estará disponível nas unidades de saúde. De um lado, há uma dificuldade de pronta-entrega num cenário de esgotamento de insumos no mundo. O Governo, por exemplo, ainda negocia com vários fornecedores. De outro, é preciso validar esses testes no país e averiguar sua confiabilidade antes que sejam aplicados em larga escala, segundo defendem infectologistas.
Ferramenta de análise
O teste para diagnosticar o coronavírus não traz significativas mudanças para o tratamento individual do paciente com a Covid-19, já que a doença é nova e ainda não existem medicamentos específicos para combatê-la. Um paciente com sintomas gripais brandos deve ser tratado em casa, sob isolamento, para evitar que contamine outras pessoas. A testagem em massa, porém, é importante porque produz os dados necessários para observar como a doença avança no país, a taxa real de letalidade, as características dos grupos mais afetados e, consequentemente, as medidas e diretrizes a serem adotadas pelas autoridades para conter a disseminação do vírus e evitar que muita gente fique doente ao mesmo tempo, colapsando o sistema de saúde.
“A partir do momento que testamos só os internados, visualizamos só a ponta do iceberg. A testagem em ampla escala daria uma ideia melhor de como promover medidas de isolamento mais efetivas (para desacelerar o contágio). Infelizmente, no Brasil, não dispomos dessa capacidade técnica hoje”, afirma a infectologista Carol Lazari, médica-chefe do setor de biologia molecular do Hospital das Clínicas.
Os testes realizados atualmente no Brasil são o chamado RT-PCR, um teste mais complexo e feito em laboratório. Em geral, as unidades de saúde colhem amostra respiratória do paciente para analisar se há presença genética do coronavírus. Os hospitais maiores já têm estrutura de laboratório para fazer isso internamente (como por exemplo o privado Albert Einstein, em São Paulo), mas os menores ainda precisam enviá-las aos laboratórios de referência do Estado.
A demora para se ter o resultado ocorre ao longo da cadeia de testagem: na coleta do material nos hospitais, que já enfrentam sobrecarga de pacientes, até a fila de processamento do teste, que exige mão de obra qualificada e análise mais complexa. Segundo o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, o país tem a capacidade diária instalada de processar 6.700 testes por dia, mas essa estrutura é dividida com as análises de outras doenças, como dengue e HIV, por exemplo. “Para enfrentarmos o pico da epidemia, temos que chegar a uma escala de 30 a 50 mil testes por dia”, diz Oliveira. O
Governo tenta, no momento, adquirir mais máquinas, cada uma delas capaz de processar 1.000 testes por dia. “O que demora é colher o material, juntar as amostras do dia, transportar tudo até o Adolf Lutz (um dos laboratórios de referência). As unidades mandam e aí entra na fila do Estado pra processar. Para os hospitais menores, essa é a rotina. Os maiores já conseguem eles mesmos fazerem os testes, e isso agiliza”, explica o médico Fernando Belíssimo, do Hospital das Clínicas de Campinas.
O efeito colateral disso nas estatísticas é que os Governos dispõem de dados parciais e até atrasados que podem estar mascarando o tamanho do problema. “A lentidão dos testes impacta porque estamos sempre vendo uma fotografia do passado, não em tempo real. Isso dificulta analisar o comportamento da epidemia. Tem gente morrendo antes de ser diagnosticada, o que pode levar a uma subestimação da epidemia”, afirma Fernando Belíssimo. No Rio de Janeiro, por exemplo, o tempo médio de testagem tem sido de até seis dias, segundo admite o Governo. O Estado contabiliza seis mortes por coronavírus, mas até esta terça-feira (24) havia 10 óbitos em investigação.
O médico do Hospital das Clínicas de Campinas pondera, porém, que a discussão da testagem não é fácil. Primeiro porque há um esgotamento de fornecimento em escala mundial e depois porque seguem caros. “O Governo vem tentando otimizar sua capacidade de testagem. Não somos uma Suíça e não sei se temos capacidade de testagem em massa”, admite o médico. E emenda: “Do ponto de vista de controle da doença, desde que se respeite de verdade, a quarentena deve compensar o que perdemos sem a testagem em massa”.
Seja como for, essas limitações impedem mapear com maior precisão a evolução da epidemia no país e avaliar os impactos das medidas de mitigação já adotadas. “Fica difícil medir a altura dessa curva. Se só estamos testando os graves, isso põe em xeque o tamanho do problema que temos. Precisamos de um retrato mais fiel pra saber o que está por vir”, afirma Carol Lazari. O próprio ministério admite que os dados são menores do que o retrato real. “De cada 100 pacientes com coronavírus, conseguimos identificar 14. Ou seja, 86% das pessoas que têm não são identificadas”, afirma João Gabbardo dos Reis, secretário-executivo no Ministério da Saúde. Ele pondera, entretanto, que essa é a média vista em outros países atingidos também. Por essa conta, o país teria hoje, não os 2.201 casos divulgados pelo Ministério nesta terça, mas algo em torno de 15.721 casos.
O Brasil agora trabalha para garantir testes mais rápidos. O PCR é mais complexo e preciso, porém existem outras opções, como por exemplo testes que, em vez de identificar a carga genética no material respiratório, observam a presença de anticorpos no sangue no paciente. Neles, há uma sensibilidade baixa nos primeiros dias da doença, então há uma janela relevante sobre sua precisão. Os 10 milhões de testes rápidos anunciados pelo Governo incluem os desse tipo. “Eles devem ser úteis, mas precisam ser avaliados e validados no Brasil”, explica a infectologista. É preciso observar, com análise feita dentro de resultados já conhecidos no Brasil, o quanto esses testes conseguem detectar a doença e o quanto não dá falso positivo (no vocabulário médico, a sensibilidade e a especificidade dos testes, respectivamente). Com a força tarefa do Governo e de pesquisadores, Lazari acredita que esse procedimento não seria muito demorado.
Também há os testes licenciados recentemente pela Anvisa que poderão auxiliar o Brasil, alguns tão simples quanto um teste de gravidez de farmácia. A questão é que há fornecedores de testes rápidos que só conseguem entregar os testes no final de abril e início de maio, por exemplo. “Todos eles precisam passar por uma avaliação técnica antes da distribuição porque, sem saber a confiabilidade exata, poderiam mais confundir do que ajudar”, alerta Lazari. Mesmo nos testes PCR, que são mais confiáveis, há relatos de resultados que dão falso negativo. A questão é nova, então daí a necessidade de cuidado com os testes que serão distribuídos em larga escala. De todo jeito, e conseguirmos ampliar essa capacidade de diagnóstico, desenhamos uma evolução um pouco mais precisa da infecção no país. O Governo diz trabalhar com a ideia de que o Brasil seja um dos países com mais casos confirmados porque pretende ampliar significativamente essa capacidade de testes. E assim passe a ter também uma taxa de letalidade mais próxima da realidade.
Número de UTIs, na comparação
Sobre a preparação de UTIs para atender os pacientes mais graves com a Covid-19, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo, afirma que a estrutura de UTI brasileira está preparada para receber a demanda gerada pelo coronavírus nas próximas semanas. Segundo ele, o Brasil tem uma taxa de 2,62 leitos do tipo por 10.000 habitantes. O número é bem superior ao de países como Itália (0,83) e França (1,05), sempre segundo dados do Ministério da Saúde. “Muitas vezes as pessoas não reconhecem que temos um sistema único de saúde robusto e preparado para situações adversas. Nosso quantitativo (de leitos de UTI) é adequado às demandas até o presente momento. Daqui para frente, teremos que fazer ajustes”, diz. Ele acrescenta que a Alemanha, o país fora da curva da Europa com a baixa letalidade por coronavírus, tem a taxa de 3 leitos de UTI por 10.000 habitantes. “O Brasil está preparado, e nós vamos ampliar muito. Vamos colocar provavelmente mais leitos do que a França tem hoje”, projeta Gabbardo, que admite dificuldades, mas diz que não deixará que o SUS seja desmoralizado ao mesmo tempo que reforça a robustez do sistema brasileiro. O Governo não responde, no entanto, qual a porcentagem dos leitos de UTI que já estão ocupados por pacientes suspeitos ou com a infecção por coronavírus confirmada.
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