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Pelé x Di Stéfano, um duelo tão esperado quanto a revanche que nunca chegou

Há 60 anos, embate entre gigantes opunha pela primeira e única vez as duas maiores lendas da era romântica do futebol

De um lado, o Real Madrid e seu ataque dos sonhos, que reunia Gento, Puskas e Di Stéfano. Do outro, a formação embrionária do time que levaria o Santos a suas maiores glórias, liderada pelo jovem Pelé. Com o estádio Santiago Bernabéu praticamente lotado, aquele seria um confronto que jamais se repetiria. Dois times quase imbatíveis, dois craques no auge da forma. Em 17 de junho de 1959, aconteceu o jogo mais aguardado de uma época em que o futebol sul-americano ainda rivalizava de igual para igual com o europeu. O dia em que o Santos sucumbiu à categoria de Di Stéfano. E Madri se encantou de vez por Pelé.

Di Stéfano e Pelé posam para foto no estádio Santiago Bernabéu.
Di Stéfano e Pelé posam para foto no estádio Santiago Bernabéu.Acervo Santos FC
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Embora se tratasse de um amistoso, promovido em homenagem a Miguel Muñoz, que mais tarde se tornaria um dos treinadores mais longevos do Real Madrid, o que estava em jogo era o título imaginário de melhor time do mundo. Os anfitriões tinham acabado de levantar sua quarta taça consecutiva da Europa. Aos 32 anos, o argentino Alfredo Di Stéfano já empilhava prêmios individuais: Bola de Ouro, quatro artilharias seguidas do Campeonato Espanhol e a façanha de ter marcado gols em todas as finais europeias disputadas pelo Real.

Na condição de visitante, o Santos excursionava pela Europa ostentando um belo cartel na bagagem. No ano anterior, havia sagrado-se campeão paulista com mais de 140 gols, 58 deles anotados por Pelé. Despontando para o futebol mundial, ele foi a sensação do Brasil na Copa de 1958 ao conquistar o título inédito para o país e, na excursão com o Santos, já somava 14 gols em 13 partidas. Dois meses antes, foi vice da Copa América e artilheiro do torneio, com oito gols. Tudo isso aos 18 anos. As comparações a Di Stéfano, mais experiente e consagrado, começavam a pipocar em meio ao assombro universal diante de seu faro goleador.

Hospedada no antigo hotel Alexandra, a delegação santista foi recebida com festa e cercada de expectativas na capital espanhola. No entanto, o técnico Lula não queria que seu time se deixasse levar pelo clima de oba-oba. Impondo rígida concentração, explicava aos atletas a necessidade de fazer marcação individual sobre o craque adversário. “Foi recomendado que tivéssemos cuidado com o ataque do Real Madrid, principalmente com o Di Stéfano. O time deles era quase perfeito”, relembra Pelé ao EL PAÍS.

O jogo começou ao feitio do Santos. Logo aos 10 minutos, Pelé acerta um chutaço de fora da área e abre o marcador para os visitantes. Porém, envolvidos pelas movimentações ofensivas do Real, o conjunto praiano sofre três gols em 20 minutos do atacante Mateos, que ofusca as estrelas em campo ao aproveitar assistências preciosas de Di Stéfano. No segundo tempo, os brasileiros reagem com Pepe, em violenta cobrança de um pênalti sofrido por Pelé. Administrando a vantagem, os donos da casa voltam a ampliar com Puskas, mergulhando de peixinho para testar a bola dentro da área. O Santos é valente e Pelé não se dá por vencido. Mais uma jogada do camisa 10, chute forte, o goleiro espalma e o rebote fica com Coutinho, 16 anos recém-completados, que empurra para as redes.

A poucos minutos do fim da partida, o cansaço castigava os alvinegros. Sentiam a pesada sequência de compromissos na excursão (14 jogos em 25 dias e seis países diferentes) e o ritmo imposto pelo Real Madrid. “Eu fiquei sabendo do jogo no Bernabéu dois dias antes”, conta o ex-atacante Pepe, segundo maior artilheiro do Santos depois de Pelé. “Era jogo atrás de jogo. Nós estávamos exaustos.” Aos 38, Di Stéfano, que passou em branco na partida, apresentou sua última pitada de genialidade aos torcedores merengues. Avançou pelo meio com a habitual elegância e descolou um passe milimétrico nos pés de Gento, que fechou o placar.

Apesar da derrota por 5 a 3, a apresentação no Bernabéu serviu para valorizar o passe dos jogadores santistas. Filho de espanhóis, Pepe recebeu propostas de Barcelona e Valencia. Ficou balançado, pois seu sonho era levar os pais de volta para a Espanha. No jogo seguinte, o Santos foi a Corunha enfrentar o Botafogo pelo tradicional Troféu Teresa Herrera. Em uma exibição de gala, venceu o time de Garrincha, Didi, Nilton Santos e Zagallo por 4 a 1. Depois da partida, Pepe, que marcara dois gols, pegou o trem rumo a uma pequena vila da Galícia, onde conheceu a avó materna. A ligação familiar com o país não foi suficiente para convencê-lo de trocar o Santos pelo futebol europeu. “Naquela época, a gente tinha um vínculo muito forte com o clube”, diz.

Homenagem a Di Stéfano no Museu do Real Madrid.
Homenagem a Di Stéfano no Museu do Real Madrid.B.P.

Diante do Real Madrid, conta Pepe, o parceiro Pelé foi “o Pelé de sempre”. Driblou, arrancou, chutou e lançou, justificando todas as expectativas em torno de seu nome. O então presidente do clube merengue, Santiago Bernabéu, passou pelo hotel Alexandra para visitá-lo, mas, embora encantado com seu futebol, concluiu que ele ainda era muito jovem. Mais tarde, o Real tentaria contratá-lo, mas sem sucesso. “Com 16 anos, fiz meu primeiro jogo como profissional do Santos e, ao longo da minha carreira, sempre tive propostas de outras equipes. Nunca aceitei porque me sentia bem no clube que me revelou”, afirma Pelé.

Se, por um lado, jogar na Europa não era sua obsessão, o Rei sonhava com uma revanche contra o Real Madrid. Aquela virada sofrida em Chamartín ficou entalada na garganta. Além do cansaço acumulado na excursão, o Santos também reclamava de outra penalidade em cima de Pelé, que teria sido ignorada pelo árbitro. O clube chegou a propor duelos aos espanhóis, que alegavam falta de brecha no calendário para realização da partida. Pelo tira-teima, Pelé e seus companheiros topavam até mesmo voltar ao Santiago Bernabéu, onde Pepe acabou atingido por uma garrafa que havia sido arremessada em direção ao bandeirinha e, por azar, o acertou na cabeça. “Dei sorte de não ter pegado em cheio. Mas, depois do jogo, os dirigentes do clube vieram me pedir desculpas. Fomos muito bem tratados em Madri.”

Em 1965, surgiu a oportunidade para o reencontro. Os dois times decidiriam a final do quadrangular em que haviam superado Boca Juniors e River Plate, em Buenos Aires. No entanto, o Real Madrid desistiu de disputar a partida e abriu mão do troféu para o Santos. “Nessa época, o Santos provou que era melhor time que o Real. Com todo o respeito, o que aconteceu na Espanha foi um acidente”, diz Pelé, ainda ressentido pela chance negada de dar o troco aos espanhóis. “A grande prova de que esse jogo [no Bernabéu] foi um presente para o Real Madrid é que sua diretoria nunca aceitou uma revanche.”

Enquanto os jornais espanhóis rendiam manchetes ao “esplêndido triunfo do Real Madrid”, as publicações no Brasil se curvavam à maestria de Di Stéfano, exaltando sua capacidade de jogar para a equipe em contraponto a um Santos que jogava por Pelé. Em 2000, a FIFA elegeu o Real como maior clube do século XX. Depois daquele amistoso, sua geração de ouro conquistou mais uma Liga dos Campeões, uma Copa Intercontinental e outros quatro títulos do Campeonato Espanhol. “Acredito que o Santos foi melhor. Também ganhamos vários troféus pelo mundo”, pondera o Rei.

A equipe da Vila Belmiro ficou em quinto lugar na lista da FIFA. Passada a excursão em que somou 13 vitórias e cinco empates em 23 jogos na Europa, seu apogeu viria na década seguinte, quando faturou o bicampeonato das Copas Libertadores e Intercontinental, além de seis Brasileiros. Pelé e Di Stéfano nunca mais se enfrentaram. O argentino jamais disputou uma Copa, ao contrário do Rei, que ainda ganhou outros dois títulos mundiais com a seleção. A FIFA o reconheceu como o ‘Atleta do Século’, mas nenhum de seus feitos no futebol foi capaz de fazê-lo esquecer o jogo memorável em que Madri reverenciou duas majestades.

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