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Isabela Kalil | Cientista política

“A radicalização sustenta o protagonismo de Bolsonaro na direita”

Para a cientista política Isabela Kalil, presidente tende a apelar cada vez mais aos discursos radicais com Doria e Witzel no encalço para conquistar seus eleitores

Isabela Kalil, antropóloga, cientista política e pesquisadora.
Isabela Kalil, antropóloga, cientista política e pesquisadora.Divulgação

Jair Bolsonaro iniciou seu pronunciamento na Assembleia Geral da ONU, na última terça-feira, afirmando que o Brasil esteve “à beira do socialismo”. A fala é parte de uma estratégia, na visão de Isabela Kalil, antropóloga e cientista política que estuda os movimentos de direita no Brasil desde 2016. E tem o objetivo de reaglutinar as bases que elegeram o ultradireitista sob o sentimento de combate a um inimigo comum: a esquerda representada pelo PT. Em estudos desenvolvidos na capital paulista, a pesquisadora que coordena o Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual (NEU) da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo mapeou 16 perfis de eleitores bolsonaristas, que vão desde os “periféricos de direita”, pobres que abraçaram as promessas de endurecimento contra a criminalidade, até as “bolsogatas”, mulheres entusiastas das pautas conservadoras.

Segundo suas pesquisas, aproximadamente 10% dos bolsonaristas esperam do presidente uma radicalização ainda maior, sendo que metade deles já se diz frustrada pela falta de medidas extremas no Governo. Porém, sem o mesmo poder de mobilização da minoria, a maior parcela do eleitorado de Bolsonaro se encaixa no perfil pragmático, como os apoiadores da Operação Lava Jato, contemplados no discurso para a ONU com um afago ao ministro da Justiça, Sergio Moro. O aceno surge em meio a um processo de desgaste com lavajatistas, frustrados pelo empenho da família Bolsonaro em barrar a CPI da Lava Toga. Em entrevista ao EL PAÍS, Kalil explica que, para Bolsonaro, a retórica extremista é uma maneira de se blindar de concorrentes pelo protagonismo da direita, enquanto mantém sua base mobilizada apesar dos reveses no xadrez da política.

Pergunta. O pensam as alas mais convictas do bolsonarismo?

Resposta. Há um grupo de eleitores fieis, entre 10% e 12%, que apoia uma maior radicalização do Governo. Apesar do número relativamente baixo, essa ala representa um fenômeno novo na política. São apoiadores que, do ponto de vista comunicacional, atuam em bloco para organizar manifestações e promover ataques a figuras públicas opositoras ao presidente, sem necessariamente estarem vinculados a um partido. No aspecto quantitativo, o grupo de radicais ainda está em minoria no universo de bolsonaristas, mas, no qualitativo, tem grande capacidade de gerar repercussão e minar a atuação de adversários nas redes sociais. Recentemente, perfis como Felipe Neto e a revista AzMina sofreram ameaças articuladas por essa corrente de apoiadores. É uma parcela pequena que, no entanto, faz bastante barulho e tem gerado um impacto enorme na política.

P. Já aparecem pessoas que demonstram arrependimento pelo voto em Bolsonaro?

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R. Entre eleitores arrependidos, o núcleo ligado ao radicalismo, que cobra um Governo ainda mais alinhado à extrema direita, também é minoritário. A maioria dos bolsonaristas pode ser enquadrada no rol de eleitor pragmático, que não apoia cegamente o presidente, mas fecha os olhos para algumas atitudes e medidas das quais discordam. Esse eleitor, embora se mostre insatisfeito com os rumos do Governo, defende que ainda é cedo para avaliar a gestão Bolsonaro, já que o PT ficou no poder por mais de uma década.

P. Algum partido ou político pode herdar essa vertente de bolsonaristas arrependidos?

R. O eleitor desiludido do Bolsonaro não tende a apoiar, de imediato, um projeto diferente ou até mesmo de esquerda. Há o risco, inclusive, de que ele se desiluda totalmente com a política. Como o eleitor pragmático não pensa em política todos os dias, um eventual desgaste do Governo será lento e gradual. Além desse perfil mais volátil, a base fiel que reivindica maior radicalização pode acabar migrando para outros políticos. A disputa pela radicalidade na direita já é perceptível. Quando João Doria [governador de São Paulo] pediu para recolher apostilas sobre diversidade sexual nas escolas, Bolsonaro, no mesmo dia, determinou a criação de um projeto de lei contra questões de gênero. No Rio de Janeiro, o tema da segurança concentra os embates. Enquanto parte da população se indigna com o assassinato de civis por agentes do Estado, outra interpreta essas ações da polícia como indício de sucesso da política de segurança pública.

P. Nesse ponto, o governador Wilson Witzel, com quem o partido do presidente (PSL) acaba de romper, se apresenta como um concorrente no plano nacional?

R. Bolsonaro não monopoliza o projeto punitivista. Está claro que, se ele não colocá-lo em prática, outro político vai fazê-lo. Por enquanto, Witzel é mais contundente que o Bolsonaro em ações diretas na segurança pública. Ele deixa evidente que mira uma possível candidatura à Presidência, mas ainda é cedo para prognósticos sobre 2022. As eleições municipais do ano que vem serão uma prova de fogo para as forças políticas que disputam espaço no campo da radicalização.

P. Qual é a principal demanda dos eleitores mais pobres que votam em Bolsonaro?

R. A questão da segurança, fora a pauta dos costumes, é muito sensível para os eleitores mais pobres. Entre eles, existe a percepção de que a esquerda não tem um projeto sólido para a segurança pública. Bolsonaro apela a projetos punitivistas que extrapolam limites republicanos e democráticos, mas que funcionam como uma fórmula bem-sucedida para a consolidação do seu eleitorado.

P. O espectro da direita mudou após a ascensão de Bolsonaro à Presidência?

R. A direita no Brasil tem muitas nuances. Ela passa a se consolidar a partir do impeachment da Dilma, em 2016. Até o ano passado, esses diferentes atores tinham um inimigo comum: a esquerda. Quando salta ao Governo, o movimento é afastado de seu inimigo pelo próprio desenrolar da política e, então, surgem as primeiras cisões na base bolsonarista. Uma delas é com os lavajatistas, que, em vez de Bolsonaro, têm Moro como figura central. Eles começam a perceber que o presidente não está comprometido com o combate à corrupção pela falta de apoio incondicional ao ministro. Essa percepção pode se agravar caso as medidas do Moro não emplaquem. Bolsonaro está descobrindo que é mais fácil ser oposição do que Governo. A política envolve diálogo e negociação, algo interpretado por parte de seus eleitores como um sinal de enfraquecimento. É justamente a radicalização que sustenta o protagonismo de Bolsonaro na direita.

P. Como a direita bolsonarista conseguiu reavivar debates que pareciam superados no século passado sob a perspectiva do extremo conservadorismo?

R. Grupos de direita foram oportunistas. Entenderam que a radicalização atrai visibilidade, que os discursos extremistas, sobretudo os que causam indignação, disseminam com mais facilidade. Toda vez que alguém compartilha uma mensagem de ódio, ainda que para condená-la, aumenta seu alcance. Há dois caminhos para contrapor essa corrente. O primeiro é um novo modelo de resposta, que não envolva a propagação de posições radicais. O outro é repensar a forma como empresas privadas (Facebook, Twitter, Youtube etc.) organizam as plataformas de articulação política na internet. Uma mudança no algoritmo do Youtube, por exemplo, fez com que conteúdos baseados em discursos de ódio ganhassem maior ressonância. Diante de tantas polêmicas diárias, os limites do que a sociedade considera aceitável acabaram se alargando. O fenômeno eleitoral de 2018 não se explica só pelas redes sociais, mas, em meio à junção de fatores que o moldaram, elas desempenharam um papel decisivo.

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