Guillermo del Toro: “Os dogmatismos me aterrorizam”
Cineasta mexicano estreia ‘Histórias Assustadoras para Contar no Escuro’, um filme de terror sobre o poder das mentiras com um protagonista latino. “Quero que o público entenda o que está acontecendo aqui e agora”, diz
A noite de Halloween de 1968 não foi mais um feriado de travessuras: aquela festa foi realizada cinco dias antes as eleições presidenciais de Richard Nixon, em um país radicalmente dividido em dois e em confronto pelas consequências da Guerra do Vietnã. Nesse ambiente hostil se desenvolve Histórias Assustadoras para Contar no Escuro, filme de terror escrito e produzido pelo mexicano Guillermo del Toro que estreia em um mundo e, especificamente, em um país, dividido em dois por causa do “dogmatismo, o que mais me assusta hoje em dia”, diz o cineasta. O tempo cinematográfico não tem nada a ver com o real, mas menos de uma semana depois do massacre de El Paso, em que um supremacista branco assassinou 22 pessoas, entre elas oito mexicanos, chega aos cinemas norte-americanos e espanhóis nesta sexta-feira [a estreia no Brasil está marcada para 26 de setembro]. Um filme com um protagonista latino, que encontra amizade cúmplice com um grupo de garotos amantes do cinema e de histórias de terror enquanto outros adolescentes pintam uma dolorosa mensagem no carro: “Espalda mojada” [em português, “costa molhada”, expressão que designa imigrantes latino-americanos ilegais nos EUA]. De repente, del Toro se tornou a voz de milhões de latinos que se sentem difamados por uma parte da população norte-americana e apontados com o dedo pelo presidente Donald Trump.
Duas horas antes da entrevista ao EL PAÍS, na madrugada espanhola de quarta-feira, Guillermo del Toro tinha inaugurado sua estrela na Calçada da Fama, em Hollywood. Com a bandeira mexicana na mão, o vencedor do Oscar por A Forma da Água definiu os dias atuais como de grande medo e divisão. Diante de um público entusiasmado que gritava em espanhol “Viva o México!” e “Viva Guillermo!”, o diretor explicou em inglês: “Vocês devem saber uma coisa, eu sou mexicano e sou imigrante. Como mexicano, receber essa estrela é um gesto e nenhum gesto hoje pode ser banal ou simples. É muito importante que esteja acontecendo neste momento”. Pouco antes ele havia pedido para “não ter medo”, porque o medo “hoje em dia é usado para gerar divisão, para nos dizer que somos diferentes, que não devemos confiar uns nos outros. Essas mentiras fazem que seja mais fácil controlar-nos e que nos odiemos uns aos outros”. Contra isso, del Toro propõe como antídoto “a união, o conhecimento de que essas divisões são fantasias. Fantasias nas quais vivem os políticos ou a Igreja”. E encorajou que os imigrantes “acreditem em suas possibilidades e não nos obstáculos”. “Ignorem as mentiras que dizem sobre nós”, insiste.
Pouco depois do discurso, del Toro, ao lado do diretor do filme, o norueguês André Ovredal, responde a algumas ligações da imprensa mundial. Quando chega a vez da entrevista ao EL PAÍS, del Toro começa em espanhol, até que por deferência a Ovredal —que substituiu o mexicano na cadeira de diretor quando este teve que renunciar a ela porque os projetos se acumulavam— passa ao inglês.
Pergunta. Que exista um personagem latino em um filme de terror, que chega à típica cidade mediana dos EUA, é uma tomada de posição clara. Uma proclamação que se acentua depois do massacre de El Paso.
Resposta. Não foi uma decisão acidental, mas uma decisão que eu tomei. O filme se baseia nos livros de Alvin Schwartz, que se desenvolvem nos anos oitenta [e nos quais não aparecem latinos]. Como mexicano, decidi incluir no meu roteiro Ramón, esse rapaz corajoso, sofisticado. Na tela, André conseguiu torná-lo mais profundo e bonito do que eu escrevi. E o que acontece entre ele e a garota protagonista, Stella, é uma linda amizade. Não quisemos que houvesse uma relação afetiva, nem uma história de amor com beijos. O amor que aparece é um amor entre iguais, entre pares que se entendem. Muito a propósito, procuramos uma garota nos antípodas daquelas que aparecem nos anúncios de Coca-Cola. Ela é esperta, espevitada, uma garota com a qual o espectador pode se sentir identificado e através de seus olhos apreciar Ramón também.
P. Esse presidente Nixon, que em seu filme não fica em boa situação por alguns comentários dos personagens, é um decalque de Donald Trump?
R. Falamos de qualquer presidente que tenha esse mesmo perfil. Personagens como esse se repetiram em muitos lugares, infelizmente, ao longo do tempo. E não só nos Estados Unidos. Hoje em dia aparecem políticos assim até na Espanha. É claro, em todo o continente europeu. Vale para todo aquele que chega ao poder usando mentiras e que se mantém no cargo com boatos.
Pedro Almodóvar, mestre de produtores
Há anos Guillermo del Toro produz jovens diretores e filmes que lhe interessam. "Pedro Almodóvar me ensinou quando produziu A Espinha do Diabo. É o melhor produtor que tive na vida. Ele me protegeu, me apoiou, me fez sentir valioso. Lembro-me de que, depois de uma discussão, ele sempre dizia: "Essa é a minha opinião, mas é o seu filme". E eu sigo essa máxima com meus diretores".
No intrincado mundo das entrevistas promocionais, os relações públicas norte-americanos avisam: só são aceitas perguntas sobre o filme. Mas o próprio del Toro está ciente de que seu cinema sempre implica grandes cargas políticas, sociais e meio ambientais. Histórias Assustadoras para Contar no Escuro obedece escrupulosamente aos seus mandamentos: “Minha intenção ao fazer esse filme e trazer a ação para 1968 é que o público entenda, através dessas aventuras, o que acontece aqui e agora. Histórias Assustadoras é um filme sobre as mentiras tanto na vida cotidiana quanto nos níveis mais altos Me assusta como os boatos se propagam pelas redes sociais, como se espalham histórias que podem te destruir. Uma história pode te curar, uma história também pode te destruir. A responsabilidade hoje em dia dos narradores, dos contadores de histórias, é enorme. E me refiro a cineastas, jornalistas, escritores, políticos, em geral, a todos. Como pai, você conta histórias aos seus filhos. Como amigo, me defino naquilo que narro aos meus colegas. Como membros de uma sociedade, vivemos sob a chuva das histórias dos Governos, e hoje te dizem que somos diferentes, que você não deve confiar nos outros, que só deve confiar no sistema. Isso é mentira”.
Em tempos difíceis, os políticos e a Igreja, havia destacado del Toro diante de sua estrela na Calçada da Fama, vivem em um mundo de fantasia. Uma fantasia sinistra? “Acredito que diante disso devemos nos opor com a arte. Por isso uso o meu cinema para explicar a sociedade. Veja, em uma primeira versão, A Forma da Água se intitulava A Forma da Água – Um Conto de Fadas em Tempos Problemáticos”. O cineasta mexicano tem muito medo do “império das ideologias”. E se explica: “A ideologia é a sabedoria dos tolos, daqueles que não têm interesse pelo outro. Esses dogmatismos me aterrorizam”.
A segunda vez que Guillermo del Toro pôs os pés em Los Angeles, estava terminando a pós-produção de Cronos (1993), seu primeiro longa-metragem. “Vim com dois amigos e com muito pouco dinheiro. Comprávamos a comida mais barata e nos divertíamos da única maneira grátis que encontramos: passear na rua". Em termos financeiros, sua vida melhorou, embora ele não seja um diretor que consiga dinheiro facilmente para seus projetos. “Continuo lutando e encorajo todo mundo a acreditar em suas possibilidades, e que podem fazer a diferença”. Além de imigrante, o que é del Toro? “Sou um cara estranho [usa em inglês o termo weird]. Temos que ser estranhos, ir ao mais profundo do nosso interior. Somente se formos honestos e autênticos com nossas almas merecemos ser quem realmente somos".
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