_
_
_
_

Jacqueline Muniz: “Empregar o Exército no Rio é uma teatralidade operacional de alto custo e baixa eficácia”

Especialista critica a intervenção federal e faz radiografia das capacidades e intenções do Exército

Militares patrulham uma rua de Japeri, perto do Rio.
Militares patrulham uma rua de Japeri, perto do Rio.RICARDO MORAES (REUTERS)
Felipe Betim

A atenção precisa ser redobrada para acompanhar o rápido, porém preciso, raciocínio de Jacqueline Muniz. Antropóloga, cientista política e especialista em segurança pública da Universidade Federal Fluminense  (UFF), ela conversou com o EL PAÍS em um café do bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, a respeito da intervenção federal decretada pelo presidente Michel Temer e aprovada pelo Congresso Nacional. “Empregar o Exército no Rio é uma teatralidade operacional de alto custo e baixa eficácia”, explica ela, que conhece as Forças Armadas e as polícias de perto. “O Exército nunca esteve tanto nas ruas como nos governos democráticos”, diz em outro momento.

Mais informações
Intervenção federal no Rio desperta fantasmas sobre o papel do Exército
A história das operações e planos de segurança no Rio: três décadas de fracassos
Exército prepara ordens de busca e apreensão em bairros inteiros do Rio

Além de realizar trabalhos de campo dentro das corporações, acompanhando e analisando patrulhas e operações, Muniz trabalhou no final dos anos 90 na Secretaria Estadual de Segurança do Rio e no Ministério da Justiça no início dos anos 2000, ajudando a formular a Força Nacional. Hoje trabalha junto ao Ministério Público Estadual, dá aulas — inclusive para policiais e soldados — e, desde a última semana, vive uma fama inesperada. Um dia depois do anúncio da intervenção federal, ofereceu uma entrevista ao vivo no canal GloboNews que viralizou nas redes sociais devido a sua contundência para criticar a medida. “Tenho recebido milhares de mensagens de pessoas dizendo que eu lavei a alma delas ou me xingando”, diz, entre risadas.

Durante a entrevista ao EL PAÍS, Muniz imprimiu o mesmo estilo certeiro e irônico ao fazer uma radiografia detalhada das capacidades e intenções das Forças Armadas com a intervenção no Rio. Atraiu os olhares e atenção dos que estavam em volta. Alguns reconheceram a especialista e pediram para tirar uma selfie, enquanto outros se juntaram à conversa para fazer observações sobre o decreto. Leia abaixo alguns trechos da entrevista, dividida em blocos temáticos.

O que esperar do emprego do exército nas ruas do Rio

A professora Jacqueline Muniz.
A professora Jacqueline Muniz.

"O Exército está composto por meninos novos e inexperientes que foram treinados para a ação em tropa, como blocos estáticos, e não para a tomada de decisão individual. O que é a polícia? Força comedida. Forças Armadas? Formas de espera para a ação. Polícia? Formas de agir no tempo real, antes, durante e depois. Ela toma decisões no aqui e agora a partir do seu medo, da sua incerteza, do seu perigo real. Porque a dinâmica criminal é causal e itinerante. As Forças Armadas lidam com o guerra, então não posso me dar ao luxo de cada um decidir de um jeito em uma batalha. Você tem que ter um comando, que é o que dá a superioridade. Se sou soldado e vejo um assalto, vou esperar um comandante dar ordem? Então o problema de colocar o Exército nas ruas em substituição à polícia, como no Complexo da Maré [entre abril de 2014 e junho de 2015], é que você perde capacidade de comando da tropa, que não sabe decidir individualmente. Cada soldado daquele não é talhado para essa tomada de decisão individual. Isso faz com que ele fique vulnerável a riscos, mais fácil de ser cooptado pela corrupção e mais suscetível a produzir violações e uso abusivo de forças. Não é a toa que o comandante-geral diz que isso é uma temeridade. E é. [Veja o vídeo abaixo]

Salvar

E não adianta prepará-los para ação de policiamento. É como se você pegasse a polícia e achasse que ela está apta para agir como corpo tático, como uma unidade blindada de guerra. Você sabota a cultura institucional, o ethos, a identidade, e você vulnerabiliza para dentro e para fora. A perspectiva do Exército produzir riscos operacionais é muito alta, mas não por má fé. O emprego é inadequado. A logística das Forças Armadas não é adequada para a mobilidade tática desejada no cenário urbano. Você coloca um canhão na praia de Copacabana, aí passa o fulano e rouba o cordão da moça. O que o canhão faz, dá um tiro e destrói tudo? Não vai poder fazer nada, é um carro alegórico. Pensa num soldado no Aterro do Flamengo, com seu capacete, com seu colete, com seu fuzil de sete quilos. O fulano assaltou, ele vai sair correndo atrás? É isso o que a polícia faria, mas o soltado é uma tartaruga correndo, por causa do peso. E ele não tem pleno mandato policial."

As consequências do emprego do exército

"Para que servem esses blindados em pontos de visibilidade do Rio? Produzir o efeito de que o Exército se faz presente. Mas isso não gera qualquer impacto efetivo na incidência criminal. É uma teatralidade operacional de alto custo e baixo rendimento e eficácia. Você prendeu pessoas? Apreendeu coisas? Reduziu o crime? A cocaína ficou mais cara? Na Maré foram gastos no mínimo 350 milhões de reais, mas com 10% disso reestruturo toda a inteligência da Policia Civil, que apreende uma tonelada de cocaína ou um contêiner de armas.

Os militares não estão errados, o que não quer dizer que seja bom. Do ponto de vista da sociedade, é o pior cenário possível

A Constituição, ainda que de forma equivocada, diz que a PM é força auxiliar do Exército. De 92 para cá, o Exército tem virado a força auxiliar da PM. Olha o problema: a impressão que dá é que, diante das chantagens corporativas, a fabricação de crises artificiais com propósitos deliberadamente políticos e eleitoreiros, o fato é que todo mundo está de pires na mão. Tem gente que vai fazer Uber para complementar renda, outros vão levar cachorro pra passear, e agora você quer improvisar nas Forças Armadas, que vão fazer bico na segurança pública para complementar orçamento. 'Olha, eu vou lá fazer esse serviço que não é meu, que eu não sei fazer, mas vou receber um dinheiro a mais para comprar aquelas coisas que eu tava precisando, comprar uns brinquedos que estavam quebrados, arrumar a casa...'. Parte dos recursos das Forças Armadas também foram contingenciados. E quem dá a missão dá os meios."

As garantias que as Forças Armadas querem

"O que as Forças Armadas estão dizendo é: 'Se você está me chamando para o playground, então me dá os brinquedos. Eu estou dizendo que não sei fazer isso, que não é para fazer isso, que o emprego das tropas é uma tragédia para a corporação e para a segurança. Mas, se vocês querem, vamos querer salvo condutos'. Primeiro: todas as violências, violações e equívocos vão para a Justiça Militar. Esse projeto [que no final do ano passado foi sancionado por Temer] esteve na mão do FHC, Lula e Dilma. O Exército nunca esteve tanto nas ruas como nos governos democráticos. São mais de seis GLOs. Temer só assinou algo que já estava em andamento. O Rio sofreu sucessivas intervenções brandas e envergonhadas, e agora está na situação que a de um governo militar. As Forças Armadas não são bobas, estão dizendo que vão continuar sendo e agindo como tal num cenário urbano. Sendo assim, 'tudo o que eu faço de certo e errado tem que ser avaliado sobre os parâmetros militares'. Eles não estão errados, o que não quer dizer que seja bom. Do ponto de vista da sociedade, é o pior cenário possível.

Em segundo lugar, nas comunidades a topografia e a geografia são acidentalizadas. É uma urbanização espontânea, com vielas, ruelas, uma laje que serve de base para a casa do vizinho. E o Exército, que age como tropa, não tem vantagens táticas nesses territórios. Quando entra com os blindados, passa por cima de carro e moto de morador que nem seguro tem. Não cabe a blindagem ali e ela não serve de patrulha porque é mais lenta que uma tartaruga. Então ele entra na favela com toda a sorte de desvantagens: não tem controle de aproximação, não tem 360 graus de visão... Isso faz com que sua chance de erro seja imensa. Então o que eles estão pedindo? Aquilo que do ponto de vista da cidadania é temerário: o mandado coletivo de busca e apreensão. Porque, para entrar na sua casa, passa pela minha. A polícia trabalha numa situação, mas as Forças Armadas só sabem trabalhar em perímetro.

"O governador entregou de bom grado a segurança. Se você entregou a segurança, você virou um boneco de posto"

Terceiro, as Forças Armadas não querem se subordinar às polícias. Elas tem sido força auxiliar da PM. Mas já que é pra ficar aqui fazendo pirotecnia, 'eu comando, mas não operacionalizo. Eu faço o plano, mas não vou pra rua'. Elas querem governar, mas não querem agir. Essa é a questão! Você acha que eles foram pegos de surpresa, como pareceu na entrevista? Acham que passaram Carnaval no Rio, gostaram e decidiram governar? As operações na Rocinha, no Salgueiro e na Maré foram ensaios técnicos para isso, que já estava sendo construído há muito tempo. E o governador, que entregou de bom grado a segurança, entregou sua capacidade de governabilidade. Porque é a segurança que permite a estabilização para o exercício de poder. Então se você entregou a segurança, você virou um boneco de posto."

A intervenção e o problema da segurança

"Os efeitos são provisórios, o chamado efeito Pelourinho. Durante o Carnaval, o que acontecia no Pelourinho de Salvador? Fecham o perímetro urbano turístico e saturava de policia. Os crimes de rua, como roubos, furtos e agressões, caem naquele local. Mas ao redor aumenta, porque você tem um deslocamento da mancha criminal. Você não alterou a dinâmica criminal, não interveio nas causas que produzem os crimes de rua, apenas deslocou. Mas você não tem como manter soldadinhos de chumbo 24 horas no mesmo lugar e sua capacidade de pronto emprego é limitada no tempo. É por isso os efeitos da UPP foram limitados, e isso eram previsível. Depois que você ocupa um lugar com polícia, deve haver um conjunto de outras ações que estendam o efeito ostensivo para além do tempo presente. Durante as UPPs houve um deslocamento dessa mancha criminal. As taxas de homicídio caíram porque a polícia parou de trocar tiro. Quem é o administrador da morte? O Estado. A polícia entrava para impedir disputas gangues rivais, e ela própria deixou de produzir o confronto e passou a ocupar o território. Mais foi provisório, durou um ou dois anos, porque você tem rearranjo da economia criminosa. Ninguém tá no crime por ideologia, mas porque dá dinheiro. Vai da banda larga ilegal a droga. Só o gato net na rocinha gerava 300 ou 400.000. Há um discurso moralista de que é contra as drogas porque, no Rio, se governa com o crime e não contra o crime. O dinheiro do caixa 2 de campanha vem dele."

Por que as pessoas pedem o Exército nas ruas

"As pessoas estão pedindo segurança e institucionalidade. Estão dizendo que não querem ir para rua predar ou serem predadas. Querem o Estado, a institucionalidade, agindo de forma regular e permanente, e não estão erradas. Querem um sentido de autoridade, que é a condição para garantir a igualdade e a liberdade. Então diante da fabricação da falência intencional dos aparatos de segurança, com o sucateamento da Polícia Civil e a precarização da PM, que foi terceirizada e quarteirizada, sendo alugada para iniciativa privada, criou-se um cenário propício para esse tipo de intervenção. Porque Governos ilegítimos e impopulares não tem como produzir coesão ao seu projeto de Governo e sociedade. A única forma é produzir coercitividade. Então ele precisa fabricar ameaças para ofertar proteção. E isso não é segurança, porque essa proteção é seletiva, desigual e excludente. Fabricam-se guerras artificiais para buscar pelo medo, que é um péssimo conselheiro e faz que com que abdiquemos de nossos direitos em nome de um salvador da pátria. Mas o libertador de hoje vai ser o tirano de amanhã."

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_