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Rio desidrata UPPs para transferir parte de efetivo das favelas para o asfalto

Mudança realocará um terço dos 9.500 policias do projeto de pacificação das favelas

Operação policial após ataques às UPP nas comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro, em outubro de 2016.
Operação policial após ataques às UPP nas comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro, em outubro de 2016.Fernando Frazão

O secretario de Segurança Pública do Rio, Roberto Sá, anunciou nesta terça-feira uma “reestruturação ou transformação” do projeto de polícia pacificadora, implementado em 38 comunidades pobres há dez anos como plano central de segurança antes da Copa e dos Jogos Olímpicos. A transformação, no entanto, está longe de ser revolucionária, tendo em conta que o programa, depois dos primeiros anos de relativo sucesso, atravessa uma grave crise que passa pela alta taxa de letalidade dos seus policiais e a morte de muitos deles, a falta de recursos e treinamento, o avanço da criminalidade, o abandono do investimento social e a perda do espírito original do programa, o de polícia comunitária.

Após um estudo interno que buscou diagnosticar os problemas das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), o secretario Sá, junto ao comandante-geral da Polícia Militar, Coronel Wolney Dias, decidiu realocar 3.000 policiais das unidades para patrulharem as ruas do asfalto. A maioria desses homens reforçarão os batalhões em áreas que concentram os maiores índices de criminalidade. Assim, 1.100 policiais militares passarão a patrulhar a capital; 900 a Baixada Fluminense e 550 a região de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí. O resto será destacado em vias expressas e áreas turísticas.

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A maioria desses 3.000 policiais, segundo Sá, cumprem hoje funções administrativas e o enxugamento não afetará a operação dos agentes nas comunidades. Sá não reconheceu recuo, embora a iniciativa tenha sido interpretada nos bastidores como um “primeiro passo” pra reformular, de verdade, o programa. Questionado sobre como será possível integrar esse grande contingente policial aos batalhões quando falta até combustível para as viaturas, Sá afirmou que muitos deles poderão fazer patrulhamento a pé e que confia “na recuperação fiscal do Estado”.

A mudança responde a um problema que a Polícia Militar enfrenta há anos, e que não necessariamente está associada à transformação do programa das UPPs: o déficit de policiais. Cada vez são mais os policias militares que se aposentam sem que haja agentes que os substituam, entre outros motivos, por falta de recursos. “O quadro se agravou ainda mais este ano, com a incerteza da reforma da Previdência. Nosso cálculo é que entre 2016 e 2017 o déficit de efetivo na Polícia Militar, considerando as incorporações e pedidos de inatividade, chegaria a 3.000 policiais”, explica o coronel Cláudio Lima Freire, ex-Chefe do Estado Maior que presidiu o trabalho de diagnóstico das UPPs.

Outra das mudanças anunciadas foi de comando. A partir de agora, as 38 unidades passarão a responder aos batalhões correspondentes por cada área e não mais ao Comando de Polícia Pacificadora, criado para dotar de independência o programa e sinalizar a criação de um novo conceito de polícia comunitária. Será criado ainda um Batalhão de Polícia Pacificadora que assumirá as unidades dos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio, áreas em constante conflito entre facções e policiais.

Propostas não atendidas

O estudo avaliou a situação em detalhe das 38 UPPs contemplando, sobretudo, o aumento das mortes de policiais e civis, assim como o recrudescimento dos confrontos armados. O documento acabou levantando propostas bem mais arriscadas que o remanejamento de pessoal, mas que não foram atendidas. Uma delas, segundo o coronel Lima Freire, foi a “desconstrução” de 12 das 38 unidades por terem perdido as “linhas mestres que regem o programa de pacificação”. Segundo Lima, há comunidades pacificadas onde os policiais só conseguem patrulhar 30% do território devido ao domínio do tráfico. O estudo propunha que as UPPs nessas comunidades, onde a violência recrudesceu, fossem transformadas em outras modalidades de policiamento –ostensivo e mais presente–, e transferir seus recursos para reforçar as ruas e as unidades que consideram-se exitosas.

A Polícia Militar vem apontando os problemas que afetam o programa do ponto de vista dos praças. As reclamações sobre equipamentos obsoletos e falta de coletes é comum entre os oficiais, enquanto dados da própria corporação indicam as dificuldades dos policiais da UPP para combater as facções fortemente armadas que continuam nas comunidades a pesar da presença da polícia. Uma dessas dificuldades é o aumento dos confrontos. Segundo um estudo da PM sobre os porquês das mortes de tantos policiais (98 só neste ano), em 2011, quando havia 18 UPPs, foram registrados 13 confrontos nessas comunidades, contra 1.555 confrontos em 2016. Esse mesmo documento também contempla um baixo índice de efetividade dos policiais. Dos 672 confrontos registrados no primeiro semestre de 2016 em áreas de UPP, em apenas 6% houve apreensão de armas (contra 46% dos batalhões tradicionais) e só 10% foram consideradas ações exitosas –quando não há policiais ou suspeitos feridos nem mortos e há apreensões– um índice que nos batalhões chega a 51%.

Projeto na UTI

O anúncio chega no mesmo dia em que foi divulgada uma pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes sobre a percepção dos moradores das comunidades com UPP sobre o programa. O estudo, que abrange um universo de 777.506 pessoas – cerca de 15% da população carioca com 16 anos ou mais – revela certa indiferença dos moradores ante os policiais e sensação de insegurança. Segundo a pesquisa, 78% dos entrevistados concordaram com a frase “hoje a gente vive inseguro porque nunca sabe quando vai ter tiroteio na comunidade” e a maioria deles –entre 55% e 68%, dependendo da comunidade e do perfil do morador – disse que a presença da UPP “não faz diferença” no seu dia a dia.

O documento é crítico com o espírito bélico e de confronto adquiridos por uma polícia concebida para pacificar e se aproximar do morador e aponta algumas das causas que levaram ao enfraquecimento do que foi o programa estrela e maior palanque político de Sérgio Cabral, hoje preso e condenado por corrupção. “As UPPs não faliram porque o tráfico voltou; o tráfico se reempoderou à medida em que as UPPs entravam em decadência”, aponta o texto. Entre os problemas enfrentados estaria “a expansão irresponsável do projeto”, “o abandono do policiamento de proximidade”, “a redução do controle sobre desvios e abusos policiais”, “o baixo investimento em inteligência e investigação, capaz de prevenir invasões e entrada de armas”, “a falta de coordenação entre a Polícia Militar e a Civil” e a “evaporação da UPP Social” além da “subordinação da política de segurança à agenda econômica, esportiva e eleitoral”.

O estudo reafirma que a maioria dos entrevistados, no conjunto das UPPs, prefere que a polícia permaneça, desde que haja mudanças no funcionamento do programa. “Mas também –diz­– é majoritária a convicção de que a UPP tem os dias contados”.

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