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Ser jovem, negro e sobreviver ao gatilho fácil da polícia do Rio de Janeiro

Quatro jovens contam a rotina em uma favela carioca, onde a violência policial mata um em cada quatro e alarma até a ONU. “Conhecemos mais gente que morreu pela violência do que quem entrou na universidade”, diz Arthur, de 22 anos

Felipe, Fagner, James e Arthur, com a pesquisadora Camila Barros (ao centro) na favela Maré, no Rio de Janeiro.
Felipe, Fagner, James e Arthur, com a pesquisadora Camila Barros (ao centro) na favela Maré, no Rio de Janeiro.Alam Lima
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O Brasil viveu este domingo atento a seus adolescentes. Cinco milhões fizeram a prova do Enem com os olhos voltados para o ingresso na universidade. Era, sem dúvida, um dia muito importante para todos eles, mas, como quase sempre neste país tão desigual, para alguns era vital. Para os que vivem nas favelas, preparar-se para o exame –nem falemos em tirar boa nota– significa ter acesso a oportunidades que outros já dão como certas. É comprar ingressos para um futuro menos sombrio. “Todo negro de favela sentiu o impacto da violência. Quando você chega a uma certa idade, já conhece mais gente que morreu pela violência do que gente que entrou na universidade”, explica Arthur, de 22 anos.

Jovens como ele –homens, negros, adolescentes ou na faixa dos 20 anos, pobres– são frequentemente o típico alvo da crescente violência da polícia brasileira, a mais letal do mundo, depois da venezuelana. Os policiais foram responsáveis por 11 de cada 100 mortes violentas em 2018. As vítimas de confrontos com as forças de segurança aumentam velozmente. Duplicaram entre 2015 e 2018, quando totalizaram 6.220 pessoas.

Pessoas com o perfil de Arthur, trabalhadores da ONG Redes da Maré, sabem que são alvos por sua cor, seu gênero, e por morar na favela da Maré. Tanto ele como seus colegas que vão à sede desta organização, fundada pelos primeiros estudantes universitários da periferia, para contar suas experiências à visitante. Tanto faz que James, 24 anos, bibliotecário, tenha entrado na universidade aos 17 anos para estudar ciência da computação ou que Fagner, 28 anos, seja um artista plástico que dá aulas de cinema. As letras maiúsculas da camiseta de Felipe, de 21 anos, ilustram o que uma parte do Brasil denomina de genocídio dos negros: “Jovem, negro, VIVO”.

Embora em qualquer canto do Rio de Janeiro se possa comprar maconha ou cocaína, a guerra às drogas é travada nos morros, em favelas como essa. Grupos criminosos dividem o negócio e o controle dos bairros. Em uma terça-feira quente de outubro, vê-se um sujeito com um fuzil sentado em um bar, um jovem vestido apenas com chinelos e um calção de banho, portando uma arma, vende coca por 45 reais por grama, e chama a atenção a tornozeleira eletrônica em outro jovem de short que se refresca em uma ducha na rua.

A altíssima letalidade da polícia brasileira vem de antes de Jair Bolsonaro se tornar presidente com um discurso belicista que proclama que a maneira mais eficaz de combater o crime é com a violência. Essa retórica calou fundo em uma população amedrontada pelo crime. A novidade é que está no topo do poder. De vez em quando, um episódio choca o Brasil. Um músico alvejado com 80 tiros por militares, um estudante atingido por um helicóptero da polícia, seis jovens com tiros na nuca, a menina Ágatha, de oito anos, morta por uma bala...

Enquanto as mortes pelas mãos de agentes do Estado aumentam, os assassinatos em geral diminuem. Ambos os fenômenos não têm ligação, alertam os especialistas. "Nos Estados com mais letalidade policial, a taxa de criminalidade acaba sendo mais alta", enfatiza Daniel Cerqueiro, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O impacto da violência é enorme. Ele traduz isso em perdas econômicas: “O Brasil, com 2% da população mundial, possui 14% dos homicídios. Isso significa desperdiçar 6% do PIB.”

A insegurança é, ao lado da economia, a grande preocupação de qualquer brasileiro. Por isso, o presidente Bolsonaro não perde a oportunidade de ressaltar que no primeiro semestre de seu mandato os homicídios caíram 22%. Mas o acadêmico é categórico: “O Governo federal não tem absolutamente nada a ver com isso, vem de antes, é um processo. O Governo vai contribuir, de todo modo, para reverter isso com sua política enlouquecida de liberalização de armas e endurecimento das penas, com um sistema prisional como o nosso, que é um caos total”. São prisões, explica ele, que fizeram aflorar 79 organizações criminosas e são o canteiro perfeito para novos recrutas.

"O Rio de Janeiro é o paradigma do que funciona mal na polícia do Brasil, não reflete o país em geral", afirma David Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma ONG criada por acadêmicos, juízes e policiais que desde que coleta e sistematiza os dados colocou a segurança pública na agenda nacional. Em outros Estados, "a retórica é de prevenção e respeito pelos direitos humanos". O Espírito Santo é agora o aluno que está na frente.

O Estado do Rio de Janeiro, por sua vez, é o epicentro da letalidade policial, com uma em cada quatro mortes nas mãos de agentes em 2018. Em 2019, até agosto, o número foi recorde: 1.249 mortes, um aumento de 16% em relação ao ano anterior. Na zona metropolitana do Rio, a cifra de mortes por policiais chega a 50% do total de homicídios, com o agravante de que nem todos os casos entram na estatística como deveriam, já que isso depende em parte do reporte dos próprios agentes. É um fenômeno que alarma até a ONU e que surgiu antes mesmo de o ex-juiz e ex-fuzileiro naval, Wilson Witzel, assumir o cargo de governador. Witzel pronunciou uma dessas frases difíceis de esquecer: “O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha ... e fogo! Para não ter erro”. Na ocasião da comoção pela morte trágica de Ágatha, Witzel reafirmou o seu compromisso em matar criminosos armados e atribuiu o caso ao crime organizado. "O crime organizado não é maior que o Estado. E nós não vamos permitir que eles continuem zombando das nossas caras, serão combatidos, serão caçados nas comunidades", afirmou o governador, no dia seguinte.

Artur, o jovem de 22 anos, destaca um dos conhecidos que viu morrer. Seu primo Mateus, três anos mais novo. "Tinha 14 anos quando foi executado" sob custódia policial, conta. Havia sido detido, acusado de roubar alguns colares, e levado para a delegacia. A favela da Maré, onde vive e se formou como ativista a vereadora assassinada Marielle Franco, é um desses bairros de frequentes tiroteios e operações policiais. Lugares onde a polícia entra com força total em busca de traficantes de drogas. Pouco importa que moradores morram no fogo cruzado ou o terror que causa às crianças em idade escolar e aos demais moradores. Enquanto dura a operação policial, todos ficam enclausurados.

O Complexo do Alemão, também no norte do Rio, é ainda mais violento. Tão longe e tão perto das praias de cartão postal. Algumas ruelas estão tão marcadas de balas que lembram o Oriente Médio. "Aqui vemos as mesmas armas da Síria, com a diferença de que não entram tanques", afirma Julio César Camilo, 44 anos, presidente de uma associação de bairro. “Não temos o direito de ir e vir. Prometeram para nós que haveria projetos sociais, além da polícia, mas só colocaram o braço armado do Estado ... a qualquer momento há um tiroteio”, explica ele ao lado do esqueleto de um enorme teleférico construído quando da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. Um dia, as autoridades o fecharam sem explicação. Até hoje. É quarta-feira. A área está tensa, mas ele revela que “desde a fatalidade da menina Ágatha (morta em setembro) está mais tranquilo”.

Julio César posando em um beco repleto de balazos.
Julio César posando em um beco repleto de balazos.Alam Lima

Quando irrompe um tiroteio, Roberta, 39 anos, se tranca no banheiro com seus sete filhos. O lugar menos inseguro de sua casa. As balas na sala atestam que às vezes a violência se instala dentro. E narra episódios de abuso policial. "Roubam até o que está na geladeira", diz.

A Redes da Maré lançou mão da engenhosidade –e a técnica jurídica– para reivindicar nos tribunais seu direito à segurança pública. Apresentou "artifício jurídico para que na periferia seja aplicada uma lei que se aplica no resto da cidade". Uma juíza ordenou aplicar o que já está na lei: as operações policiais não podem ser de noite, nem no horário da entrada ou saída das escolas, todo carro-patrulha ou blindado tem que portar GPS e tem que haver uma ambulância e um chefe de polícia que responda pelos agentes. As incursões caíram de 41 para 16 em um ano. Isso foi antes de Bolsonaro e o governador Witzel serem eleitos.

Gabriela, de 16 anos e filha de Roberta, no salão de sua casa no bairro de Complexo do Alemão.
Gabriela, de 16 anos e filha de Roberta, no salão de sua casa no bairro de Complexo do Alemão.Alam Lima

Quando os quatro jovens saem da favela para o resto da cidade se sentem "exóticos", diz James. "Exatamente, essa é a palavra", explica Fagner. “Olham para você o tempo todo", conta o artista. “A polícia me tirou várias vezes do ônibus ou me revistou. Já me abordaram quando eu chegava do trabalho, perguntando o que faço. Ou minha casa foi invadida enquanto eu dormia e me perguntaram o que fazia em minha casa às oito da manhã.”

O mais doloroso para esses homens é que quando crianças eles também viram os traficantes como heróis, cresceram com vizinhos que hoje seguem seus passos em direção ao dinheiro fácil, com a única diferença de que em algum ponto do caminho algo aconteceu. Quer tenha sido o percurso para a prova do Enem ou qualquer outra coisa, seus caminhos se separaram.

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