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Boeing enfrenta crise mais difícil de sua história

Empresa teme perda de confiança depois da morte de 345 pessoas em dois acidentes aéreos em cinco meses

Aviões Boeing 737 Max no aeroporto de Seattle.
Aviões Boeing 737 Max no aeroporto de Seattle.STEPHEN BRASHEAR (AFP)

A segurança é essencial para o negócio da Boeing. E poucos aviões são tão venerados quanto o B737. Esse modelo, que entrou em serviço há cinco décadas, é tão popular que a cada 1,5 segundo aterrissa ou decola de um aeroporto no mundo. Mas a reputação da aeronave ficou gravemente prejudicada depois que dois modelos de sua versão mais avançada caíram em cinco meses, deixando 345 mortos na Indonésia e na Etiópia, e isso pode ameaçar a própria existência da série Max se os passageiros se recusarem a voar nesses aviões.

A multinacional de Chicago enfrenta o que é considerada a maior crise em seu século de história e deve agir rapidamente para evitar que a ferida aberta fique cada vez mais profunda. Depois de um B737 Max 8 cair em 10 de março logo após a decolagem em Adis Abeba, muitos países começaram a fechar o seu espaço aéreo aos voos do modelo, proibição à qual também finalmente se juntaram os Estados Unidos. Apenas em duas ocasiões uma suspensão de voos como a atual foi ordenada: depois que um motor se desprendeu da asa de um DC 10 ao decolar em Chicago em 1979 e por causa do incêndio das baterias do B787 Dreamliner em 2013. Mas essas suspensões se deveram a falhas mecânicas que escapavam ao controle do piloto.

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Desta vez, o motivo é muito diferente e coloca toda a indústria da aviação comercial em um território nunca antes explorado. A origem dos acidentes do Max não é atribuída apenas a uma falha de fabricação. As primeiras análises apontam para um problema que combina a automação e o fator humano. As caixas pretas do avião que caiu na Etiópia ainda estão sendo analisadas, mas há semelhanças desse acidente com o do aparelho da Lion Air em outubro de 2018 na Indonésia que afetam o sistema automático de estabilização (MCAS) e a capacidade de controle do piloto. A necessária mudança do software do sistema é, em princípio, mais fácil de resolver, mas também requer que o piloto entre na equação da solução. Neste caso, os pilotos devem se familiarizar de novo com o sistema modificado.

O desafio é enorme para o CEO da multinacional, Dennis Muilenburg, que enfrenta essa crise quando não está nem há quatro anos no cargo. Os danos à imagem, como aponta Craig Fraser, da agência de classificação Fitch, “podem ser substanciais”. A Boeing foi capaz de enfrentar episódios semelhantes. Mas o analista adverte que o custo pode ir além do B737 Max. E o mais complicado, acrescenta, será recuperar a reputação da empresa quando a solução for encontrada.

Rebelião global

S. P.

Se o incidente com as baterias do Dreamliner servir como referência, essa crise foi resolvida em quatro meses. É o tempo que a Boeing está trabalhando na solução depois da queda do B737 Max 8 operado pela Lion Air. Cowen estima que serão necessários entre seis semanas e três meses para encontrar o remédio. Os analistas do Bank of America não descartam que a suspensão possa durar meio ano.

Sandy Morris, analista da indústria aeroespacial da Jefferies, olha mais para as circunstâncias da suspensão. Os dois acidentes desencadearam uma verdadeira "rebelião" contra a agência de aviação dos Estados Unidos (FAA na sigla em inglês). Poucas horas depois de dizer que o B737 Max era seguro para voar, o Reino Unido, a Austrália, a União Europeia e o Canadá proibiram a entrada do avião em seus espaços aéreos, "nunca se viu algo assim".

A FAA determina as normas que a indústria deve seguir no processo de certificação dos aviões de passageiros. Esse desenlace, concordam os analistas, está estabelecendo um precedente que poderia se voltar contra outros fabricantes, como a Airbus, se um de seus novos aviões estiver em uma situação semelhante. Mas, no caso da Boeing, significará mais exames ao aprovar a solução apresentada.

No Brasil, a Gol também anunciou a suspensão temporária dos voos com 737 Max 8. A empresa tem uma frota de 121 aeronaves Boeing, sendo sete modelos 737 Max 8. "Sendo segurança o valor número um da GOL, que direciona absolutamente todas as iniciativas da empresa, a companhia informa que por liberalidade, a partir das 20:00 horas de hoje [segunda-feira, 11 de março], suspenderá temporariamente as operações comerciais das suas aeronaves 737 Max 8", informou a empresa em nota.

A Boeing havia previsto realizar nesta semana o primeiro voo de teste do B777X, a versão eficiente do velho bimotor de longo percurso. Utiliza os avanços do B737 Max e do Dreamliner, possui os maiores motores que equipam um avião e as pontas das asas se dobram para operar na pista. A estreia foi adiada e é possível que o mesmo aconteça com o plano para desenvolver uma nova aeronave de tamanho médio.

Paralelamente, o veto global ao Max obrigou a Boeing a suspender as entregas de seu modelo mais popular. Os B737 saem da linha de montagem a um ritmo de 52 unidades por mês, com a ideia de levá-los a 57 países durante 2019. A empresa, que tem 5.100 pedidos desse modelo, precisa manter o ritmo de produção para que a suspensão não crie uma ruptura na cadeia de fornecimento. Agora os aviões ficam estacionados na pista em Renton (Washington).

Grande como um país

A sorte Boeing importa. Seu negócio é tão grande quanto a economia do Equador e maior que a da Venezuela ou de Luxemburgo. No ano passado, esse gigante da indústria aeroespacial e de defesa teve um faturamento avaliado em 101,1 bilhões de dólares (cerca de 386 bilhões de reais). Desse total, 60,7 bilhões foram gerados pela divisão de aviação comercial, montante equivalente à riqueza nacional da Eslovênia. E um terço do volume de negócios global se deve ao B737.

O bimotor de corredor único, que tem mais de 10.000 unidades entregues desde que entrou em serviço há meio século, é mais do que seu principal gerador de receitas. O B737 é também o produto que abre mercados à Boeing, como a China. A crescente demanda por viagens nos países emergentes levou-a a travar uma feroz batalha nos últimos anos com sua arqui-inimiga, a Airbus, sua única rival.

O duopólio luta por cada pedido. Mas quase mais importante é a rapidez com a qual fabricam os aviões. No ano passado, a Boeing fez um total de 806 entregas de todos os modelos e os pedidos que acumula em carteira têm um valor estimado de 412 bilhões de dólares. Embora o B737 Max gerará 48% das vendas em 2019, por ser um novo modelo, representa apenas 2% de todos os voos nos EUA.

A suspensão dos voos lança sérias dúvidas sobre o futuro imediato do B737 Max. Nick Wyatt, especialista em aviação da GlobalData, diz que “esta história é muito maior do que se poderia imaginar”. Considera que o dano à reputação do avião “já está feito”, mesmo que a investigação do acidente da Ethiopian Airlines determinar que não foi um problema de fabricação.

Pedidos

“É difícil saber como os passageiros podem recuperar a confiança no avião no curto prazo”, afirma. Em sua opinião, qualquer recusa dos passageiros a voar em um B737 Max forçará as companhias aéreas a reconsiderar seus pedidos. A Standard & Poors observa que a suspensão deixa “um rastro de incerteza”. Mas ressalta que o avião é relativamente novo e que as companhias aéreas têm poucas opções.

Mudar para a Airbus não é tão evidente, compartilha Cai von Rumohr, da multinacional financeira Cowen, porque a fabricante europeia tem uma carteira de pedidos suficiente para atender cinco anos de produção do A320neo, o rival do Max. Em todo caso, todos concordam que seria muito prejudicial para a Boeing e inclusive ameaçaria o futuro da série. Por isso, o Credit Suisse diz que “é muito difícil ver a linha onde pode acabar a crise”.

Além disso, há o custo de reparar os 370 aviões Max que estão em serviço, conforme indica Ken Hernert, da Canaccord. A estimativa é de 1,5 bilhão de dólares se a causa for o sistema que controla a estabilidade. Não é muito comparado aos 7,9 bilhões de lucro obtidos pela divisão de aeronaves comerciais. Mas ainda deve ser revelado o que causou o acidente da Ethiopian. A esse montante, acrescenta, poderá ser acrescido o atraso nos pagamentos das companhias aéreas se os aviões não forem entregues.

Pressão pública

Esta crise e os danos à reputação do B737 Max podem enfraquecer a empresa na negociação de futuros contratos. Se, além disso, afetar o ritmo de produção do avião, isso pode diminuir o poder da empresa junto aos fornecedores de componentes. Tudo isso sem levar em conta a pressão pública, dos políticos, as ações na Justiça dos afetados ou o impacto sobre os 100.000 funcionários que a Boeing tem em todo o mundo.

A Boeing é mais do que um orgulho nacional dos Estados Unidos. É também a empresa que tem mais peso no índice Dow Jones e qualquer queda arrasta o resto de seus componentes. Mas como lembra a investidora Stifel, no pregão “se passa muito rapidamente de ser amado a ser odiado”. A capitalização da Boeing na Bolsa superou os 250 bilhões de dólares antes do acidente da Ethiopian Airlines. Desde então, perdeu 12% de seu valor na última semana.

O Brasil também acompanha de perto a situação da empresa. Em fevereiro, acionistas da Embraer aprovaram o acordo com a Boeing que prevê a formação de um novo grupo para a fabricação de aviões de até 150 lugares sob controle do gigante norte-americano.

Os analistas da Edward Jones antecipam que a Boeing estará em uma espécie de limbo até que a causa do acidente seja determinada. “Se o problema for mecânico ou, pior ainda, se for preciso reavaliar a certificação”, alertam, “isso poderia fazer com que pedidos fossem cancelados e que o impacto financeiro seja maior”. As crises de confiança, concluem os analistas, olhando para o caso da fraude das emissões da Volkswagen, são complexas e o caminho para a recuperação é longo e doloroso.

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