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Tribuna
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Greta Thunberg: das vozes e dos silêncios

Grupo de professores e profissionais da saúde mental discute a discriminação exposta nos ataques à ativista sueca que tem inspirado o mundo e tem Síndrome de Asperger

Great Thunberg em protesto perto da ONU em 30 de agosto.
Great Thunberg em protesto perto da ONU em 30 de agosto. BRYAN R. SMITH (AFP)

Greta Thunberg dá vida a causa climática. E a causa climática lhe dá vida. Quem conhece a experiência de viver uma causa humanitária, sabe bem que essas duas direções são inseparáveis, e que é assim que se funda o compromisso e a responsabilidade do sujeito com o mundo que habita. O alcance que a voz de Greta atingiu para falar sobre o maior desafio da trajetória humana fez o mundo perguntar quem é ela.

Em tempos de internet, a resposta é rápida: Greta é uma garota de 16 anos que vive na Suécia com sua família, anda de bicicleta, frequenta a escola, usa tranças no cabelo, escolhe comida vegana. Autista. Organiza manifestações de alto impacto e frequenta cúpulas e parlamentos internacionais para falar sobre o clima. Sim, Greta tem o que dizer sobre o colapso climático.

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Entre tanto que há para se conhecer sobre uma pessoa é a sua condição autista e a sua idade que impressionam. Para muitos, esses fatos incrementam a admiração pelo nível do seu conhecimento e pela potência do seu movimento. Greta tem menos de duas décadas de vida para saber tudo que sabe, e, ao mesmo tempo, moveu muito mais do que nós fomos capazes de compreender e articular, ainda que estejamos há mais tempo que ela no planeta. Outros, aqueles que desconsideram a ciência, e decidiram que a crise climática é ainda um problema periférico, fazem um uso leviano da sua condição para atacar Greta e desqualificar o rigor de seus argumentos e a coerência de seus gestos.

Isso tem nome: capacitismo. Preconceito irmão do machismo e do racismo, ele se insurge contra os corpos e funcionamentos que não seguem o padrão de uma época, e situa as pessoas com outros modos de habitar e experimentar o mundo na condição de incapazes, inferiores, sem voz e sem direito à participação na sociedade. Essa forma odiosa de discriminação tem sido usada contra Greta como estratégia para silenciar uma voz que questiona as estruturas que levaram ao colapso climático e confronta interesses poderosos.

Greta afirma em suas redes socias: "Eu tenho Síndrome de Asperger e isso significa que algumas vezes sou um pouco diferente da norma. E —dadas as devidas circunstâncias— ser diferente é um superpoder" .

Tudo o que Greta faz não acontece apesar da sua Síndrome de Asperger. Ela avança sobre o mundo do conhecimento e da ciência e conquista, de maneira absolutamente hábil, espaços para fazer sua voz ecoar bem alto. Greta atinge uma causa que é muito maior que ela mesma, e que não deixa ninguém que está vivo de fora. Antes de uma suposta vida adulta, Greta sabe fazer o que muitos adultos não querem saber e fazer. Seu "superpoder" é fazer um movimento no mundo.

Sua pouca idade não anula seu gesto. Por que o fato de ser criança ou adolescente anularia o que se tem a dizer? A ideia de crianças ingênuas e manipuláveis desconhece as possibilidades do saber de uma criança sobre a própria vida. A responsabilidade do Estado, das comunidades e dos pais, como adultos mediadores da experiência, não pode produzir impedimento à possibilidade de um sujeito dizer de si. Ao contrário, escutar as crianças é passo fundamental para que possamos cumprir a nossa tarefa com elas. Greta, aliás, não está fazendo nada diferente disso: ela se movimenta demandando o cuidado com o mundo para que crianças ganhem a chance de serem adultos aqui. Quem pode duvidar da sua verdade?

Com seu movimento, Greta pauta também a importante discussão sobre o que está envolvido no diagnóstico de Síndrome de Asperger e o seu impacto para a pessoa diagnosticada. Como o capacitismo naturaliza as desigualdades e violências que alguém sofre na vida, esse preconceito faz supor que a condição de alguém ter um diagnóstico tira o valor da verdade do que um sujeito tem a dizer. A comunidade Aspie e o movimento dos neurodivergentes, porém, não se reconhecem como portadores de uma doença: afirmam sua condição atípica de abordar e conhecer o mundo, de questionar aquilo que nos parece tão cotidiano e cristalino e principalmente de questionar se esses diagnósticos não acabam por se tornar uma forma de exclusão da diversidade da experiência humana.

A Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência apresenta um paradigma que é fácil de compreender. Ao invés de tentarmos corrigir os corpos lidos como deficientes para enquadrá-los a uma sociedade excludente, nossos esforços precisam se dirigir ao reconhecimento e, sobretudo, ao enfrentamento das barreiras que impedem o acesso de qualquer pessoa à participação e ao convívio na cidade. É o que entendemos do que Greta refere como “dadas as circunstâncias adequadas” .

Demoramos muito tempo para entender que as lutas das diferentes populações sensíveis a uma série de violações não poderiam caminhar separadamente. Greta é mulher, autista e adolescente. Em decorrência da defesa intransigente que faz de causas tão grandiosas, vive ainda mais intensamente o efeito perverso dos fascismos cotidianos que saem ostensivamente dos armários, closets, porões e dos esgotos. Ela sabe disso, e responde: "Quando haters escolhem criticar sua aparência e suas diferenças, isso significa que eles não tem mais para onde correr".

Hoje, cabe a cada um de nós garantir a sua possibilidade de fala. Não para tomá-la como triplamente indefesa. Mas para fincarmos posição sem recuos ao seu lado.

Assinam este texto:

Ilana Katz, psicanalista, pesquisadora de pós doutorado no IP/USP.

Ricardo Lugon, psiquiatra da infância e adolescência, professor do curso de psicologia da faculdade IENH e do curso de Medicina da universidade Feevale, doutorando do PPG de Psicologia Social e Institucional da UFRGS.

Biancha Angelucci, psicóloga, Professora doutora da Faculdade de Educação da USP

Luciana Togni de Lima e Silva Surjus, Terapeuta Ocupacional, Doutora em Saúde Coletiva, Docente do Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva - Unifesp.

Maria Aparecida Moyses, pediatra, Professora Titular de Pediatria da Unicamp, militante do Despatologiza.

Cecília Azevedo Lima Collares, educadora, Professora Associada Faculdade Educação Unicamp, militante do Despatologiza.

Maria de Lurdes Zanolli, Pediatra, Sanitarista, Professora Doutora do Depto de Pediatria/Faculdade de Ciências Médicas-FCM/Unicamp.

Iolete Ribeiro da Silva, psicóloga, Professora Associada da Universidade Federal do Amazonas.

Barbara Costa Andrada, psicóloga, pequisadora no NUPSSAM/IPUB/UFRJ.

Cláudia Mascarenhas, psicanalista, Instituto Viva Infância.

Maria Cristina Ventura Couto, psicanalista, Doutora em Saúde Mental pelo Ipub/UFRJ. Pesquisadora do Nuppsam/Ipub/UFRJ.

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