Corrida por aposentadorias e falta de concurso ceifam um terço do funcionalismo federal
Um em cada três postos está vago no Governo federal. E tendência é piorar o déficit. Especialistas e sindicalistas dizem que corte indiscriminado, e não caso a caso, é um erro
Salas da Receita Federal que antes comportavam dezenas de funcionários estão praticamente vazias e servidores reclamam que, assim, não há como fiscalizar bem e cobrar impostos. Em seis hospitais federais do Rio de Janeiro onde deveria haver quatro médicos plantonistas tem apenas um. O panorama das duas carreiras é emblemático do encolhimento do Estado no Brasil: hoje, um a cada três cargos existentes no Governo federal está vazio. E a tendência é que a situação piore, com uma corrida para se aposentar, já que o país está na iminência de aprovar uma reforma da Previdencia, e como consequência do veto aos concursos públicos anunciado recentemente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
Dados obtidos pelo EL PAÍS por intermédio da Lei de Acesso à Informação e do site Portal Brasileiro de Dados Abertos mostram que dos 781.229 cargos previstos em lei, 253.276 estão desocupados. Sem a realização de novos concursos nem a convocação de aprovados em disputas anteriores, seguirão vazios nos próximos anos. Entidades que representam o funcionalismo público estimam que há ao menos 3.000 servidores que poderão antecipar suas aposentarias nos próximos três anos, além de outros 100.000 que estão em abono de permanência, ou seja, já cumpriram todas as formalidades para pararem de trabalhar, mas seguem ocupando suas funções. O próprio Guedes faz uma previsão ainda mais drástica: “Cerca de 40% a 50% do funcionalismo federal irá se aposentar nos próximos anos e a ideia é não contratar pessoas para repor. Vamos investir na digitalização”, disse ele há algumas semanas.
“Quando a reforma da Previdência do Michel Temer chegou ao Congresso, houve uma corrida pela aposentadoria. Não tenho dúvidas de que quando a do [Jair] Bolsonaro começar a ser votada, o mesmo ocorrerá”, avaliou o auditor Rudinei Marques, presidente do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas do Estado (Fonacate). Anualmente, entre 12.000 e 16.000 pessoas se aposentam no Executivo. A exceção nos últimos anos ocorreu em 2017, quando ainda se discutia a reforma de Temer e 22.458 servidores federais deixaram seus trabalhos.
E com menos servidores, a tendência é que ou a qualidade dos serviços diminua ou alguns deles deixem de ser realizados. “Vários órgãos estão se adequando aos novos tempos. Estão fazendo mais com menos. Mas isso tem um limite. Vai chegar em um ponto em que não se poderá mais cobrar tanta eficiência”, analisou Marques. Uma das principais críticas aos planos do Governo é a régua indiscriminada: congelar concursos em todos os setores sem avaliar demandas específicas.
No início de abril, durante a comemoração dos 100 primeiros dias de Governo, por meio de um decreto, o presidente extinguiu 12.315 cargos que eram considerados obsoletos. Eram cargos que dificilmente seriam preenchidos e Bolsonaro apenas seguiu uma tendência mais ou menos constante de enxugamento que vem desde os anos 1990 —com exceção de algumas carreiras nos anos petistas. Especialistas, contudo, não são unânimes na defesa. “Esse decreto foi mais um na linha de factoides que o Governo vem buscando produzir para mostrar serviço ou que está modernizando a gestão pública”, avaliou Luiz Alberto Santos, professor da Fundação Getulio Vargas e consultor legislativo do Senado.
Essa política de enxugamento costuma se basear no discurso de que o Brasil se depara com uma máquina de funcionalismo estatal gigantesca. Porém, quando se compara com dados da Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidade que reúne as principais potências do mundo, nota-se que o Brasil tem menos mão de obra empregada no poder público, 12%, do que a média desses países, 22%. Nessa conta, inclui-se os três níveis públicos, estadual, municipal e federal. Apenas para efeito de comparação, nos Estados Unidos, 16,5% da mão de obra trabalham para o setor público.
“Dizer que a administração está inchada é uma balela. Desde 1991 mantivemos o mesmo número de servidores, mas houve expansão dos serviços de saúde, educação e segurança. Além disso, a população aumentou”, afirmou o presidente da Fonacate. De fato, da década de 1990 para os dias atuais, a população aumentou 42%, enquanto que o número de servidores teve uma variação negativa de 16%. Eram cerca de 630.000 e hoje são 527.953.
Receita, saúde e universidades
Entre as carreiras que quantitativamente há maiores déficits estão os médicos vinculados ao Ministério da Saúde (dos 25.000 previstos faltam 20.334). A categoria foi sendo drasticamente reduzida com a passagem dos hospitais para o comando estadual e municipal nos últimos anos. Os seis hospitais federais que seguem funcionando no Rio sofrem com o desfalque. Outras carreiras que lideram o ranking do déficit são os técnicos do Instituto Nacional de Seguridade Social (faltam 16.174), além de auditores (faltam 11.471) e analistas (faltam 10.144) da Receita Federal. Proporcionalmente, os maiores gargalos, todos com 99% de vacância, são nos seguintes cargos: agente administrativo do Ministério do Trabalho, delegado e escrivão de terceira classe da Polícia Federal, analista de tecnologia militar da Marinha, agente de saúde pública da Fundação Nacional de Saúde e gestor ambiental do Ministério do Meio Ambiente. Nos dados obtidos pela reportagem, não está claro quais desses cargos que estariam em processo de extinção.
Entre as autarquias e empresas públicas em que o déficit se destaca estão o Banco Central, com 2.753 servidores a menos do que previsto em lei, e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, com 207 vacâncias. Petrobras, Caixa e Banco do Brasil não responderam aos questionamentos alegando que as informações são estratégicas porque poderiam interferir na competitividade e a manutenção da saúde financeira das empresas.
Diretor de Estudos Técnicos da Associação Nacional dos Auditores da Receita Federal, Mauro Silva, diz que a ausência de profissionais do fisco impacta diretamente nos resultados da arrecadação. “Alguns setores de nossa economia, como o financeiro, o de alimentos e o de bebidas, seguem pujantes. Mas, sem pessoal, é difícil fiscalizar se está havendo sonegação”, disse. Conforme Silva, a redução da mão de obra é algo que antecede à gestão Bolsonaro, mas, caso o presidente não revise sua política de contratações, a expectativa é que ela se aprofunde. “Vivemos uma situação de abandono e tudo o que pensam é ‘vamos digitalizar e informatizar tudo que resolve’. Mas o cruzamento dos dados e a análise crítica depende de um ser humano atrás disso”.
Na área de saúde, a sensação de abandono é semelhante, conforme o presidente da Federação Nacional dos Médicos, Jorge Darze. “A situação atual é algo que esse Governo herdou, mas não pode alimentar por muito tempo. Nossa esperança é que não o faça”. Entre os médicos uma das queixas é a de que a União prefere investir na contratação de temporários do que em novos concursos. E, como o temporário tem um salário menor e não conta com estabilidade, dificilmente eles seguem no poder público. No Governo federal, o vencimento básico de um médico chega a 5.000 reais, enquanto que na rede privada, vai de 8.000 a 14.000 reais na mesma carga horária.
Entre as universidades, que terão um corte linear 30% em seus repasses, conforme anunciou nesta semana o ministro da Educação, Abraham Weintraub, o déficit de pessoal não chega a ser algo tão preocupante. Nas 46 instituições federais, o número de vagas abertas varia de 1,4% do total de cargos (é o caso da Universidade Federal do Rio de Janeiro) a 11,2% (na Universidade Federal do Sudeste do Pará).
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