A minoria radical que ameaça a democracia na Colômbia
Todos os esforços do uribismo parecem se dirigir a evitar a verdade que possa emergir dos testemunhos dos militares na Jurisdição Especial para a Paz
Em 5 de janeiro de 1895, sob uma ligeira nevada em Paris, o capitão Alfred Dreyfus, de 34 anos, foi degradado após ser condenado como traidor em um conselho de guerra. Arrancaram-lhe os galões, que foram jogados no chão, as insígnias, as faixas vermelhas das calças. Seu sabre foi quebrado em dois pedaços. A multidão, amontoada contra as grades da Escola Militar, vociferava: “Morte aos judeus”. A seguir, foi enviado à ilha do Diabo, de onde ninguém esperava que saísse vivo. As provas contra o capitão eram extremamente frágeis. Mas sua condição de judeu, em um momento em que o antissemitismo levantava com ferocidade suas sujas garras na Europa, inclinou a balança contra ele.
A história é bem conhecida. E, entretanto, a leitura nos últimos dias de uma obra de Jean-Denis Bredin intitulada simplesmente L'Affaire, talvez o livro definitivo sobre o assunto, recordou-me em muitos momentos, e por isso as relatarei depois, as vicissitudes e angústias que a Colômbia atravessa hoje.
Pouco depois da sentença, os militares que inicialmente exageraram as provas para condenar Dreyfus por passar informações à Alemanha, entre eles vários generais, souberam com certeza que ele era inocente. Em lugar de desfazer a ofensa, encobriram suas responsabilidades falsificando documentos e acusando outros inocentes. O que começou como um erro judicial logo se transformou em uma operação de Estado, uma máquina de produzir delitos durante os anos seguintes — alguns deles delirantes — para encobrir o erro inicial.
A Colômbia não vive um caso Dreyfus. Mas dos paralelismos com aquele episódio cabe extrair valiosas lições sobre os riscos que a atual polarização política — e sua conseguinte espiral destrutiva — acarreta para os colombianos.
Quando, dois anos depois, surgiram os primeiros indícios de que o caso era uma montagem, a França se partiu em duas. Aqueles que tinham algo a perder se o caso Dreyfus fosse revisto e o capitão acabasse absolvido (o Exército, a Igreja, os partidos conservadores, os antissemitas, a aristocracia) negaram-se violentamente a permiti-lo. Diante deles, progressistas diversos, intelectuais, socialistas, juristas escrupulosos, muitos deles conservadores, mas escandalizados pelas grosseiras violações durante o processo, fizeram da revisão uma questão de princípios: o direito e a verdade antes da obediência cega à autoridade.
Há algumas semanas, uma manhã chuvosa em Bogotá — com perdão da redundância —, me reuni com um magistrado em seu escritório do Palácio de Justiça. Em 1985, o edifício sofreu um ataque de guerrilheiros do M-19, um de tantos grupos terroristas que a Colômbia produziu nas últimas décadas. Eles tomaram numerosos reféns, e tudo acabou em tragédia quando um assalto por parte das forças de segurança, mal planejado e pior executado, deixou 98 mortos, entre eles 11 magistrados. Alfonso Reyes Echandía, presidente da Corte Suprema, foi um dos falecidos.
Minha conversa com esse magistrado se prolongou por quase uma hora, depois da qual se fez um silêncio. Olhou pela janela — no que me pareceram segundos eternos —, voltou-se para mim, passou a mão na testa em um gesto de cansaço e murmurou: “A Colômbia está em uma situação crítica”.
Friedrich Dürrenmatt, o escritor suíço, construiu este diálogo em sua peça teatral de 1946 Es Steht Geschrieben (“está escrito”):
– Senhor, o povo passa fome.
– O povo sempre passa fome.
A Colômbia sempre está em uma situação crítica, alguém poderia argumentar também. Desde meados do século passado, a chamada “violência”, uma espécie de guerra civil não declarada, deixou centenas de milhares de mortos e milhões de refugiados internos, até desembocar quase imediatamente na aparição e expansão de vários grupos guerrilheiros. Com o tempo, o maior e mais potente deles, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), chegaria a pôr o Estado contra as cordas e ocuparia uma parte considerável do território nacional.
As décadas de guerra deixaram outros 250.000 mortos e milhões de refugiados internos, assim como atrocidades de todo tipo por parte dos principais atores no conflito: as guerrilhas, os grupos paramilitares, criados supostamente para lhes fazer frente dada a impotência do Estado, e o próprio Exército, que teve alguns comandantes envolvidos em casos tão horrendos como o dos chamados “falsos positivos”, em que 4.000 cidadãos inocentes foram assassinados para que fossem apresentados como guerrilheiros abatidos.
Do escândalo francês cabe extrair valiosas lições sobre os riscos da polarização política e da espiral destrutiva
As cifras assim apresentadas melhoravam as estatísticas do Exército e permitiam aos soldados receber recompensas. Os grupos paramilitares, por sua vez, contaram com o apoio aberto ou encoberto dos grandes latifundiários e empresários. Incontáveis hectares mudaram de mãos. Tudo isso, como se verá depois, tem muito a ver com a crise atual.
No começo de dezembro de 2016, o Congresso aprovou o acordo de paz que o presidente Juan Manuel Santos tinha alcançado com as FARC, depois de perder por margem mínima o referendo que deveria ratificá-lo. Depois de introduzir a maior parte das demandas exigidas pela oposição, o acordo foi validado por 205 votos a favor (somando Câmara e Senado) e nenhum voto contrário.
O texto descreve de forma prolixa os instrumentos e compromissos para tirar a Colômbia de quase um século de violência. Entre eles se destaca a Jurisdição Especial para a Paz (JEP), um tribunal encarregado de julgar, com regras especiais, os protagonistas do conflito: guerrilheiros, militares e outros. O partido do ex-presidente Álvaro Uribe se absteve.
Hoje entretanto, três anos depois, as investidas contra a JEP, a Corte Constitucional e a Corte Suprema dos uribistas, a fração mais radical do Centro Democrático — partido no poder, com o presidente Iván Duque na Casa de Nariño — abriram uma crise de consequências imprevisíveis, da qual muitos colombianos não parecem conscientes. Nessa batalha vale tudo: o discurso desmedido; os ataques ad hominem; a avalanche no Twitter sob a bandeira de #cortecorrupta; os insultos. Em conjunto, tudo isso revela com clareza a filigrana de uma estratégia: liquidar estas cortes.
Aos olhos de não poucos observadores estrangeiros, a Colômbia pode parecer o país do juridiquês. “É precisamente para tratar de evitar a contestação ao poder”, disse-me um dia, a modo de explicação, o ex-presidente César Gaviria. As mesas-redondas radiofônicas são um exemplo. Com frequência derivam em deliberações próprias de uma corte de cassação. A extensão e a prolixidade das discussões jurídicas, com abundantes citações de leis, artigos e precedentes, afugentariam a audiência em qualquer outro país. Na Colômbia, entretanto, ocupam espaços preferenciais na maioria das emissoras.
Nesse contexto, defender a lei pode ser impopular, como qualquer juiz em uma democracia avançada sabe por experiência própria. Os uribistas mais radicais demonstraram saber utilizar de forma extraordinariamente hábil o ódio dos colombianos às FARC. Escolhem bem os casos, como o do ex-guerrilheiro Jesús Santrich, hoje foragido da justiça, ou de um promotor corrupto da JEP, com os quais golpear de forma eficaz o conjunto da Justiça. A fuga de Santrich, depois de uma rocambolesca peripécia jurídica e policial, trouxe um enorme capital político aos uribistas, que o puseram de forma imediata a serviço de sua causa.
Naturalmente, depois de cinquenta anos de atentados, assassinatos, sequestros e atrocidades de todo tipo, os guerrilheiros têm pouco direito de reclamar a simpatia dos colombianos, ou da comunidade internacional. Mas “no caso de Santrich”, disse-me outro magistrado, “violaram-se absolutamente todas as garantias constitucionais; se em vez de Santrich ele se chamasse Juan Pérez e fosse um cidadão comum, já teria sido anulado todo o processo por violação de todas as garantias constitucionais”.
Desse paradoxo, conhecido em todas as democracias com legislações garantistas, alimentam-se os uribistas. O objetivo declarado do grupo, em múltiplas ocasiões e diversos fóruns, consiste há meses em forçar uma assembleia constituinte cujo único objetivo consista em remodelar as altas cortes, reduzir seu número (uma só seria seu tamanho ideal) e, presumivelmente, obter sua docilidade.
Aqueles que tinham algo a perder (o Exército, a Igreja, os conservadores) em caso de revisão do caso Dreyfus se negaram violentamente a permiti-la
Isto é, “derrubar o que há”, na expressão precisa de um dos magistrados consultados. As altas cortes são principalmente três: a Corte Suprema — onde Uribe arrasta um grave litigioso —, a Corte Constitucional e o Conselho de Estado. Muitos acrescentam também a JEP, por sua posição especial decorrente da legislação nacional e dos acordos internacionais. Este último ponto é importante. Vários magistrados me expressaram sua convicção de que “na estrutura judicial a redor da paz, especialmente a JEP, sobrevivemos graças à ONU e à União Europeia”.
Conscientes ou não do paralelismo — e cabe suspeitar que sim —, torna-se surpreendente a proximidade intelectual do uribismo radical com algumas das estratégias da ultradireita internacional. Steve Bannon, depois de ajudar Donald Trump a conquistar a Casa Branca, há algum tempo vem tentando organizar e doutrinar as dispersas forças da extrema direita na Europa a partir do convento cartuxo medieval de Trisulti, na Itália. Sua mensagem aos radicais europeus: se você quer mudar de maneira fundamental uma sociedade, primeiro terá que rompê-la. A partir daí, impor suas propostas. Para os uribistas, a mais destacada delas consiste em liquidar a JEP.
Mas por que esse afinco em desmantelar uma instituição derivada de um acordo aprovado sem votos contrários no Congresso há apenas três anos e que está, ao menos teoricamente, protegida pelos fiadores internacionais do acordo de paz?
O mandato principal da JEP consiste em extrair confissões, em troca de benefícios penais, de todos os participantes no conflito, durante o qual foram cometidas atrocidades de todas as partes: guerrilheiros, militares e outros. Extrair a verdade do conflito. Quem fez o que, quando e por ordem de quem. Todas as fontes consultadas, tanto dentro das cortes como fora delas, concordam que as investidas do uribismo não são senão objetivos intermediários para alcançar os três objetivos que realmente lhe importam.
O objetivo declarado dos seguidores de Uribe consiste em forçar uma assembleia constituinte para remodelar as altas cortes
O primeiro deles é evitar a verdade. Este é talvez o principal paralelismo com o caso Dreyfus. Desde que em 1896, dois anos depois do primeiro conselho de guerra, surgiram as primeiras provas do erro judicial, graças aos esforços e à honestidade do chefe da contraespionagem, o tenente-coronel Georges Picquart, um grupo de generais articulados ao redor do Estado-Maior se desvelou em impedir que a verdade fosse conhecida. Fabricaram-se mais falsidades. Picquart foi mandado para a prisão. E um segundo conselho de guerra terminou com uma nova condenação de Dreyfus.
Na Colômbia, todos os esforços do uribismo parecem se dirigir a evitar a verdade que possa emergir dos testemunhos dos militares na JEP, que salpicariam sobretudo generais e outros altos comandantes. Também empresários e latifundiários. A verdade dos guerrilheiros tem, em termos políticos, escasso interesse: todos os colombianos conhecem a lista de atrocidades de que são culpados.
A verdade que mais interessa é a dos membros das forças de segurança, a maioria militares, que se enquadraram nos benefícios do processo de paz após admitirem ter cometido delitos graves. Especialmente alguns generais e outros militares de alta patente. Essa é a verdade que mais temem, também, aqueles que lhes deram ordens, os políticos que ajudaram ou os latifundiários que se beneficiaram.
Depois de visitar o Palácio de Justiça, no mesmo dia, fui a uma entrevista com Yesid Reyes do outro lado da cidade. Reyes, um jurista conceituado, é advogado, foi ministro da Justiça e depois assessor de Santos na etapa final das negociações com as FARC em Havana. Atualmente, atua como diretor do Centro de Pesquisas em Filosofia e Direito da Universidade Externado, uma instituição privada fundada em 1886 em Bogotá. Um quadro, pendurado de forma discreta no corredor que conduz ao seu escritório, mostra o Palácio de Justiça envolto em chamas, em 1985, depois do ataque das forças de segurança contra os guerrilheiros que o tinham ocupado. Do meio das chamas surge, de forma delicada — agora parece que se vê, agora não — o rosto do então presidente da Corte Suprema, Alfonso Reyes Echandía.
Yesid Reyes é filho de Alfonso Reyes Echandía. Trata-se de uma conexão que certamente não surpreende ninguém na Colômbia, um país onde as intrincadas relações políticas e pessoais de uma estreita elite, endogâmica inclusive na comparação com as endogâmicas elites no resto da América Latina, explicam muitas de suas rixas públicas — e também a comodidade com que, longe dos holofotes, os protagonistas se esbarram por aí.
Mas, em política, as consequências desta endogamia podem ser nefastas. Como escreve León Valencia, diretor da Fundação Pares, em seu livro El Regreso del Uribismo, a Colômbia “foi governada desde o princípio do século XX por cinquenta famílias que se negaram a reformas estruturais e mudanças profundas”. Depois da recente demissão do procurador-geral Néstor Humberto Martínez (entre outras razões por ter sido advogado de uma empresa investigada pelo Ministério Público no caso Odebrecht), uma das preocupações nas mesas-redondas nas rádios — sem indício algum de ironia — era como encontrar alguém com porte suficiente para ser procurador-geral e que não tivesse tido relações com alguma das empresas candidatas a serem investigadas.
Iván Duque chegou à presidência há um ano com uma mensagem centrista, um relato que com dificuldade tratou de manter
Em um rompante de anarquismo inconsciente, Martínez alegou que se demitia por discordar da decisão da JEP de liberar Santrich (em que país um promotor se demite por discordar da decisão de um tribunal, em vez de simplesmente acatá-la?). Uribe correu a lhe pedir que ficasse para defender a legalidade (frente ao ataque dos tribunais?), mas Martínez foi embora assim mesmo, e o ex-presidente, hoje senador, perdeu um fiel aríete em suas constantes manobra de ataque.
A tentativa de evitar a verdade, entretanto, tem possivelmente as pernas mais curtas do que os inimigos desta imaginam. Reyes acredita que a estratégia do uribismo de desmantelar a JEP é só chutar a bola para frente. “Se o Estado não investiga, através da JEP, os crimes dos militares, intervirá o Tribunal Penal Internacional (TPI)”.
O TPI foi fundado em 1998 para perseguir e julgar crimes de guerra, genocídio e contra a humanidade. Atualmente, tem cerca de 30 casos em situação de “pré-monitoramento” na Colômbia. Trata-se de militares e de “terceiros”, eufemismo que engloba empresários e latifundiários. “Os guerrilheiros não [serão investigados], ou só em última instância, porque já foram investigados pelo Estado, se não por todos, ao menos pela maioria de seus crimes; o TPI só age quando isto não acontece”, explica Reyes. “[Rodrigo Londoño, o líder guerrilheiro conhecido como] Timochenko foi condenado a 400 anos de prisão, só que depois não foi possível capturá-lo. Se acabarem com a JEP, entra o Tribunal Penal Internacional”. Seria, efetivamente, chutar a bola para frente. Muitas vezes isso basta para alguns políticos.
O segundo assunto que de verdade importa ao uribismo, conforme concordaram vários juízes, tem a ver com a propriedade da terra, o verdadeiro cavalo de batalha dos grandes latifundiários, entre eles o próprio Uribe.
Os títulos de muitas dessas terras têm uma origem duvidosa, ligado ao conflito e aos deslocamentos. Os proprietários não são partidários de remover esse passado. Alguns cálculos estimam que 70% das terras na Colômbia não estão legalizadas. Regular o cadastro fundiário significa questionar de forma frontal o direito à propriedade dos grandes proprietários. Quando isto acontece, a reação costuma ser violenta.
Um dos juízes com quem falei, no bar do meu hotel em Bogotá, relatou-me as ameaças que recebeu, inclusive de morte, no início da sua carreira judicial — muito antes de chegar à alta corte da qual agora é membro —, justamente por uma disputa que ameaçava a propriedade de um poderoso empresário. Por outro lado, a aplicação a sério do acordo de paz exigiria uma reforma agrária profunda, à qual, naturalmente, também se opõem.
Finalmente, há um subsetor do uribismo empenhado em reverter os avanços progressistas dos últimos anos em termos de direitos individuais, obtidos basicamente nas cortes de Justiça: aborto, adoção para casais homossexuais.
De forma paradoxal, o presidente Duque é uma das vítimas da tempestade política. Todos os magistrados com quem conversei concordaram que “levar pela frente tudo o que há” inclui o seu próprio Governo. Todos, também, esforçaram-se em separar o presidente dos radicais do seu próprio partido: “Não percebem que já não são mais oposição; talvez Duque seja o único que sim, porque a realidade de governar o fez ver”. Pessoas do entorno do presidente me reconheceram que alguns uribistas estão tornando sua vida impossível: “Os piores golpes vêm desse lado”.
A catarata de insultos e desqualificações se intensificou de uma forma que fica difícil não chamar de intimidatória
Duque, um político de 43 anos sem experiência prévia de governo, chegou à presidência há um ano com uma mensagem centrista, conciliadora, de unidade; um relato que tratou de manter com crescentes dificuldades. Pressionado pelos extremistas de seu partido, teve a governabilidade dificultada num grau que talvez não esperasse. O rancor levou a que leis e projetos importantes ficassem estancados ou caíssem no Congresso, onde seu partido não conta com maioria, daí o entendimento e a negociação com as outras formações ser a única maneira de governar. A intransigência do uribismo constitui hoje o principal obstáculo para articular soluções de Estado na Colômbia.
E depois há o Exército. Os militares não dispõem mais da influência e poder que tiveram na América Latina em décadas passadas. Mas seu controle da informação, seu corporativismo, seu espírito de grupo e, na Colômbia, um passado de excessos e ilegalidades no combate às diversas guerrilhas são uma dor de cabeça difícil de dirigir para qualquer Governo.
O caso de Duque não é uma exceção. Em 22 de abril, um ex-guerrilheiro desmobilizado, Dímar Torres, foi assassinado em Norte de Santander, um dos 32 departamentos que compõem a República da Colômbia. O ministro da Defesa, Guillermo Botero, disse que Torres tinha morrido a tiros após enfrentar um militar. Depois de saber-se que o ex-guerrilheiro havia sido torturado, Botero alterou sua versão, admitiu os fatos e atribuiu a mentira ao cabo do Exército envolvido no caso.
Botero é conhecido como um dos principais operadores do uribismo no Governo de Duque. Sob seu mandato, o Exército preparou diretrizes que poderiam estimular uma volta aos falsos positivos (retiradas quando o escândalo veio à tona), promoveu militares com um passado conflitivo nesse assunto (questionados pela oposição) e arrastou os pés quando a imprensa apontou vários generais como suspeitos de corrupção (posteriormente, vários deles foram detidos ou afastados).
Ao mesmo tempo, os assassinatos de líderes sociais e defensores dos direitos humanos em todo o país batem tristes recordes. Milhares de pessoas se manifestaram recentemente para exigir o fim desses massacres. O presidente soa mais genuinamente afetado de forma pessoal que muitos de seus ministros ou alguns de seus assessores. Luis Guillermo Echeverri, por exemplo, um dos ideólogos mais conspícuos do uribismo e assessor de Duque, declarou que os líderes sociais são assassinados “por ajustes de contas” em temas relacionados com o narcotráfico, o que causou o repúdio geral. Tudo isso soa bem para as bases sociais do uribismo, mas, politicamente, nada disso ajuda minimamente o presidente.
Que restem a Duque apenas três anos na presidência só complica a crise, pois muitos na sua própria formação já estão imersos nos cálculos para a próxima luta presidencial. “Você vai achar impossível de acreditar”, me disse um interlocutor próximo ao Governo durante um almoço num pequeno restaurante (de jeito francês) no bairro de La Candelaria. “Mas Paloma Valencia se vê presidenta em 2022; e todas as suas manobras e as de seu grupo vão nesse sentido”. Quando semanas depois perguntei a ela se pretendia se apresentar às próximas presidenciais, respondeu-me: “Não decidi”.
A senadora Valencia (sem parentesco com León Valencia) é uma uribista cujas intervenções, frequentemente polêmicas, sempre veementes, concentram o ideário do entorno do ex-presidente. Um grupo que nunca confiou em Duque e que, em reuniões privadas e com discrição, tende a menosprezá-lo. A quem reconhecem como líder natural é a Uribe.
Coincidentemente, a principal iniciativa legislativa de Valencia foi uma reforma da Justiça para obter uma única corte (o que representaria na prática a liquidação da JEP). A senadora dissocia sua posição contrária à JEP de suas hipotéticas aspirações presidenciais ou da atual conjuntura política. “Minha oposição à JEP é anterior”, afirma. “Comecei a brigar contra ela desde que a vi nos acordos; um dos pontos centrais do triunfo do não no referendo foi a necessidade de uma Justiça justa para os militares.”
Sua principal objeção consiste em que, tal como está desenhada a JEP, incluindo seus benefícios, os militares preferem recorrer a ela em vez de ficar nas mãos da Justiça ordinária, porque, como esta não leva em conta as circunstâncias da guerra e suas atenuantes, “sempre acabam condenados”. E depois há os princípios. “Tal como está desenhado, ao final são certos organismos internacionais que acabam escolhendo os juízes na Colômbia, como se fôssemos um Estado falido”, diz. “O que me nego a aceitar.”
Duque está consciente de como é estreita a margem de que gozou até agora, sem brilho na rua e sem governabilidade no Congresso. Sua popularidade desabou. Para qualquer observador imparcial, fica evidente que ele nunca contou com a simpatia de quem não votou nele: são os seus que o estão abandonando.
De minhas conversas (tanto com pessoas próximas do Governo como com as contrárias), deduzi que a única saída que se mostra muito possível para salvar sua presidência é reafirmar-se em sua vontade de unir o país e abrir-se a um diálogo com a parte mais moderada da oposição — mas só depois das eleições regionais deste ano —, o que com toda probabilidade enfurecerá o uribismo. Especialmente se isso acarretar a oferta de postos no Gabinete.
Meses antes, durante uma escala numa viagem de Cartagena à Cidade do México, parei em Bogotá para visitar a JEP. O ambiente era sombrio, de impotência resignada, como que sob a ameaça de uma catástrofe natural, um incêndio ou um furacão, que se sente vir, mas não se sabe muito bem como evitar ou o que fazer. Meus interlocutores explicaram os riscos que sentiam que o tribunal corria, e que o tempo viria a confirmar: a torrente de injúrias, as brigas políticas. “O presidente teve sempre boas palavras e nos tratou com cortesia”, disse uma fonte. Mas do uribismo esperavam o pior. A investida final.
E o que esperavam, a catarata de insultos e desqualificações, intensificou-se de um forma que fica difícil não chamar de intimidatória: castro-chavistas, corruptos, ineptos, vendidos ao dinheiro dos narcotraficantes e terroristas das FARC. Castro-chavista (entendido o adjetivo como aquele que, só ou em cumplicidade com outros, conspira para dissolver a nação e transformar a Colômbia em um apêndice político de Cuba e Venezuela) poderia ser hoje na Colômbia o equivalente a judeu, ou vendido ao dinheiro dos judeus, que cuspiam Barrès, Drumont, La Libre Parole e o L’Intransigent na França de 1900 contra jornalistas, juízes ou qualquer partidário de “dissolver a nação” por querer a revisão do caso Dreyfus.
Só que não é. E não é primeiro porque o racismo e o antissemitismo do caso Dreyfus, apenas uns 30 anos antes da ascensão de Hitler ao poder, não pode nem deve ser comparada levianamente com nada. Mas, segundo, e sobretudo, porque na Colômbia o furor castro-chavista seria uma farsa ridícula se não fosse por estar deslocando a sociedade, danificando suas instituições e deteriorando sua democracia em uma espiral de consequências imprevisíveis.
Que o acordo de paz não funcione tem ressonâncias terríveis. É ressuscitar o monstro. É arriscar-se à violência
Os terroristas das FARC eram castro-chavistas. A esquerda radical que a apoiava é castro-chavista. A esquerda moderada, também. Castro-chavista foi Santos, que em outro país passaria por um político de centro-direita (ele se diz de centro). Em sussurros e rodas de conversa, nos prolegómenos da candidatura presidencial, Duque foi apontado por seus adversários internos como castro-chavista e santista camuflado. Com semelhante progressão, dentro de pouco a Colômbia inteira será castro-chavista, com exceção do próprio ex-presidente Uribe e um punhado de seus mais fiéis acólitos.
As desqualificações e os insultos não se detêm nas fronteiras nacionais. A imprensa internacional se converteu, há algum tempo, em um dos alvos favoritos dos uribistas, sempre esporeados por seu líder. Uribe tem por hábito atacar nas redes sociais a mídia (os casos mais recentes foram o The New York Times e a The Economist, a bíblia do capitalismo mundial) cujas informações sobre o rumo do país em seu conjunto, ou ao revelar atos questionáveis, não se ajustam à sua ideia de Colômbia, de realidade em geral ou de ambas as coisas ao mesmo tempo. Isso, em um país onde ser conhecido publicamente dessa maneira, como todos sabem, acarreta sérios riscos, também — ou especialmente — para os jornalistas.
Pareceria ridículo ter que recordar que seguramente existem juízes corruptos – #cortecorrupta, a maledicência favorita do uribismo –, da mesma forma que há políticos corruptos, funcionários corruptos, policiais e militares corruptos, taxistas corruptos. Tanto na Colômbia como em outros países. E que os juízes também cometem erros. Mas é justamente o edifício institucional da Justiça, com seus recursos, cassações e altos tribunais, o que garante em última instância o império da lei. Derrubá-lo significa de forma inevitável acabar com este último.
Cegos às consequências de suas ações – ou talvez muito conscientes delas –, o fogo cerrado ameaça continuar. “Concentrar a paz na JEP, JEP, JEP, a jepização do processo”, diz Reyes enquanto salienta a palavra com um gesto severo da mão. “Concentrando o discurso, enquanto são esquecidos, boicotados ou sabotados todos os outros aspectos do acordo de paz: a reforma agrária, a substituição de cultivos, etc.… O objetivo é claro, quando tudo fracassar dizer: estão vendo, era um acordo ruim, não funcionou, agora vamos aplicar nossas receitas”.
Que o acordo de paz não funcione tem ressonâncias terríveis. É ressuscitar o monstro. É arriscar-se a voltar para a violência que ceifou tantas vidas. É voltar à necessidade de um caudilho que faça frente à ameaça. É, possivelmente, a principal esperança do uribismo de reconquistar o poder de forma direta, não por um terceiro interposto. E de silenciar a verdade.
Em 12 de julho de 1906, o capitão Alfred Dreyfus foi declarado inocente por unanimidade dos juízes do Tribunal de Cassação – todas as cortes reunidas (Chambres Réunies). “Analisado tudo”, disse o presidente na leitura da sentença, “da acusação inicial não resta nada em pé”. Nove dias depois, ele foi nomeado cavaleiro da Legião de Honra. Tinha passado quase cinco anos na prisão.
Por baixo das múltiplas vicissitudes judiciais, das provas falsas ou reais que inflamaram os franceses (o bordereau, o petit-bleu, o faux Henry) e que ocuparam milhares de páginas nos jornais da época – algo como as mesas-redondas radiofônicas hoje na Colômbia –, sempre ficou claro para todos que o que se situava de verdade no coração do debate entre dreyfusistas e antidreyfusistas era a defesa das instituições republicanas.
A maioria de historiadores sustenta hoje que, na França do começo do século passado, o caso Dreyfus afinal serviu à ordem republicana, reforçou a democracia e fortaleceu as instituições frente ao Exército e a Igreja. Permitiu que a verdade se instalasse no centro da vida política da República frente aos interesses espúrios de um grupo de generais traidores ou dos agitadores nacionalistas que os apoiavam. A Colômbia, com a JEP, não merece menos. Disso depende o futuro e a qualidade de sua democracia.
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