As mães ‘órfãs’ de filhos que o Estado levou
Em plena democracia, policiais matam cidadãos e não assumem a responsabilidade pelo crime, muitas vezes acusando a vítima. Mães se unem para dar visibilidade a seus filhos mortos e cobrar a dignidade de terem a memória deles reparada
Maria de Jesus da Silva, mãe de Renayson. Bruna Mozer, mãe de Luciano. Marilene Araújo, mãe de Eliezer. Marcia Jacinto, mãe de Henry. Cleonice de Freitas, mãe de Daniel. Arlete Roque, mãe de Alex. Bruna da Silva, mãe de Marcos Vinícius. Adriana de Farias, mãe de Wallacy. Gláucia dos Santos, mãe de Fabrício. Maria do Carmo Silveira, mãe de Thiago. Luciana Pimenta, mãe de Kauan. Luciana Lopes, mãe de Lucas. Ana Paula Oliveira, mãe de Johnatha. Marinete Silva, mãe de Marielle Franco — e, desde que a vereadora do Rio de Janeiro foi executada, mãe de muitas mães que sua filha tanto apoiava.
Essas mulheres ainda vivem o luto por terem perdido seus filhos, a grande maioria mortos — muitos sumariamente executados — por policiais civis e militares ou soldados do Exército que agiam em operações convencionais, como matadores profissionais ou em grupos de extermínio. Apesar da dor, e da força de quem está do outro lado, escolheram lutar pela dignidade dos seus nomes. “Eu financiei a bala que matou meu filho, e não posso aceitar isso. Seus sonhos foram roubados pelo braço forte do Estado”, argumenta a cuidadora Edna Carla Cavalcante, 47 anos. Hoje é a principal liderança das Mães de Curió, uma das várias redes de familiares que nasceram em plena democracia. Grupos similares são comuns em ditaduras, como as que ocorreram aqui e em vizinhos latino-americanos entre os anos 1960 e 80, décadas em que a repressão se voltava contra opositores do Governo. Unidas na luta e na dor, as mães de hoje exigem esclarecimentos, justiça e reparação do Estado, ao qual acusam de ter matado seus filhos de forma ilegal e ilegítima a partir da ação direta de seus agentes ou de sua omissão. Ensinam que lutar contra o terror estatal ainda é necessário.
Um terror que invadiu a noite de Fortaleza entre os dias 11 e 12 de novembro de 2015, mais precisamente nos bairros do Curió, Alagadiço Novo, São Miguel e Messejana. Álef, filho de Edna, era um dos 11 jovens sem qualquer ligação com o crime que foram executados por 45 policiais que queriam vingar a morte de um colega. Quando ainda acreditava no poder público, Edna vislumbrava uma carreira no Exército para o rapaz, que adorava andar de skate. Ele tinha só 17 anos quando foi assassinado naquela noite. “Hoje ele vive através da luta. Mas hoje sou conhecida como uma mãe do Curió. Queria ser apenas a mãe do Álef”. Dez meses depois do massacre, 44 PMs foram indiciados e 34 vão a júri popular. Nove retornaram para a corporação em abril deste ano.
As histórias mais visíveis e paradigmáticas estão na região Sudeste, onde os familiares estão, consequentemente, mais articulados em grupos. Como o movimento Mães de Maio, de São Paulo, nascido após uma onda de ataques de facções criminosas e de policiais que vitimou centenas de pessoas em maio de 2006. Em maio deste ano, o grupo lançou o livro O memorial dos nossos filhos vivos - as vítimas invisíveis da democracia, com 23 relatos sobre 26 vítimas de policiais e outros agentes estatais. Ou as Mães de Manguinhos, do Rio de Janeiro. "Já são cinco anos nessa luta. Uma promessa que fiz pra mim mesma quando meu filho foi assassinado, e teve sua memória e sua dignidade assassinadas, foi de que a partir daquele momento eu seria parte dele", discursa Ana Paula Oliveira para um grupo de mães durante o 4º Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado, realizado entre os dias 18 e 21 de maio. Seu filho Johnatha foi executado em 2014 com um tiro nas costas por um policial militar da Unidade de Polícia Pacificadora do Complexo de Manguinhos, na zona norte da capital fluminense. E, como costuma acontecer nessas situações, foi criminalizado, chamado traficante de drogas pela corporação, mesmo sem qualquer envolvimento com o crime local. Ele tinha 19 anos. "Estamos aqui para cobrar reparação, mas a principal reparação é com a memória dos nossos filhos. Costumam dizer que nós acobertamos criminosos, mas quem acoberta o crime é o Estado. Nós vamos seguir gritando".
Celebrado em Goiânia, o encontro nacional de familiares contou ainda com a participação de outras dezenas de organizações, como o Mães de Maio do Cerrado, o Mães do Xingu, a Rede de Mães e Familiares da Baixada, as Mães Mogianas ou a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência. Estiveram representados os estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Ceará, Amazonas, Bahia e Goiás. Cerca de uma centena de pessoas estiveram presentes neste ano, a maioria mães — outros parentes, como pais e tias, também compareceram, mas em menor número. Goiânia foi a escolhida para o evento com o objetivo de fortalecer as redes locais e dar visibilidade nacional a um estado que, segundo dizem, pode ser especialmente violento e acabar impune. No ano de 2020 será a vez do Ceará.
A reunião anual é também um momento de fortalecimento e de apoio psicológico mútuo. Um retiro religioso cercado de verde e tranquilidade, em Hidrolândia, na região metropolitana de Goiânia, foi o cenário escolhido para que tantas recordações viessem à tona naqueles dias de maio: as das infâncias alegres de seus filhos, apesar das dificuldades; as das mortes dolorosas que despedaçaram famílias inteiras. Quando uma se abatia e se recolhia em um canto, outras se aproximavam para oferecer palavras de conforto e abraços. Em questão de minutos alternavam e misturavam momentos de risadas e lágrimas, de canto e raiva. Quando estão juntas sentem-se confortáveis para se expressar. É uma dor que todas conhecem e todas entendem. E uma luta hercúlea contra uma vocação mortífera do Estado brasileiro que poucos, às vezes nem familiares, compreendem.
Essa vocação se traduz em números. Em um universo de 65.602 homicídios praticados em 2017, no mínimo 5.159 decorreram de intervenções policiais, segundo os dados oficiais agrupados pelo Atlas da Violência 2019 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo 12º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Significa que os agentes estatais mataram ao menos 14 pessoas por dia no país em 2017, o que coloca essa como a segunda causa de mortes violentas — ficando inclusive à frente dos latrocínios (roubo seguido de assassinato), um dos maiores temores dos brasileiros. Além disso, cerca de dois quintos dessa cifra sobre violência policial correspondem apenas a Rio de Janeiro e São Paulo, dois dos Estados que melhor calculam esse tipo de ocorrência. Nem todas as unidades da federação o fazem ou tornam públicos seus dados, explica a socióloga Samira Bueno, diretora executiva do FBSP.
Mesmo nesses dois Estados, nem todos os casos são notificados, seja porque a polícia nem sempre assume a autoria, seja porque há também a atuação de milícias e grupos de extermínio que agem nas sombras. Assim, estima-se que os números reais, e não contabilizados, são muito maiores. Ainda que considerando apenas os números oficiais percebe-se que as ocorrências mais que dobraram em quatro anos: em 2013, os agentes públicos mataram 2.212 pessoas, segundo o FBSP. Bueno ainda recorda que não se sabe ao certo as causas da maioria das mortes violentas cometidas no país, já que mais de 90% delas não são esclarecidas ou sequer investigadas.
Mas a batalha dessas mães vai muito além do fim da violência policial contra pessoas inocentes. Enquanto seus cartazes, camisetas e bandeiras estampam imagens e recordações de seus filhos mortos, suas falas pedem que o Estado brasileiro, além de reparar as famílias, mude sua postura com relação ao combate às drogas. Uma política de confronto que se arrasta desde os anos 1970, década em que o aumento da violência urbana coincidiu com a declaração de guerra às drogas feita por países ocidentais, sobretudo os Estados Unidos. Desde então o inimigo público é o traficante, mas não qualquer traficante. Para esses familiares, essa guerra esconde uma política de "genocídio" contra a população negra moradora das periferias, independentemente de envolvimento com o crime. Essa percepção se reflete nos dados: em 2017, mais de 75,5% das vítimas de homicídio eram jovens e negros. Entre 2007 e 2017, a taxa de pessoas negras mortas subiu 33%. A mortalidade de não negros subiu apenas 3,3%.
"Quando meu filho foi morto, eu explicava sempre que ele era inocente. Depois fiquei me sentindo mal por isso, porque parecia que eu estava justificando que a polícia matasse os filhos de outras mães", explica Ana Paula, do Mães de Manguinhos. "Não é que o Estado não tem que matar morador inocente. O Estado não tem que matar ninguém e ponto". Os motivos são mais que óbvios: a Constituição Brasileira proíbe a pena de morte e o Estado Democrático de Direito prevê que suspeitos tenham direito a um amplo processo legal na Justiça, enquanto que o uso da força letal por agentes está autorizado a partir de protocolos e situações concretas. Na prática, porém, policiais recebem muitas vezes carta branca — dos governantes e da sociedade — para prender, julgar e matar. E também são colocados para morrer. "Estamos entregando para eles o poder de decidir quem vive e quem morre na ponta", explica Samira Bueno, do FBSP. "Eles também estão sofrendo e perdendo. Isso não é vida".
Bruna Mozer escuta todos os dias antes de dormir os áudios que o filho Luciano costumava enviar por WhatsApp. Também envia mensagens para as redes sociais do rapaz, pois tem medo que um dia sumam por inatividade. Ele morava com o pai na comunidade do Muquiço, na zona oeste do Rio. E, aos 18 anos, estava envolvido com o tráfico de drogas local. Até que na manhã do dia 17 de janeiro de 2018 levou um tiro nas costas e outro na cabeça. Testemunhas afirmam que a polícia chegou atirando. Já baleado, tentou correr e caiu. "Ele ainda disse 'perdi, meu senhor'. E o policial respondeu 'perdeu mesmo' e acertou um tiro na cabeça", conta a vendedora ambulante, com a voz trêmula. Ela chegou a tempo de ver o corpo do filho no chão. "Atravessei a contenção, levantei o lençol... E a primeira coisa que fiz foi abençoá-lo. Meu mundo parou, só ficamos eu e ele", recorda. Luciana chegou a notar que no chão estavam as cápsulas de fuzil, devidamente recolhidas e guardadas por um dos agentes em seguida. Horas depois, a perícia recolheu um carregador de pistola intacto do bolso do rapaz. O caso foi enquadrado no Boletim de Ocorrência como auto de resistência. "Nunca vi um auto de resistência com dois tiros pelas costas e um carregador intacto. E cadê a pistola? Eu não vi", questiona a mulher. "Os policiais estavam em volta conversando entre eles e rindo. Foi o mais revoltante".
Bruna, que durante um tempo se manteve afastada da família por conta de sua dependência química, não sabe ao certo quando ou como Luciano se envolveu com o tráfico. Nascido e criado no Muquiço, parou de estudar na sétima série e deixou de ser o menino talentoso da escolinha de futebol da favela. Era ele quem portava o rádio que comunicava a chegada de policiais no local. "Se meu filho estava baleado no chão, era só levá-lo para o hospital e depois para o presídio. Eu iria visitá-lo e fazer de tudo para que saísse dessa. Porque ele falou que iria sair. Queria trabalhar e ver a filha crescer", lamenta. Agora busca forças em sua filha e na neta de um ano, órfã de pai. Quer esclarecimentos e o mínimo de dignidade: sua prioridade imediata é alterar o atestado de óbito de Luciano, já que no documento não constam seu nome, seu CPF e os nomes de seus pais. As autoridades responsáveis não aceitaram a certidão de nascimento do rapaz por não possuir foto, conta Bruna.
"Autos de resistência" e encarceramento
É no Rio de Janeiro onde os policiais mais matam no país. Em 2018, ano de intervenção federal, o Instituto de Segurança Pública do Governo registrou 1.534 mortes por "intervenção dos agentes de estado", um recorde. O governador Wilson Witzel, que ganhou as últimas eleições prometendo atirar "na cabecinha" de criminosos armados, transformou essa política de confronto em verdadeira política de terror, fazendo com que as polícias fluminenses batessem novos recordes em seus primeiros meses de governo. Do total de 2.558 letalidades violentas entre janeiro e maio deste ano, 731 foram cometidas por agentes estatais, ou seja, 28,6%. O recorde foi atingido em maio, quando policiais mataram 171 pessoas, um número que representa 32,2%, ou cerca de um terço, do total dos homicídios. São quase cinco mortes por dia assumidamente cometidas pelo poder público.
Nos registros oficiais essas mortes constam como "auto de resistência", isto é, quando um criminoso resiste à prisão e acaba baleado em uma troca de tiros. Nem sempre é assim. No réveillon de 2014, Fabrício dos Santos levou a moto de um amigo para abastecer e calibrar o pneu no posto de gasolina perto de casa. Era madrugada no Complexo do Chapadão, zona norte do Rio, e o jovem de 17 anos apenas fazia uma gentileza ao colega, que havia ingerido álcool nos festejos de fim de ano. Quando Fabrício já estava voltando, uma viatura se aproximou e, da janela, um policial militar atirou de fuzil em sua testa. Os agentes limparam o local, levaram o rapaz para o hospital de Realengo e alegaram que o rapaz era um criminoso baleado durante um tiroteio. Sua mãe, Gláucia dos Santos, sabia que era mentira: seu filho trabalhava como ajudante de pintura em Copacabana e nunca se envolveu com o tráfico local.
É provável que a morte de Fabrício sequer fosse investigada, já que a falta de acesso à Justiça e a impunidade são regra no Rio: conforme demonstrou a CPI que investigou os autos de resistência ocorridos entre 2010 e 2015 no Estado, 98% desses casos acabaram arquivados pelo Ministério Público estadual ou pelo Tribunal de Justiça. Mas Gláucia pediu as filmagens das câmeras do posto, buscou testemunhas, pressionou as autoridades e conseguiu desmentir a versão oficial. "Os policiais ainda não foram presos, mas já foram condenados em primeira instância e agora vão a júri popular. Se não fosse esse movimento de mães, de unir, cobrar e protestar, isso não teria acontecido", afirma. Ficaram, contudo, o trauma psicológico e os problemas de saúde. "Eu estava grávida, então foi um choque. Tenho dor de cabeça forte, esquecimento, perda de memória...", conta. A cabeleireira se separou há um ano do companheiro, que não aceitava a nova vida de ativista pelos Direitos Humanos. "Não matam só nossos filhos. Acabam matando a gente aos poucos também. Arrumamos força aonde não tem, mas são várias sequelas que ficam".
A saúde de Maria do Carmo Silveira também ficou abalada após a morte do filho Thiago Vinícius em circunstâncias ainda não esclarecidas. Conhecida como Kaká, a mineira de 60 anos carrega consigo a fotografia do rapaz morto em sua cela com uma corda amarrada no pescoço, exatamente nas mesmas condições em que o jornalista Vladimir Herzog foi fotografado após ter sido torturado e assassinado pelos agentes da ditadura militar brasileira, em 1975. Thiago Vinícius era um dependente químico. Ao longo de sua vida, passou por centros socioeducativos e penitenciárias por furto ou posse de substâncias ilícitas. Quando morreu, no dia 14 de janeiro de 2014, dia em que completava 31 anos, estava no Centro de Remanejamento do Sistema Prisional Gameleira (Minas Gerais). A versão oficial fala em "suicídio", assim como ocorreu no caso Herzog. A mãe do rapaz custa em acreditar. "Uma testemunha diz que ele passou no corredor gritando 'liga para minha mãe, eles vão me matar'. Mas ele não tinha inimigos". Ela lembra ainda que, 15 dias depois do ocorrido, um colega da prisão também morreu sob circunstâncias suspeitas. Os dois casos estão na Justiça.
Kaká e as outras mães também exigem o fim de uma política de encarceramento que faz com que atualmente existam 704.365 pessoas presas em um sistema penitenciário com 415.960 vagas, segundo os dados de abril de 2019 do Monitor da Violência, uma parceria do portal G1 com o FBSP e o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo. Mesmo assim as pessoas mais perigosas do país não estão presas ou condenadas, já que, conforme mencionado acima, estima-se que mais de 90% dos homicídios não são esclarecidos ou investigados. Além disso, 35,9% dos presos são temporários ou provisórios, detidos com pequenas quantidades de droga (muitas vezes para consumo próprio) ou pegos em flagrante por delitos menores. A superlotação somada à omissão do Estado nas prisões vem transformando esses lugares em centros de formação e recrutamento de facções criminosas e em ambientes insalubres, com disseminação do vírus do HIV, tuberculose e outras enfermidades, segundo especialistas. Centenas de presos morrem diariamente por causa de doenças, de abusos cometidos por agentes penitenciários ou em massacres cometidos em conflitos entre facções — como a que ocorreu em Manaus em maio deste ano e acabou com a vida de 55 detentos.
Estímulo a mais violência e impunidade
A todas as dificuldades de sempre soma-se a maré política atual, desfavorável ao que pedem. Além do governador Witzel, o presidente ultradireitista Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 defendendo carta branca para a polícia matar. De acordo com o pacote anticrime apresentado pelo ministro da Justiça Sérgio Moro, um policial que matar alguém poderá alegar que agiu sob "escusável medo, surpresa ou violenta emoção" e ficar sem nenhuma punição, algo visto por especialistas como uma licença para matar. Mas nada disso é novidade para essas famílias. "Um governo, seja de direita ou de esquerda, vai continuar matando o jovem preto. Essa polícia foi montada na colonização para capturar escravos", explicou durante o encontro de Goiânia a ativista Laina Crisóstomo, da Bahia. Os abusos que continuaram sendo tolerados nas últimas três décadas de democracia passaram agora a ser legitimados e até estimulados pelo poder público. "Não é só Bolsonaro que é ruim para a gente. Na Bahia, os governos Rui Costa e Jaques Wagner, que são do PT, lançaram um outdoor pela cidade dizendo 'crack, caixão ou cadeia'. Meninos que eram pegos com cigarro de maconha na comunidade eram assassinados como traficantes potenciais. Temos que pensar em estratégias", completou.
E algumas dessas estratégias foram pensadas durante o encontro nacional de maio. As mães e familiares ali presentes se reuniram com autoridades na Câmara Municipal de Goiânia e protestaram no centro da cidade. No último dia, rumaram a Brasília para mais encontros com autoridades, para entregar uma carta com petições para Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, e para um ato público no salão nobre do Parlamento. O evento foi articulado pelo mandato da deputada federal Talíria Petrone, mas apenas alguns parlamentares de seu partido, o PSOL, estiveram presentes por alguns minutos. Os grandes veículos de comunicação também não compareceram. Tudo isso reflete outro desafio que essas mães tem pela frente: mobilizar a opinião pública a favor de suas demandas. "É lamentável que nós estejamos aqui nesta Casa, onde nossa vida é decidida, falando para nós mesmas", discursou Ana Paula, do Mães de Manguinhos, em tom de indignação. Elas querem — precisam — ser escutadas.
"Todos os meus sonhos foram enterrados juntos com o meu filho"
No dia 11 de novembro de 2015, Renayson Girão da Silva buscou sua mãe no trabalho e depois se dirigiu para a região do Curió, em Fortaleza, para deixar sua namorada em casa. O adolescente de 17 anos, amante do futebol e sem qualquer tipo de envolvimento com o crime, avisou que chegaria de volta umas 22h. O trajeto que havia planejado foi interrompido ainda no ônibus. "Mandaram ele descer, colocaram ele deitado e começaram a tortura. Ele dizia meu nome e onde eu morava, mas não queriam saber. ‘Sua mãe é vagabunda’, diziam. E ele chorando”, relata Maria de Jesus da Silva, 45 anos, a mãe de Renayson. “Até que ele levou cinco tiros. E o mais chocante é que foi na frente da delegacia”. A notícia chegou através de uma tia do rapaz.
Maria hoje é uma das mães do Curió, grupo que pede justiça e reparação do estado do Ceará pela chacina de 11 jovens, cometido por 45 policiais militares que desejavam vingar a morte de um colega. Não diz que enterrou sua vida junto com o seu filho porque, além da nova rotina de luta, ainda tem uma filha e um neto para cuidar. "Mas eles não vão substituir o meu filho", afirma. Aquele que, quando tinha 12 anos, escreveu para a mãe, na época com um problema de saúde, a seguinte mensagem: "Mãezinha, confia em Deus, a senhora vai melhorar". A frase foi encontrada recentemente dentro de um livro e se somou a tantas outras recordações. "Todos os meus sonhos foram enterrados com ele. Porque hoje eu mudei minha rotina e sou uma pessoa depressiva. No dia das mães fico me recuando", explica Maria. "Eu me transformei em outra pessoa porque já não consigo acreditar em muitas coisas. E só de tocar no nome do meu filho meu coração fica... Ele era um cristal e se quebrou. Nunca mais vai se juntar".
"Uma mãe tem o direito de enterrar o seu filho, mas eu não tive. Eles me tiraram”
Arlete Roque aguarda ansiosa o júri popular, previsto para julho, dos três policiais que acabaram com a vida de seu filho Alex e de dois amigos seus, Rita de Cássia e Everton. A tragédia aconteceu às 2h45 da manhã do dia 29 de outubro de 2016, em Manaus. “Eles buscaram a menina numa festa e foram abordados por duas viaturas”, conta. Moradora do bairro Linha Vermelha, conta que um dos agentes patrulhava a área e já cercava seu filho, que, segundo garante, trabalhava em uma oficina como mecânico.
Alex morreu naquela madrugada, seguido de Everton nas primeiras horas da manhã. A garota foi estuprada continuamente e morreu três dias depois, segundo os próprios agentes confessaram. Até hoje os corpos não foram encontrados. “A pessoa que era paga pelo Estado não tinha o direito de tirar a vida deles. E uma mãe tem o direito de enterrar o seu filho. Eu não tive esse direito. Eles me tiraram”, lamenta Arlete. Ela conta que, depois que foram descobertos e presos no quartel, a matança semanal que ocorria em seu bairro cessou. Tudo indica que os agentes atuavam como grupo de extermínio.
"Nenhuma mãe quer encontrar o filho no IML"
Marcia Jacinto tem nítida na memória aquela ensolarada tarde do verão carioca em que escutou um tiro de sua casa. O ano era 2002. Começava a preparar comida para caso seu filho Henry quisesse jantar antes de ir para a escola. O adolescente de 16 anos não estava em casa. E não voltou. Na manhã seguinte, Marcia deu “um pulo da cama” ao não encontrá-lo e rodou o morro do Gambá, na zona norte do Rio, para saber o que havia passado. Um rapaz com uma bermuda preta, como a que Henry vestia no dia anterior, havia sido levado morto ao hospital municipal Salgado Filho. “Era bandido”, disseram os funcionários à mãe. Não era. Mas mesmo assim ela correu para o Instituto Médico Legal.
“Você educar um menino, ensinar os perigos da vida... Nunca repetiu um ano na escola, não faltava aula... Nenhuma mãe quer encontrar o filho no IML”, conta a mulher, hoje com 56 anos e aposentada. “Uma sensação horrível. Um cheiro muito ruim. As geladeiras estavam queimadas, muitos corpos em decomposição. Eu não queria entrar. Uma amiga e meu esposo entraram. Quando saíram, não precisaram falar nada. Eu só gritava”, recorda. O tiro que escutara foi à queima roupa e atingiu o coração do rapaz, atravessando o pulmão.
Ninguém na comunidade sabia ao certo o que acontecera. Nem teriam ficado sabendo se Márcia não tivesse reunido as forças para cobrar uma resposta das autoridades e fazer, ela mesma, a investigação. Assistiu séries policiais, estudou as disciplinas do primeiro período da graduação de Direito para conhecer os trâmites da Justiça, fez a perícia do local do crime com sua câmera, buscou a imprensa, foi a Brasília, acompanhou de perto as diligências formais... A pressão foi enorme e deu resultado: seis anos depois do crime, dois policiais foram condenados. E seu filho foi reconhecido como inocente. “Hoje estou aqui dando meu ombro, meu braço. Sei a dor delas [mães], mas sei também que vale a pena lutar”.
"Quando falam que 'bandido bom é bandido morto', é porque o filho deles está protegido"
Wallacy Maciel de Farias era um marceneiro de 24 anos prestes a se casar. A cerimônia que iria selar um relacionamento de sete anos com sua companheira estava marcada para dezembro. Porém, nas primeiras horas do dia 9 de setembro de 2017, foi abordado por policiais militares em uma rua residencial de Goiânia minutos antes de buscar sua namorada em casa. Quando Wallacy parou e deu sinais de que desceria do carro, o policial atirou. "Ele ficou 40 minutos agonizando no chão, sem socorro", conta, entre lágrimas, Adriana Teodoro de Farias, a mãe do rapaz. "Além de matar meu filho, denegriu sua imagem colocando armas e drogas perto dele. E até hoje não foi punido", acrescenta. Uma filmagem do momento da ação desmentiu a versão policial, registrada em Boletim de Ocorrência, de que a vítima teria reagido à abordagem. Também mostra os agentes manipulando a cena do crime.
"Será que se meu filho tivesse matado um policial, ele estaria vivo hoje para abrir a boca e se defender?", questiona a mãe. Ao contrário da maioria dos casos de violência policial, que geralmente atingem jovens negros nas periferias mais pobres, o rapaz era branco e estava em um bairro de classe média em Goiânia, dentro de seu carro, quando um PM atirou. Adriana acredita que a morte de Wallacy mostra o despreparo da polícia e reflete a ideia de que se deve primeiro atirar e depois perguntar. "Quando falam que 'bandido bom é bandido morto', é porque o filho deles está protegido", denuncia.
Adriana conta ter morrido junto com Wallacy. "Eu não posso dizer que eu vivo. Eu sobrevivo", afirma. Segue de pé pelos filhos João Vitor, 19, e Gabriel, 12. O caçula teve de ser levado para o psicólogo devido ao trauma. "Ele enchia uma sacola de pedras e ia encontrar as viaturas. Ficou com muita raiva", conta Adriana, que também teve de ir ao psiquiatra e tomar remédios controlados. Seu esposo, também marceneiro, ficou três meses sem trabalhar. O trauma na família foi generalizado. "Meu filho era amoroso, não era de briga. Começou a trabalhar com 14 anos. Os móveis de minha casa foram feitos por ele", recorda.
Dos agentes envolvidos na abordagem, apenas o policial que apertou o gatilho foi indiciado. Chegou a ser afastado da corporação após o crime, mas depois voltou às ruas e foi promovido duas vezes por antiguidade: foi de soldado a cabo; em seguida, a terceiro sargento. "Para os policiais o bandido tem que morrer. Uma pergunta que eu faço todos os dias é: se eu provei que meu filho não é bandido, por que o policial não foi punido? Eles tiram minha noite de sono, eu preciso de justiça", afirma Adriana. O caso está nas mãos do juiz.
"Não sei quantas vezes meu filho foi preso, mas na última vez fiquei sem ele"
Thiago Vinícius Silveira começou a usar drogas, como o crack, ainda na adolescência em São Paulo. Durante anos frequentou centros socioeducativos. Mais velho, já casado e com uma filha, foi morar em Belo Horizonte, para onde sua mãe já havia ido. Até conseguiu controlar a dependência química em certas ocasiões, mas não por muito tempo. "Também passou pela prisão várias vezes", conta Maria do Carmo Silveira, conhecida como Kaká, de 60 anos. "Era sempre por furto. Não tinha revólver nem nada. Mas se uma pessoa dava bobeira, ele ia lá e pegava o celular. Os transeuntes batiam nele, os policiais batiam nele...", afirma a mãe. "Não sei quantas vezes foi preso, mas na última vez fiquei sem ele. Faz cinco anos já".
A morte do filho de Kaká chegou no dia 14 de janeiro de 2014, data de seu aniversário de 31 anos. Entre 2h e 4h da manhã, ele apareceu em sua cela, no Centro de Remanejamento do Sistema Prisional Gameleira (Minas Gerais), com uma corda amarrada em seu pescoço. As circunstâncias não estão esclarecidas e o caso está na Justiça. A versão oficial fala em "suicídio", algo que a mãe do rapaz não consegue acreditar. "Uma testemunha diz que ele passou no corredor gritando 'liga para minha mãe, eles vão me matar'. Mas ele não tinha inimigos dentro da cadeia", conta Kaká. "Acredito que ele morreu de outra forma. Deve ter sofrido afogamento ou outra coisa, levaram ele já morto e penduraram", acrescenta. Há outras pistas e contradições que levam a essas suspeitas: os peritos que disseram ser impossível realizar a perícia no local; o Boletim de Ocorrência que dizia que ele estava sem camisa, quando na verdade foi encontrado com uma camisa vestida do avesso; e a morte de um colega de prisão 15 dias depois, tratada também como suicídio. "Ele não apareceu enforcado, mas bateram tanto nele...", conta Kaká.
A Comissão de Direitos Humanos (CDH) e a Comissão de Assuntos Penitenciários da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG) denunciaram as mortes dos dois rapazes ao Ministério Público, que reabriu os casos. Mais de cinco anos depois do ocorrido, Kaká ainda aguarda esclarecimentos.
Dados sobre o encontro
O 4º Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado foi organizado por diversos grupos e redes. São eles: Instituto Memória e Resistência, Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, Mães de Maio do Cerrado, Mães do Xingu, Fórum de Religiões de Matriz Africana do Estado de Goiás, Mães de Maio, Redes da Maré, Fórum Grita Baixada, Associação de Familiares e Amigos dos presos/as, Mães de Maio da Leste, Movimento Moleque, Mães de Manguinhos, Mães de Curió, Rede de Mães e Familiares da Baixada, Mães Mogianas, Grupos de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade, Frente Estadual pelo Desencarceramento, Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Estado do Espírito Santo. Em carta para Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, pediram:
- Não aprovação do PL 882/2019, o Pacote Anticrime de Sérgio Moro;
- Criação do Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos, conforme o Projeto de Lei 3503/04, que tramita na Câmara Federal;
- Proposta Legislativa para a criação da Semana Estadual em Memória das Vítimas do Estado Brasileiro, de 12 a 19 de Maio, nos moldes das leis 7637/2017, do RJ, e 15501/2014, de SP;
- Criação de uma Política Nacional de Reparação aos Familiares de Vítimas da Violência de Estado no Brasil, visando a reparação psíquica e social dos familiares
- Elaboração de um projeto de lei para que haja a independência das perícias
- Revogação da Lei 13491/ 2017, "Lei Licença para Matar", que é inconstitucional e transferiu para a Justiça Militar os crimes praticados por militares;
- Aprovação do PL 4471, que prevê o fim dos Autos de Resistência;
- Cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Estado pela morte de 26 pessoas nas chacinas da Nova Brasília;
- Que sejam efetivamente investigados os casos de violações de direitos e homicídios praticados por agentes do Estado;
- Efetivo controle externo de todas as operações nas favelas e periferias brasileiras;
- Fim do uso ilegal do helicóptero da Core [Polícia Civil do Rio] em operações;
- Transparência e direito de acesso à informação das mães às investigações sobre os homicídios de seus filhos.