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Coluna
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O grito de uma geração

Greta Thunberg e os milhões de jovens ativistas que ocuparam – e seguirão ocupando – as ruas do planeta, também no Brasil, representam a primeira grande adaptação à emergência climática

Garota segura cartaz durante protesto em São Paulo, na última sexta, contra as mudanças climáticas.
Garota segura cartaz durante protesto em São Paulo, na última sexta, contra as mudanças climáticas.MIGUEL SCHINCARIOL (AFP)
Eliane Brum
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“Nossa casa está em chamas. Eu quero que vocês entrem em pânico.” Quando Greta Thunberg diz frases como essas aos adultos, ela está anunciando a maior inflexão histórica já produzida por uma geração. Pela primeira vez na trajetória humana os filhotes estão cuidando do mundo que os espécimes adultos destruíram – e seguem destruindo. Esta é uma inversão no funcionamento não só da nossa, mas de qualquer espécie. A mudança responde a uma enormidade. A emergência climática é a maior ameaça já vivida pela humanidade em toda a sua história. Quando ouvimos o grito de Greta e dos milhões de jovens inspirados por ela, um grito que ressoa em diferentes línguas e geografias, é esta a ordem de grandeza do que testemunhamos. Escutar é imperativo.

Em poucos meses, Greta tornou-se uma das pessoas mais influentes do planeta. Tinha 15 anos quando deixou de comparecer às aulas e se sentou diante do parlamento sueco, em agosto de 2018: “Estou fazendo isso porque vocês, adultos, estão cagando para o meu futuro”. De que adianta ir à escola se não vai ter amanhã? A pergunta, que para muitos soava insolente, era justa. Mais do que justa, expressava uma lucidez que a sociedade não esperava de crianças e adolescentes. Logo, Greta não estava mais só.

O movimento Fridays for Future passou a levar toda semana dezenas de milhares de estudantes às ruas, numa greve escolar pelo clima. Em março de 2019, a primeira greve global levou 1,5 milhão de adolescentes às ruas do mundo. Em 20 de setembro, mais de quatro milhões deixaram as escolas para gritar pela emergência climática, em uma das maiores manifestações globais da história. Hoje há milhões de Gretas, da Amazônia a Austrália, da Sibéria a Nova York.

De repente, crianças e adolescentes perceberam que seu mundo era governado por adultos como Donald Trump (e Recep Erdogan, Viktor Orbán, Rodrigo Duterte...). Para piorar o cenário global, o Brasil, país que abriga 60% da Amazônia, floresta estratégica para a regulação do clima do planeta, passou a ser comandado pelo populista de extrema direita Jair Bolsonaro, um homem que defende que o aquecimento global é um “complô marxista”.

Se estes são os adultos na sala de comando do mundo em que você vive e vai viver, e se você é mentalmente saudável, basta uma inteligência média para entrar em pânico de imediato. Então você olha para dentro da sua casa, esta feita de paredes, e percebe que seus pais estão ocupados com urgências mais comezinhas, como pagar as contas do mês, ou tentando concluir se o celular mais avançado é da Apple ou da Samsung.

Crianças e adolescentes da Geração Greta perceberam o óbvio. A casa está queimando – a Amazônia em chamas no mês de agosto levou essa imagem à literalidade – e seus pais e governantes tocam a vida como se nada estivesse acontecendo. Ao contrário, no momento em que o planeta mais precisa de políticas públicas e de alianças globais pelo clima, os adultos se mostram estúpidos o suficiente para eleger representantes do nacionalismo mais abjeto, que negam o superaquecimento global em nome de interesses imediatos.

Ao constatar que os adultos abdicaram de ser adultos, adolescentes como Greta assumiram a tarefa de tomar conta do mundo. É isso que Greta afirmou na Cúpula do Clima na Polônia, em dezembro: “Como nossos líderes comportam-se como crianças, nós teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo atrás”. Ao mesmo tempo, as jovens lideranças climáticas são espertas o suficiente para compreender que não basta voluntarismo, é preciso ocupar espaço político e travar o debate com os adultos que detêm o poder de fazer as políticas públicas. Esta também é outra novidade da geração climática: são crianças e são adolescentes, mas não são ingênuos.

A cada intervenção pública, Greta Thunberg tem demonstrado a lucidez que – por oportunismo, mais do que por incompetência – tem faltado no mundo dos adultos. Como ao afirmar à seleta plateia bilionária do Fórum Econômico de Davos, em janeiro: “Algumas pessoas, algumas empresas, alguns tomadores de decisão em particular, sabem exatamente que valores inestimáveis têm sacrificado para continuar a ganhar quantias inimagináveis de dinheiro. E eu acho que muitos de vocês aqui hoje pertencem a esse grupo de pessoas”.

É fascinante tentar compreender quais serão os efeitos dessa inversão radical no que é ser adulto e no que é ser uma criança. Não uma inversão evolutiva, que levou séculos ou milênios para ser consumada, mas um corte brutal. A geração imediatamente anterior a de Greta é justamente a geração mais consumista e mimada dos países ricos ou da parcela rica dos países pobres. Aqueles que hoje estão na faixa dos 30 e poucos anos, 40 anos são aqueles criados no imperativo do consumo e da satisfação imediata, muitos se recusam a se tornar adultos porque isso significa aceitar limites. Formados na lógica capitalista de que liberdade é poder tudo, que se dar todos os prazeres é seu direito básico, acreditam que o planeta cabe no seu umbigo.

E então adolescentes de tranças enfiam o dedo na sua cara e dizem: “Cresça!”. Estes adolescentes de cara redonda, alguns com espinhas, condenam o grande objeto de consumo do século 20, o carro, e também o avião. Eles pedalam e usam transporte público. Condenam a indústria dos combustíveis fósseis, e as corporações colocam seus lobistas a disseminar notícias falsas contra eles. Condenam o consumo de carne e não só a indústria, mas também a constelação de chefs estrelados se sente em risco. Dizem que é melhor não comprar roupas e outros objetos, mas sim trocar e reciclar, e colocam a indústria da moda em xeque. E fazem isso rápido, porque a velocidade também mudou.

A Geração Greta propõe ainda uma mudança radical na experiência do tempo. Por um lado, não há mais tempo. Segundo os cientistas, há pouco mais de uma década para tomar as medidas capazes de conter o superaquecimento global e manter o aumento da temperatura no limite de 1,5 graus Celsius. Se este limite for superado, maravilhas como os corais desaparecerão do planeta e milhões serão condenados à miséria e à fome – para além do contingente que já sofre privações extremas.

O que está em jogo hoje é se a Terra será muito em breve um planeta ruim ou francamente hostil para a espécie humana. Os jovens ativistas climáticos sabem que há enorme diferença entre o ruim e o hostil. Mas, como convencer os adultos e os tomadores de decisão, se eles parecem vivem como se não houvesse amanhã e, por assim viverem, talvez não exista mesmo amanhã? Como convencer aqueles que esgotam os recursos em nome do gozo imediato que o amanhã está logo ali e será ruim para todos, ainda que muito pior para os que menos contribuíram para o esgotamento do planeta?

A Geração Greta propõe responder à emergência climática com uma vivência diferente do tempo e do espaço. “Fiquem no chão”, é o que dizem aos adultos, ao afirmarem que o uso dos aviões deve ser restrito a urgências reais. Para dar o exemplo, Greta viajou num barco à vela da Europa aos Estados Unidos, para participar da Cúpula da ONU. Outras lideranças europeias da juventude climática, como as belgas Anuna de Wever e Adélaïde Charlier, acompanhadas por duas dezenas de jovens ativistas, iniciarão no início de outubro uma travessia que durará semanas, velejando rumo ao Chile, para participar da Cúpula do Clima.

A imagem é forte. Em vez de colonizar a América Latina com essa versão contemporânea das caravelas, as adolescentes defendem com seu gesto a descolonização da Europa (e dos Estados Unidos) e das mentes que vivem para consumir também o tempo. Entre um país e outro, já não pode mais ser um pulo. Há que se viver a jornada e compreender a distância com o corpo. Há que se produzir localmente e consumir localmente. Sem venenos nem transgênicos. O supérfluo não é mais o necessário, como a publicidade infiltrou nas mentes nas últimas décadas. Não é uma escolha, apontam. O tempo das escolhas entre o bom e o melhor acabou. É isso ou a catástrofe será ainda maior.

Basta que cada um olhe para sua própria rotina, neste exato momento, para compreender o tamanho da ferida narcísica que a Geração Greta está abrindo no corpo de seus pais e irmão mais velhos. A reação truculenta, que se verifica tanto à extrema direita como à extrema esquerda contra as ativistas adolescentes, com um número crescente de ataques e de disseminação de Fake News, era previsível. O grito desta geração atinge os interesses de poderosas corporações transnacionais e demanda mudanças de hábitos a pessoas que sempre se consideraram em dia com a pauta ambiental, achando que bastava reciclar seu lixo para ser uma “pessoa do bem”.

Adultos costumam dizer às garotas do clima: “Vocês me dão esperança”. E Greta e outras líderes respondem: “Não quero sua esperança. Eu não tenho esperança. Quero seu pânico, quero que você sinta o medo que eu sinto todos os dias”. Não é força de expressão. Bem informadas, elas sabem que, com os governantes que aí estão, a contagem regressiva está contra a humanidade e contra todas as espécies que o modo de vida capitalista arrasta em sua lógica de consumo. É provável que o planeta aqueça a 3, 4 e até 5 graus.

A não ser que a população global faça um levante. O que também testemunhamos é a mais vital adaptação humana à emergência climática: uma geração que prescinde da esperança exatamente para ser capaz de romper a paralisia e lutar. Abrir mão da esperança, mas não da alegria de lutar junt@s, é a potência da Geração Greta.

A novíssima geração de ativistas do clima reflete o momento histórico e antecipa o futuro. Há meninos, claro. Mas basta olhar para os movimentos para perceber que as principais líderes são mulheres. Ainda que o rosto de boneca de souvenir de Greta seja a face desta geração, em cada país há líderes com discurso inspirador e atuação forte. Além do protagonismo feminino, cada uma destas mulheres carrega para a luta particularidades importantes. Greta anuncia sua condição de Asperger. Não como uma doença, bem entendido. Mas como uma diferença, um “superpoder” cujo foco e capacidade de concentração têm sido determinantes para a luta climática. A belga Anuna de Wever declara-se “fluida de gênero”. E defende que essa condição lhe permite buscar outras maneiras de ser e de estar este mundo, sem agarrar-se aos dogmas impostos por aquilo que se costuma chamar de “normalidade”. Essas líderes levam à luta pelo planeta a possibilidade de enxergar as diferenças como uma força, um ativo positivo diante dos desafios da emergência climática.

Neste mundo de muros, arames farpados e fronteiras armadas, a insubordinação maior da mensagem desta geração é o apelo para que sejamos capazes de fazer uma comunidade global e lutarmos pela nossa casa comum. É a sua recusa de se dobrar à ordem de Trump, Bolsonaro e outros déspotas eleitos. O melhor que podemos fazer, nós, adultos imperfeitos e aquém dos desafios deste momento histórico, é nos colocarmos radicalmente ao seu lado.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

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