Conflito escala com disputa política sobre motim de PMs no Ceará e espiral de agressões
“O hoje parece muito pior que ontem” é o ditado do momento em Brasília. Bolsonaro autoriza envio de Forças Armadas ao Estado e volta a defender isenção de culpa para militares que matarem em serviço
Na Brasília de 2020, há um ditado do momento: “o hoje parece muito pior que ontem”. E a semana que se encerra neste sábado de Carnaval faz jus ao bordão. Começou com o presidente aderindo aos ataques machistas contra uma repórter, seguiu com um ministro chamando parlamentares de chantageadores e um ex-presidente depondo sob a suspeita de infringir a lei de segurança nacional. Teve ainda um senador da oposição baleado enquanto usava um trator para investir contra um quartel com policiais militares amotinados. Tudo culminou em uma espiral de ataques entre os políticos e a decisão de enviar o Exército para debelar o motim policial. Em outros tempos, poderia se imaginar que o país estaria à beira de uma convulsão. Nos dias de hoje, contudo, a tendência é que esses fatos sejam esquecidos durante a farra carnavalesca —ou soterrados por desdobramentos ainda mais absurdos.
O clima de beligerância na política brasileira ficou bem delimitado no arroubo do senador licenciado Cid Gomes (PDT-CE), que é opositor de Bolsonaro e apoiador do governador cearense Camilo Santana (PT), chefe da polícia local. Na quarta, Cid usou uma retroescavadeira para investir contra um quartel onde policiais militares amotinados protestavam em Sobral. O senador levou dois tiros no tórax, disparados por PMs que estavam com os rostos encobertos. O ato foi definido pelo diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o sociólogo Renato Sérgio de Lima, como um “momento de insanidade coletiva”. “É preciso urgente frear a escalada de confrontos e violência”, disse.
A contenção dos ânimos, no entanto, não foi o que se viu na quarta-feira. O jornal O Povo, de Fortaleza, publicou vídeo em que policiais encapuzados cercam uma viatura numa via importante da cidade, num cenário em que a avaliação da adesão à paralisação, às vésperas do feriado, ainda era incerta. Enquanto o governador recebia lideranças parlamentares ligadas aos policiais, Ciro Gomes atacava diretamente o presidente Jair Bolsonaro por insuflar o contingente de PMs e defendia o ato de seu irmão Cid: “Não se enfrenta o fascismo com flores.”
Jair Bolsonaro, por sua vez, usou sua transmissão semanal via Facebook para comentar a decisão de enviar as Forças Armadas ao Ceará, que atuarão respaldadas por um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Bolsonaro aproveitou para voltar a defender que os militares que cometam homicídio durante as ações do tipo GLO não sejam punidos, por meio da extensão do chamado excludente de ilicitide. “É uma irresponsabilidade. Até 30 anos de cadeia nesse garoto que tem uma namorada, que tem um time de futebol, que tem uma vida social, que é um inocente. E que por estar com um fuzil, é atacado muitas vezes e reage. Vai que morre inocente, porque pode morrer inocente. De quem é a responsabilidade?”, disse, segundo registro da Folha de S. Paulo.
A democracia nunca esteve tão forte?
Nesse cenário, de rompantes de um lado e de outro, cresce o debate a sobre os perigos impostos à democracia. Algo que o Bolsonaro refuta. Na semana em que o presidente se fecha no Palácio do Planalto entre um quarteto de ministros militares, sem prévia experiência na política, ele sentenciou pelo seu Twitter: “A democracia nunca esteve tão forte”. Será?
Na última semana, o chefe do GSI, o general da reserva Augusto Heleno, foi flagrado por uma transmissão oficial na internet proferindo a seguinte frase: “Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente o tempo todo. Foda-se”. Esses “caras”, citados pelo militar, são congressistas que conseguiram se articular para garantir o controle de 30 bilhões de reais do orçamento da União por meio de emendas impositivas. Ou seja, o Governo perderia autonomia sobre essa fatia de suas despesas e seria obrigado a investir onde os deputados e senadores determinassem. As reações a essa fala foram quase instantâneas. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) chamou Heleno de “radical ideológico”. Alcolumbre afirmou “nenhum ataque à democracia será tolerado pelo Parlamento”.
Outro campo de batalha entre bolsonaristas e seus opositores também ocorre nas redes sociais, onde ainda reverberam os impropérios de cunho sexual que o presidente disparou contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo. O presidente aderiu ao discurso falso de Hans River do Rio Nascimento de que a repórter se insinuou sexualmente a ele para obter informações que pudessem comprometer Bolsonaro na campanha eleitoral de 2018. Ela escreveu uma série de reportagens que demonstravam o uso das milícias digitais e a compra de disparos de fake News por meio do WhatsApp e Nascimento foi uma de suas fontes. O resultado: os esquerdistas pediram o seu impeachment, enquanto que os radicais da direita tentam angariar apoio para promover um ato de apoio a ele, no dia 15 de março.
Na mesma toada de verdades e meias verdades, a CPI Fake News também serviu de palco para que o antigo patrão de Nascimento na empresa que disparou mensagens pró-Bolsonaro omitisse informações relevantes. O empresário Lindolfo Antônio Alves Neto, da Yacows, escondeu em um documento entregue à CPI das Fake News os nomes de dois dos três presidenciáveis (Bolsonaro e Fernando Haddad) para quem prestou serviço na campanha de 2018. Pressionado, admitiu que prestou o serviço a eles indiretamente, por meio de outras agências de comunicação. Contradizendo-se, acabou confessando que nem tudo o que era disseminado pela sua empresa era previamente analisado, ou seja, não sabia se boatos acabavam sendo disparados pelo seu sistema de envio de mensagens. Para não se incriminar, abriu mão de declarar que tudo o que dizia era verdade. E deu munição, mais uma vez, para os dois lados. Uns dizendo que Bolsonaro fora inocentado. Outros, afirmando que não era possível provar nada com o discurso falacioso de Alves Neto.
Quando o Carnaval passar
Em meio à espiral de conflitos, o Governo ultraconservador espera aproveitar o Carnaval, a festa nacional a qual não demonstra tanta simpatia, para acalmar a situação ao menos no Congresso. A oposição, no entanto, lutará para manter as polêmicas vivas nesses 12 dias de folga parlamentar e, dessa maneira, protelar ainda mais a reforma tributária e administrativa que o Executivo e parte do Legislativo querem aprovar.
Na primeira semana de março, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), ameaça colocar em votação um pedido de convocação do general Augusto Heleno. A solicitação, elaborada pela bancada do PT, é para que o ministro explique seus ataques verbais contra parlamentares. Na Câmara, Maia se deparará com a tentativa de convocação do ministro da Justiça, Sergio Moro. A oposição o acusa de usar a Polícia Federal para usos políticos, já que abriu um inquérito para investigar se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) infringiu a lei da segurança nacional ao chamar o presidente Bolsonaro de miliciano. O inquérito contra o petista acabou arquivado no mesmo dia em que ele prestou depoimento a policiais federais.