O brasileiro que venceu ‘Oscar’ dos quadrinhos com história sobre escravidão
Em ‘Cumbe’, Marcelo D’Salete fala da resistência negra a partir da história da escravidão no Brasil colonial
O professor, ilustrador e autor de histórias em quadrinhos Marcelo D’Salete ganhou, no dia 20 de julho, o Eisner Awards 2018 de melhor edição americana de material estrangeiro pela obra Cumbe (Run for it). O prêmio é conhecido como o Oscar dos quadrinhos e é entregue todos os anos durante a Comic-Con de San Diego. A obra do brasileiro fala sobre a resistência do povo negro durante a escravidão e aborda conflitos, dramas, esperanças e sonhos de escravizados trazidos dos antigos reinos da Angola e do Congo.
O movimento do rap e o hip hop, ainda nos anos 80, foi um dos responsáveis por começar a sensibilizar o paulistano para as injustiças sociais e raciais, herança do período escravista. “Isso foi importante para chamar a atenção para a questão etno-racial aqui no Brasil e também nas diferenças sociais que nós temos de modo tão alarmante”, explicou.
Nascido na zona leste da capital paulista, D’Salete contou, em entrevista à Ponte, que sempre estudou em escola pública em São Mateus e Artur Alvim e que depois fez ensino médio em um colégio técnico no Brás. Segundo ele, essa fase foi importante para que ele conhecesse diversos artistas. Depois, D’Salete fez artes plásticas na USP e cursou mestrado em história da arte.
Negro, Marcelo ponderou que a escolha do tema foi quase natural por ter sempre vivido as questões da negritude e que, por essa razão, entende que o lugar de fala para construção dessa narrativa é um ponto importante de ser considerado. “Falar sobre a sociedade brasileira, falar sobre o Brasil colonial é a partir dessa experiência negra diaspórica e, em grande parte, periférica, dentro dessa sociedade. Essa é a minha perspectiva”, explica.
Segundo D’Salete, as pesquisas para sua obra foram feitas em bibliotecas na USP (Universidade de São Paulo) e no Museu Afro Brasil. Assim, ele teve contato com obras importantes voltadas para o tema, documentos sobre a escravidão.
Para ele, foi “uma surpresa muito grande” quando recebeu a notícia de que tinha vencido a premiação, já que essa é uma forma importante de dar visibilidade à perspectiva negra sobre esse momento da história. “Essa obra surgiu há muito tempo”, afirma contando que, em 2004, teve contato com diversos textos falando sobre o tempo colonial e o Brasil atual. Isso o impulsionou a entrar ainda mais a fundo nessas histórias. “Mas, antes disso, essas discussões já estavam nas músicas que eu ouvia e na literatura também”, diz.
Com relação a isso, inclusive, Marcelo conta como, desde cedo, acabou tendo que enfrentar situações de racismo naturalizadas em uma sociedade classista e racista como a nossa. “Quando garoto eu comecei a trabalhar como office boy e em mais de um momento eu fui orientado a entrar no elevador de serviço e não pelo social. Isso por volta de 95, 96. Eu lembro trabalhava na região da Paulista e era esse o tipo de tratamento que eu tinha lá. Em outro momento, eu estava em uma banca de jornal, isso era final de 90 também, e eu estava vendo uma revista em quadrinhos, pensando se eu ia comprar ou não e o vendedor veio e tirou a revista da minha mão, sem dizer nada, considerando que eu não era consumidor e, muito menos, cidadão”, relatou. “Esses e vários outros casos também. Ser parado pela polícia, mesmo na Universidade de São Paulo. Em aeroporto, indo fazer parte de festival internacional de quadrinhos, fui barrado e por aí vai“.
Para ele, desde os tempos de ditadura o movimento negro é atuante, mas, durante esse período, esteve invisibilizado, porque falar de racismo e negritude era uma questão política e um motivo para perseguir pessoas. “Sendo assim, imagino que desde a década de 80 a gente tem um crescente nessa discussão. Na década de 80 e 90 eu já percebia que esse era um assunto, um termo, que não entrava na pauta de partidos políticos, de organizações estudantis. Hoje eu vejo que existe uma permeabilidade maior em relação a esses temas. Isso talvez faça com que a gente tenha um protagonismo maior de personalidades negras falando sobre esse tema também, inclusive na internet e nas redes sociais”, disse D’Salete.
Cumbe foi publicado também em Portugal, França, Áustria, Itália e EUA. A obra foi indicada ao HQMIX 2015 (categoria desenhista, roteirista e edição nacional); selecionado pelo Plano Ler + para leitura em escolas de Portugal e indicado ao prêmio Rudolph Dirks Award 2017 (categoria roteiro) na Alemanha.
Reportagem originalmente publicada no site Ponte Jornalismo.
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