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Jacqueline Muniz: “Empregar o Exército no Rio é uma teatralidade operacional de alto custo e baixa eficácia”

Especialista critica a intervenção federal e faz radiografia das capacidades e intenções do Exército

Militares patrulham uma rua de Japeri, perto do Rio.
Militares patrulham uma rua de Japeri, perto do Rio.RICARDO MORAES (REUTERS)

A atenção precisa ser redobrada para acompanhar o rápido, porém preciso, raciocínio de Jacqueline Muniz. Antropóloga, cientista política e especialista em segurança pública da Universidade Federal Fluminense  (UFF), ela conversou com o EL PAÍS em um café do bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, a respeito da intervenção federal decretada pelo presidente Michel Temer e aprovada pelo Congresso Nacional. “Empregar o Exército no Rio é uma teatralidade operacional de alto custo e baixa eficácia”, explica ela, que conhece as Forças Armadas e as polícias de perto. “O Exército nunca esteve tanto nas ruas como nos governos democráticos”, diz em outro momento.

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Além de realizar trabalhos de campo dentro das corporações, acompanhando e analisando patrulhas e operações, Muniz trabalhou no final dos anos 90 na Secretaria Estadual de Segurança do Rio e no Ministério da Justiça no início dos anos 2000, ajudando a formular a Força Nacional. Hoje trabalha junto ao Ministério Público Estadual, dá aulas — inclusive para policiais e soldados — e, desde a última semana, vive uma fama inesperada. Um dia depois do anúncio da intervenção federal, ofereceu uma entrevista ao vivo no canal GloboNews que viralizou nas redes sociais devido a sua contundência para criticar a medida. “Tenho recebido milhares de mensagens de pessoas dizendo que eu lavei a alma delas ou me xingando”, diz, entre risadas.

Durante a entrevista ao EL PAÍS, Muniz imprimiu o mesmo estilo certeiro e irônico ao fazer uma radiografia detalhada das capacidades e intenções das Forças Armadas com a intervenção no Rio. Atraiu os olhares e atenção dos que estavam em volta. Alguns reconheceram a especialista e pediram para tirar uma selfie, enquanto outros se juntaram à conversa para fazer observações sobre o decreto. Leia abaixo alguns trechos da entrevista, dividida em blocos temáticos.

O que esperar do emprego do exército nas ruas do Rio

A professora Jacqueline Muniz.
A professora Jacqueline Muniz.

"O Exército está composto por meninos novos e inexperientes que foram treinados para a ação em tropa, como blocos estáticos, e não para a tomada de decisão individual. O que é a polícia? Força comedida. Forças Armadas? Formas de espera para a ação. Polícia? Formas de agir no tempo real, antes, durante e depois. Ela toma decisões no aqui e agora a partir do seu medo, da sua incerteza, do seu perigo real. Porque a dinâmica criminal é causal e itinerante. As Forças Armadas lidam com o guerra, então não posso me dar ao luxo de cada um decidir de um jeito em uma batalha. Você tem que ter um comando, que é o que dá a superioridade. Se sou soldado e vejo um assalto, vou esperar um comandante dar ordem? Então o problema de colocar o Exército nas ruas em substituição à polícia, como no Complexo da Maré [entre abril de 2014 e junho de 2015], é que você perde capacidade de comando da tropa, que não sabe decidir individualmente. Cada soldado daquele não é talhado para essa tomada de decisão individual. Isso faz com que ele fique vulnerável a riscos, mais fácil de ser cooptado pela corrupção e mais suscetível a produzir violações e uso abusivo de forças. Não é a toa que o comandante-geral diz que isso é uma temeridade. E é. [Veja o vídeo abaixo]

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E não adianta prepará-los para ação de policiamento. É como se você pegasse a polícia e achasse que ela está apta para agir como corpo tático, como uma unidade blindada de guerra. Você sabota a cultura institucional, o ethos, a identidade, e você vulnerabiliza para dentro e para fora. A perspectiva do Exército produzir riscos operacionais é muito alta, mas não por má fé. O emprego é inadequado. A logística das Forças Armadas não é adequada para a mobilidade tática desejada no cenário urbano. Você coloca um canhão na praia de Copacabana, aí passa o fulano e rouba o cordão da moça. O que o canhão faz, dá um tiro e destrói tudo? Não vai poder fazer nada, é um carro alegórico. Pensa num soldado no Aterro do Flamengo, com seu capacete, com seu colete, com seu fuzil de sete quilos. O fulano assaltou, ele vai sair correndo atrás? É isso o que a polícia faria, mas o soltado é uma tartaruga correndo, por causa do peso. E ele não tem pleno mandato policial."

As consequências do emprego do exército

"Para que servem esses blindados em pontos de visibilidade do Rio? Produzir o efeito de que o Exército se faz presente. Mas isso não gera qualquer impacto efetivo na incidência criminal. É uma teatralidade operacional de alto custo e baixo rendimento e eficácia. Você prendeu pessoas? Apreendeu coisas? Reduziu o crime? A cocaína ficou mais cara? Na Maré foram gastos no mínimo 350 milhões de reais, mas com 10% disso reestruturo toda a inteligência da Policia Civil, que apreende uma tonelada de cocaína ou um contêiner de armas.

Os militares não estão errados, o que não quer dizer que seja bom. Do ponto de vista da sociedade, é o pior cenário possível

A Constituição, ainda que de forma equivocada, diz que a PM é força auxiliar do Exército. De 92 para cá, o Exército tem virado a força auxiliar da PM. Olha o problema: a impressão que dá é que, diante das chantagens corporativas, a fabricação de crises artificiais com propósitos deliberadamente políticos e eleitoreiros, o fato é que todo mundo está de pires na mão. Tem gente que vai fazer Uber para complementar renda, outros vão levar cachorro pra passear, e agora você quer improvisar nas Forças Armadas, que vão fazer bico na segurança pública para complementar orçamento. 'Olha, eu vou lá fazer esse serviço que não é meu, que eu não sei fazer, mas vou receber um dinheiro a mais para comprar aquelas coisas que eu tava precisando, comprar uns brinquedos que estavam quebrados, arrumar a casa...'. Parte dos recursos das Forças Armadas também foram contingenciados. E quem dá a missão dá os meios."

As garantias que as Forças Armadas querem

"O que as Forças Armadas estão dizendo é: 'Se você está me chamando para o playground, então me dá os brinquedos. Eu estou dizendo que não sei fazer isso, que não é para fazer isso, que o emprego das tropas é uma tragédia para a corporação e para a segurança. Mas, se vocês querem, vamos querer salvo condutos'. Primeiro: todas as violências, violações e equívocos vão para a Justiça Militar. Esse projeto [que no final do ano passado foi sancionado por Temer] esteve na mão do FHC, Lula e Dilma. O Exército nunca esteve tanto nas ruas como nos governos democráticos. São mais de seis GLOs. Temer só assinou algo que já estava em andamento. O Rio sofreu sucessivas intervenções brandas e envergonhadas, e agora está na situação que a de um governo militar. As Forças Armadas não são bobas, estão dizendo que vão continuar sendo e agindo como tal num cenário urbano. Sendo assim, 'tudo o que eu faço de certo e errado tem que ser avaliado sobre os parâmetros militares'. Eles não estão errados, o que não quer dizer que seja bom. Do ponto de vista da sociedade, é o pior cenário possível.

Em segundo lugar, nas comunidades a topografia e a geografia são acidentalizadas. É uma urbanização espontânea, com vielas, ruelas, uma laje que serve de base para a casa do vizinho. E o Exército, que age como tropa, não tem vantagens táticas nesses territórios. Quando entra com os blindados, passa por cima de carro e moto de morador que nem seguro tem. Não cabe a blindagem ali e ela não serve de patrulha porque é mais lenta que uma tartaruga. Então ele entra na favela com toda a sorte de desvantagens: não tem controle de aproximação, não tem 360 graus de visão... Isso faz com que sua chance de erro seja imensa. Então o que eles estão pedindo? Aquilo que do ponto de vista da cidadania é temerário: o mandado coletivo de busca e apreensão. Porque, para entrar na sua casa, passa pela minha. A polícia trabalha numa situação, mas as Forças Armadas só sabem trabalhar em perímetro.

"O governador entregou de bom grado a segurança. Se você entregou a segurança, você virou um boneco de posto"

Terceiro, as Forças Armadas não querem se subordinar às polícias. Elas tem sido força auxiliar da PM. Mas já que é pra ficar aqui fazendo pirotecnia, 'eu comando, mas não operacionalizo. Eu faço o plano, mas não vou pra rua'. Elas querem governar, mas não querem agir. Essa é a questão! Você acha que eles foram pegos de surpresa, como pareceu na entrevista? Acham que passaram Carnaval no Rio, gostaram e decidiram governar? As operações na Rocinha, no Salgueiro e na Maré foram ensaios técnicos para isso, que já estava sendo construído há muito tempo. E o governador, que entregou de bom grado a segurança, entregou sua capacidade de governabilidade. Porque é a segurança que permite a estabilização para o exercício de poder. Então se você entregou a segurança, você virou um boneco de posto."

A intervenção e o problema da segurança

"Os efeitos são provisórios, o chamado efeito Pelourinho. Durante o Carnaval, o que acontecia no Pelourinho de Salvador? Fecham o perímetro urbano turístico e saturava de policia. Os crimes de rua, como roubos, furtos e agressões, caem naquele local. Mas ao redor aumenta, porque você tem um deslocamento da mancha criminal. Você não alterou a dinâmica criminal, não interveio nas causas que produzem os crimes de rua, apenas deslocou. Mas você não tem como manter soldadinhos de chumbo 24 horas no mesmo lugar e sua capacidade de pronto emprego é limitada no tempo. É por isso os efeitos da UPP foram limitados, e isso eram previsível. Depois que você ocupa um lugar com polícia, deve haver um conjunto de outras ações que estendam o efeito ostensivo para além do tempo presente. Durante as UPPs houve um deslocamento dessa mancha criminal. As taxas de homicídio caíram porque a polícia parou de trocar tiro. Quem é o administrador da morte? O Estado. A polícia entrava para impedir disputas gangues rivais, e ela própria deixou de produzir o confronto e passou a ocupar o território. Mais foi provisório, durou um ou dois anos, porque você tem rearranjo da economia criminosa. Ninguém tá no crime por ideologia, mas porque dá dinheiro. Vai da banda larga ilegal a droga. Só o gato net na rocinha gerava 300 ou 400.000. Há um discurso moralista de que é contra as drogas porque, no Rio, se governa com o crime e não contra o crime. O dinheiro do caixa 2 de campanha vem dele."

Por que as pessoas pedem o Exército nas ruas

"As pessoas estão pedindo segurança e institucionalidade. Estão dizendo que não querem ir para rua predar ou serem predadas. Querem o Estado, a institucionalidade, agindo de forma regular e permanente, e não estão erradas. Querem um sentido de autoridade, que é a condição para garantir a igualdade e a liberdade. Então diante da fabricação da falência intencional dos aparatos de segurança, com o sucateamento da Polícia Civil e a precarização da PM, que foi terceirizada e quarteirizada, sendo alugada para iniciativa privada, criou-se um cenário propício para esse tipo de intervenção. Porque Governos ilegítimos e impopulares não tem como produzir coesão ao seu projeto de Governo e sociedade. A única forma é produzir coercitividade. Então ele precisa fabricar ameaças para ofertar proteção. E isso não é segurança, porque essa proteção é seletiva, desigual e excludente. Fabricam-se guerras artificiais para buscar pelo medo, que é um péssimo conselheiro e faz que com que abdiquemos de nossos direitos em nome de um salvador da pátria. Mas o libertador de hoje vai ser o tirano de amanhã."

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