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Chile fará referendo em abril para sepultar a Constituição de Pinochet

Classe política aposta numa votação para decidir se muda a carta fundamental de 1980 e, em caso afirmativo, com que fórmula

Protestos em Valparaíso, Chile.
Protestos em Valparaíso, Chile.RODRIGO GARRIDO (REUTERS)
Rocío Montes

A política chilena decidiu formalmente, na madrugada desta sexta-feira, enterrar a Constituição da ditadura de Augusto Pinochet. Foi um acordo histórico, após semanas da maior crise política e social das últimas décadas no país. Depois de uma jornada de extrema violência na noite de terça-feira, de um apelo do presidente Sebastián Piñera por um acordo de pacificação e de duas jornadas de intensas negociações, o presidente do Senado, Jaime Quintana, informou que em abril de 2020 o país andino realizará um plebiscito para decidir se os cidadãos querem mudar a carta fundamental de 1980.

Como parece evidente que se optará por substituí-la – 8 em cada 10 chilenos manifestam essa preferência, segundo as pesquisas –, será definido paralelamente o mecanismo para isso: uma "convenção constitucional" com membros completamente novos, que funcione com funções constituintes paralelamente ao Congresso, ou uma "convenção mista" composta por 50% de parlamentares e outros 50% de delegados.

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"Somos responsáveis por muitas das injustiças, inequidades e abusos que os chilenos nos apontaram", afirmou Quintana na sede do Congresso em Santiago, cercado por dezenas de representantes de todos os setores políticos, ao apresentar o acordo pela paz e a nova Constituição. "É uma saída pacífica e democrática para a crise, que busca um novo contrato social no Chile." Em poucos minutos, o Governo já comemorava o acordo do Congresso: "Tivemos dias difíceis. Todos ouvimos, todos aprendemos. Obrigado a todos os que tornaram isso possível", disse o ministro do Interior, Gonzalo Blumel, no palácio de La Moneda.

Trata-se de um momento de refundação. Será a primeira vez na história que o Chile terá uma Carta Magna nascida da discussão democrática, porque as anteriores – as de 1833, 1925 e 1980 – foram antecedidas de uma guerra civil, ruído de sabres e um golpe de estado. Com exceção do Partido Comunista, que não participou das negociações, os políticos de todo o espectro concordaram que os representantes sejam escolhidos em outubro de 2020, junto com as eleições municipais e regionais. Contarão com um prazo de 9 a 12 meses para redigir a nova Constituição, que será escrita do zero em vez de ter como base o texto de 1980, conforme propunha o partido direitista União Democrata Independente (UDI). Empurrados pela crise que já deixou 22 mortos, os parlamentares definiram em um amplo diálogo político – inédito no passado recente – que os artigos deverão contar com o voto de dois terços dos delegados. A próxima Constituição deverá ser ratificada em um novo plebiscito, com sufrágio universal e obrigatório, e depois pelo Congresso.

Não é evidente que uma nova Constituição possa apaziguar os protestos, que eclodiram em 18 de outubro como expressão de uma boa parte da população que sente se à margem do caminho de desenvolvimento do Chile nas últimas décadas. A classe política, entretanto, aposta em entregar um sinal sólido à população, que não confia em nenhuma das instituições democráticas.

Novas manifestações

As manifestações continuaram nesta quinta-feira em diferentes cidades do país onde houve mobilizações pelo primeiro aniversário do assassinato do indígena mapuche Camilo Catrillanca por policiais da região da Araucanía, no sul do Chile. Houve vandalismo no centro de Santiago, nos arredores do Congresso, no porto de Valparaíso e em cidades como Temuco e Concepción, onde os manifestantes derrubaram uma estátua do conquistador espanhol Pedro de Valdivia.

Foram as horas de maior complexidade desde o retorno à democracia, em 1990. O Governo se encontra debilitado – o presidente tem apenas 15% de popularidade, aproximadamente – e não consegue controlar a ordem pública, enquanto enfrenta acusações de violações dos direitos humanos. Mais de 2.000 pessoas ficaram feridas nestas quatro semanas de protestos, segundo o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH). O Governo relata 1.797 policiais em militares lesionados e 16.290 indivíduos detidos, dos quais 834 permanecem em prisão preventiva. Cálculos preliminares indicam que os estragos na infraestrutura pública custarão 18,9 milhões de reais. Enquanto isso, o ministério da Fazenda calcula que até o final do ano haverá 300.000 novos desempregados no país por causa da redução da atividade econômica no último mês. O peso chileno, enquanto isso, se desvaloriza diariamente perante o dólar.

Um fato histórico

É nesse quadro que se dá o fato histórico de um acordo político para uma nova Constituição que substitua a de 1980, aprovada num plebiscito convocado por Pinochet um mês antes da votação – para a qual não havia cadastro eleitoral, e foi proibida qualquer campanha de oposição à nova Carta. Foi uma Constituição que começou a vigorar só quando teve início o primeiro Governo democrático, em 11 de março de 1990. Um dia antes da mudança de regime, a ditadura decretou uma dezena de leis orgânicas constitucionais que exigiram quórum de três quintos ou dois terços da Câmara, quando a maioria das iniciativas legais exigem quatro sétimos. Foram as chamadas leis de amarração, que impediram mudanças nos anos seguintes em aspectos essenciais nos âmbitos da educação, saúde e previdência, que atualmente os chilenos reclamam que voltem a ser bens básicos ao alcance de todos os cidadãos.

Só em 2005, no Governo do socialista Ricardo Lagos (2000-2006), foram eliminados alguns dos enclaves autoritários da carta fundamental, como a estabilidade dos comandantes das Forças Armadas e a existência dos senadores biônicos, que impediam a centro-esquerda de fazer valer no Congresso sua maioria nas urnas.

A necessidade de uma nova Constituição começou a se cristalizar nos protestos estudantis de 2011, quando ficaram expostas as dificuldades para alterar certas leis devido aos altos quóruns necessários – caso da Lei Orgânica Constitucional de Ensino (LOCE). No segundo mandato de Michelle Bachelet (2014-2018), 204.000 pessoas participaram de discussões para uma nova Constituição que foram recolhidas por um projeto apresentado ao Congresso poucos dias antes da mudança de Governo, em março de 2018. Foi sua Administração que, em março de 2017, propôs ao Parlamento uma convenção constitucional para redigir a nova carta magna.

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