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Guillermo del Toro: “A emoção é o antídoto ao ódio, é o novo punk”

Cineasta diz que 'A Forma da Água', indicado a 13 Oscars, é seu filme "mais esperançoso"

Tommaso Koch
O diretor Guillermo del Toro, na filmagem de ' A Forma da Água'
O diretor Guillermo del Toro, na filmagem de ' A Forma da Água'KERRY HAYES TWENTIETH CENTURY FOX FILM CORPORATION

É costume dizer que a lei é para todos. E, nesse dia, o cidadão Guillermo del Toro dirigia rápido demais. Na aplicação da lei, um policial o parou e quis ver seus documentos. Aí começaram os problemas.

—Sua habilitação é mexicana.

—Claro, sou mexicano.

—Então o que faz em Beverly Hills?

—Vou me encontrar com um produtor.

—Com esse carro?

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O cineasta dá risada de seu veículo “não muito atrativo”, mas o assunto é tremendamente sério: “É claro que você sofre racismo como estrangeiro nos EUA”. E dá outra prova: após ganhar um Oscar por O Labirinto do Fauno, o diretor de fotografia Guillermo Navarro quis contratar um agente. Entre outras respostas, ao que parece, recebeu: “Para que preciso de um mexicano? Já tenho jardineiro”.

Contra tudo isso, Del Toro oferece um remédio nas telas: A Forma da Água, singular fábula política que venceu a Mostra de Veneza e é um dos favoritos ao Oscar 2018, cuja cerimônia de premiação acontece em 4 de março. “Vivemos em um mundo esquisito, onde ódio e cinismo são considerados inteligentes e se você fala de sentimentos parece um idiota. A emoção é o antídoto, é o novo punk. Por isso queria um filme apaixonado pelo amor e pelo cinema, minha obra mais esperançosa”, diz o diretor (Guadalajara, 1964) a um grupo de jornalistas na ocasião do festival Sitges, em outubro do ano passado.

Para narrá-la, imaginou um conto de fadas bem peculiar. Uma faxineira vive um insignificante dia a dia, é muda e por isso é ignorada. Até que, nas instalações onde trabalha, os serviços secretos prendem uma criatura aquática. Entre os dois excluídos surge um feitiço sem palavras, feito de química e olhares, onde o monstro por uma vez se torna o herói. “Queria um filme que fosse político obliquamente, não frontalmente. E ver é o ato supremo de amor. Se eu vejo você, garanto a sua existência. A ideologia pretende negá-lo, transformá-lo em uma coisa: um judeu, um mexicano, um pária”, explica Del Toro. Tanto que recomendou à sua protagonista, Sally Hawkins, embeber-se dos mitos do cinema mudo, de Buster Keaton a Charlie Chaplin, para preencher o papel com seus olhos e seus gestos.

Ele também revisou sua filmoteca. Não procurou monstros, mas indicações sobre como “mover a câmera” e “a dissolução da América”: de modo que recuperou o documentário Caixeiro-Viajante, sobre vendedores de bíblia de porta em porta, e musicais como Cantando na Chuva e Sinfonia de Paris. Com essa base, Del Toro se colocou diante de outro clássico, o relato de A Bela e a Fera, à caça de um novo caminho: “Foi contado de maneira perversa, destacando a bestialidade, e a puritana, onde dançam, cantam, ele vira um príncipe e talvez algum dia durmam juntos. O que me interessava era uma história de amor natural, que também tivesse sexo, mas não fosse o ponto central”.

O resultado encantou em Veneza – onde a entrevista foi realizada –, mas Del Toro jura que já estava satisfeito antes. “Se você arrisca muito e a obra sai como esperava, há uma recompensa automática, além do público. Esse é um filme feito na contracorrente, que é visto e sentido exatamente como eu queria”, explica. Parece que cineasta e fábula desenvolveram muito carinho, após os seis anos que passaram juntos.

Em 2011, Del Toro concebeu a ideia: uma história ambientada na Guerra Fria que mostrasse as contradições de hoje. E profética, porque à época o diretor não sabia que um xenófobo ocuparia a Casa Branca, mas predisse que “algo grave estava chegando”. No ano seguinte começou a elaborar A Forma da Água, e em 2013 pagou de seu bolso escultores e desenhistas para que tornassem realidade a criatura protagonista e as ambientações. Mais 12 meses e, por fim, o mexicano foi com um produto quase completo aos estúdios da Fox em busca de financiamento. O mesmo método que aplicou com O Labirinto do Fauno, sua obra mais aplaudida. E com resultado idêntico: obteve um sim tão sonoro que só um de seus desejos ficou de fora.

De modo que A Forma da Água não foi filmado em preto e branco, como ele o imaginou, mas a cores (escuras). Mas o resto se parece muito com a ideia original. “É muito difícil dirigir. Tentamos controlar centenas de vetores que se cruzam e afastam o filme de você: o som, o vento, um ator... Coppola dizia que é fazer malabarismos nos trilhos de um trem que se aproxima. Eu o vejo como construir um castelo de areia em meio a uma tempestade”, explica. Ainda assim, os fez de todos os estilos e tamanhos, do pequeno Cronos ao gigantesco Círculo de Fogo, do extravagante Hellboy ao inquietante A Espinha do Diabo. “Sou um outsider, muito comercial para o modo artista e muito artístico para o modo comercial”, sorri. E considera “um milagre” que tenha conseguido fazer o cinema que queria.

Mas o que vem depois é outro assunto. “Posso rodar um filme pensando em algo e ele ser visto de maneira diferente. A Colina Escarlate foi filmado como romance gótico e comercializado como obra de terror. O marketing é o mais frustrante do cinema, devem existir quatro diretores no mundo inteiro que podem condicioná-lo. Você dá uma opinião, mas não o comanda”.

POLÍTICOS DE MEDO

O que amedronta o pai de tantos monstros nas telas? “Nossos políticos! Estamos em um momento único, porque nunca vivemos além dos acordos que nos mantêm juntos. A civilização depende de regras imaginárias, mas as respeitamos para funcionar. Agora muitas desapareceram”, afirma Guillermo del Toro. E acrescenta: “Um país nunca se cura de uma guerra civil, seja a Espanha ou os EUA, como está sendo demonstrado”.

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