Boeing enfrenta crise mais difícil de sua história
Empresa teme perda de confiança depois da morte de 345 pessoas em dois acidentes aéreos em cinco meses
A segurança é essencial para o negócio da Boeing. E poucos aviões são tão venerados quanto o B737. Esse modelo, que entrou em serviço há cinco décadas, é tão popular que a cada 1,5 segundo aterrissa ou decola de um aeroporto no mundo. Mas a reputação da aeronave ficou gravemente prejudicada depois que dois modelos de sua versão mais avançada caíram em cinco meses, deixando 345 mortos na Indonésia e na Etiópia, e isso pode ameaçar a própria existência da série Max se os passageiros se recusarem a voar nesses aviões.
A multinacional de Chicago enfrenta o que é considerada a maior crise em seu século de história e deve agir rapidamente para evitar que a ferida aberta fique cada vez mais profunda. Depois de um B737 Max 8 cair em 10 de março logo após a decolagem em Adis Abeba, muitos países começaram a fechar o seu espaço aéreo aos voos do modelo, proibição à qual também finalmente se juntaram os Estados Unidos. Apenas em duas ocasiões uma suspensão de voos como a atual foi ordenada: depois que um motor se desprendeu da asa de um DC 10 ao decolar em Chicago em 1979 e por causa do incêndio das baterias do B787 Dreamliner em 2013. Mas essas suspensões se deveram a falhas mecânicas que escapavam ao controle do piloto.
Desta vez, o motivo é muito diferente e coloca toda a indústria da aviação comercial em um território nunca antes explorado. A origem dos acidentes do Max não é atribuída apenas a uma falha de fabricação. As primeiras análises apontam para um problema que combina a automação e o fator humano. As caixas pretas do avião que caiu na Etiópia ainda estão sendo analisadas, mas há semelhanças desse acidente com o do aparelho da Lion Air em outubro de 2018 na Indonésia que afetam o sistema automático de estabilização (MCAS) e a capacidade de controle do piloto. A necessária mudança do software do sistema é, em princípio, mais fácil de resolver, mas também requer que o piloto entre na equação da solução. Neste caso, os pilotos devem se familiarizar de novo com o sistema modificado.
O desafio é enorme para o CEO da multinacional, Dennis Muilenburg, que enfrenta essa crise quando não está nem há quatro anos no cargo. Os danos à imagem, como aponta Craig Fraser, da agência de classificação Fitch, “podem ser substanciais”. A Boeing foi capaz de enfrentar episódios semelhantes. Mas o analista adverte que o custo pode ir além do B737 Max. E o mais complicado, acrescenta, será recuperar a reputação da empresa quando a solução for encontrada.
Rebelião global
Se o incidente com as baterias do Dreamliner servir como referência, essa crise foi resolvida em quatro meses. É o tempo que a Boeing está trabalhando na solução depois da queda do B737 Max 8 operado pela Lion Air. Cowen estima que serão necessários entre seis semanas e três meses para encontrar o remédio. Os analistas do Bank of America não descartam que a suspensão possa durar meio ano.
Sandy Morris, analista da indústria aeroespacial da Jefferies, olha mais para as circunstâncias da suspensão. Os dois acidentes desencadearam uma verdadeira "rebelião" contra a agência de aviação dos Estados Unidos (FAA na sigla em inglês). Poucas horas depois de dizer que o B737 Max era seguro para voar, o Reino Unido, a Austrália, a União Europeia e o Canadá proibiram a entrada do avião em seus espaços aéreos, "nunca se viu algo assim".
A FAA determina as normas que a indústria deve seguir no processo de certificação dos aviões de passageiros. Esse desenlace, concordam os analistas, está estabelecendo um precedente que poderia se voltar contra outros fabricantes, como a Airbus, se um de seus novos aviões estiver em uma situação semelhante. Mas, no caso da Boeing, significará mais exames ao aprovar a solução apresentada.
No Brasil, a Gol também anunciou a suspensão temporária dos voos com 737 Max 8. A empresa tem uma frota de 121 aeronaves Boeing, sendo sete modelos 737 Max 8. "Sendo segurança o valor número um da GOL, que direciona absolutamente todas as iniciativas da empresa, a companhia informa que por liberalidade, a partir das 20:00 horas de hoje [segunda-feira, 11 de março], suspenderá temporariamente as operações comerciais das suas aeronaves 737 Max 8", informou a empresa em nota.
A Boeing havia previsto realizar nesta semana o primeiro voo de teste do B777X, a versão eficiente do velho bimotor de longo percurso. Utiliza os avanços do B737 Max e do Dreamliner, possui os maiores motores que equipam um avião e as pontas das asas se dobram para operar na pista. A estreia foi adiada e é possível que o mesmo aconteça com o plano para desenvolver uma nova aeronave de tamanho médio.
Paralelamente, o veto global ao Max obrigou a Boeing a suspender as entregas de seu modelo mais popular. Os B737 saem da linha de montagem a um ritmo de 52 unidades por mês, com a ideia de levá-los a 57 países durante 2019. A empresa, que tem 5.100 pedidos desse modelo, precisa manter o ritmo de produção para que a suspensão não crie uma ruptura na cadeia de fornecimento. Agora os aviões ficam estacionados na pista em Renton (Washington).
Grande como um país
A sorte Boeing importa. Seu negócio é tão grande quanto a economia do Equador e maior que a da Venezuela ou de Luxemburgo. No ano passado, esse gigante da indústria aeroespacial e de defesa teve um faturamento avaliado em 101,1 bilhões de dólares (cerca de 386 bilhões de reais). Desse total, 60,7 bilhões foram gerados pela divisão de aviação comercial, montante equivalente à riqueza nacional da Eslovênia. E um terço do volume de negócios global se deve ao B737.
O bimotor de corredor único, que tem mais de 10.000 unidades entregues desde que entrou em serviço há meio século, é mais do que seu principal gerador de receitas. O B737 é também o produto que abre mercados à Boeing, como a China. A crescente demanda por viagens nos países emergentes levou-a a travar uma feroz batalha nos últimos anos com sua arqui-inimiga, a Airbus, sua única rival.
O duopólio luta por cada pedido. Mas quase mais importante é a rapidez com a qual fabricam os aviões. No ano passado, a Boeing fez um total de 806 entregas de todos os modelos e os pedidos que acumula em carteira têm um valor estimado de 412 bilhões de dólares. Embora o B737 Max gerará 48% das vendas em 2019, por ser um novo modelo, representa apenas 2% de todos os voos nos EUA.
A suspensão dos voos lança sérias dúvidas sobre o futuro imediato do B737 Max. Nick Wyatt, especialista em aviação da GlobalData, diz que “esta história é muito maior do que se poderia imaginar”. Considera que o dano à reputação do avião “já está feito”, mesmo que a investigação do acidente da Ethiopian Airlines determinar que não foi um problema de fabricação.
Pedidos
“É difícil saber como os passageiros podem recuperar a confiança no avião no curto prazo”, afirma. Em sua opinião, qualquer recusa dos passageiros a voar em um B737 Max forçará as companhias aéreas a reconsiderar seus pedidos. A Standard & Poors observa que a suspensão deixa “um rastro de incerteza”. Mas ressalta que o avião é relativamente novo e que as companhias aéreas têm poucas opções.
Mudar para a Airbus não é tão evidente, compartilha Cai von Rumohr, da multinacional financeira Cowen, porque a fabricante europeia tem uma carteira de pedidos suficiente para atender cinco anos de produção do A320neo, o rival do Max. Em todo caso, todos concordam que seria muito prejudicial para a Boeing e inclusive ameaçaria o futuro da série. Por isso, o Credit Suisse diz que “é muito difícil ver a linha onde pode acabar a crise”.
Além disso, há o custo de reparar os 370 aviões Max que estão em serviço, conforme indica Ken Hernert, da Canaccord. A estimativa é de 1,5 bilhão de dólares se a causa for o sistema que controla a estabilidade. Não é muito comparado aos 7,9 bilhões de lucro obtidos pela divisão de aeronaves comerciais. Mas ainda deve ser revelado o que causou o acidente da Ethiopian. A esse montante, acrescenta, poderá ser acrescido o atraso nos pagamentos das companhias aéreas se os aviões não forem entregues.
Pressão pública
Esta crise e os danos à reputação do B737 Max podem enfraquecer a empresa na negociação de futuros contratos. Se, além disso, afetar o ritmo de produção do avião, isso pode diminuir o poder da empresa junto aos fornecedores de componentes. Tudo isso sem levar em conta a pressão pública, dos políticos, as ações na Justiça dos afetados ou o impacto sobre os 100.000 funcionários que a Boeing tem em todo o mundo.
A Boeing é mais do que um orgulho nacional dos Estados Unidos. É também a empresa que tem mais peso no índice Dow Jones e qualquer queda arrasta o resto de seus componentes. Mas como lembra a investidora Stifel, no pregão “se passa muito rapidamente de ser amado a ser odiado”. A capitalização da Boeing na Bolsa superou os 250 bilhões de dólares antes do acidente da Ethiopian Airlines. Desde então, perdeu 12% de seu valor na última semana.
O Brasil também acompanha de perto a situação da empresa. Em fevereiro, acionistas da Embraer aprovaram o acordo com a Boeing que prevê a formação de um novo grupo para a fabricação de aviões de até 150 lugares sob controle do gigante norte-americano.
Os analistas da Edward Jones antecipam que a Boeing estará em uma espécie de limbo até que a causa do acidente seja determinada. “Se o problema for mecânico ou, pior ainda, se for preciso reavaliar a certificação”, alertam, “isso poderia fazer com que pedidos fossem cancelados e que o impacto financeiro seja maior”. As crises de confiança, concluem os analistas, olhando para o caso da fraude das emissões da Volkswagen, são complexas e o caminho para a recuperação é longo e doloroso.