“O cinismo nacional mata o Brasil”
O que está em julgamento no país é a manutenção dos privilégios de classe que o Judiciário defende
No dia 18 de maio de 2006, o então governador de São Paulo, Claudio Lembo, filiado ao antigo PFL, hoje Democratas, um partido claramente de direita, disse, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, que o entrave para a solução dos problemas do Brasil residia no fato de termos uma “burguesia muito má, uma minoria branca perversa”. Lembo dizia que para atacar o problema da miséria deveria haver a criação de mais empregos, mais educação, mais solidariedade, mais diálogo, mais reciprocidade. E terminava afirmando: “O cinismo nacional mata o Brasil”.
Pois bem, o que estamos assistindo é o maior espetáculo de cinismo nacional de todos os tempos, patrocinado pela “minoria branca perversa”. E não estou me referindo à condenação sem provas materiais do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – até hoje não sei se ele é ou não corrupto, pois seu julgamento, assim como o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, ocorreu num clima de culpabilização prévia. Em ambos os casos, o que estava em jogo não era uma questão jurídica, mas sim um posicionamento político sobre o Brasil.
Ao longo de sua história, o PT – liderado pelo ultrapersonalismo de Lula – afastou-se pouco a pouco de sua origem democrática e popular para tornar-se um partido ávido por ampliar suas influências – ou, nas palavras do insuspeito Frei Betto, o PT trocou um projeto de nação por um projeto de poder. Para isso, fez alianças com o setor mais retrógrado da sociedade brasileira – os evangélicos – e com o que havia de mais sórdido na política – o PMDB de Romero Jucá, Geddel Vieira Lima, Henrique Eduardo Alves e Edison Lobão, todos ministros de Lula, e Michel Temer, o vice que viria a liderar o golpe contra Dilma.
Nos 14 anos em que permaneceu no governo, o PT deixou-se envolver diretamente com a corrupção que sempre havia existido e que seus eleitores acreditavam que seria por ele combatida. Apeado do poder, o partido em momento algum aceitou admitir seus erros. Preferiu, de forma patética, exaltar os condenados José Dirceu e João Vaccari Neto como “presos políticos” e “heróis do povo brasileiro”, e “declarar guerra” ao boneco Pixuleco, que simboliza o ex-presidente Lula vestido com roupa de presidiário.
Mas não é contra nada disso que se indignaram o juiz federal Sérgio Moro e, depois, os desembargadores João Pedro Gebran Neto, Leandro Paulsen e Victor Luis dos Santos Laus, todos representantes da “minoria branca” de que falava Claudio Lembo. O que esteve, e está, todo o tempo em julgamento é a manutenção dos privilégios de classe que o Poder Judiciário hoje defende – os privilégios da burguesia branca que não aceita “abrir a bolsa” para a construção de um país mais solidário, mais justo, mais equitativo.
Apesar de todos os problemas e omissões – e que são muitos e muitas –, Lula organizou o melhor governo de todos os tempos da história brasileira, tanto para os pobres como para os ricos, a ponto de se ajustar muito melhor a ele aquela máxima atribuída ao governo de Getúlio Vargas, segundo a qual ele tinha sido o pai dos pobres... e a mãe dos ricos... E essa afirmação pode ser aferida: ao deixar o governo, após oito anos de mandato, Lula tinha 87% de aprovação, e hoje, oito anos depois, mantém ainda um resíduo de 36% das intenções de voto.
No governo Lula, passamos a ser a sétima maior economia do mundo; o PIB (Produto Interno Bruto) cresceu a uma média de 4,15% ao ano; o salário mínimo teve um aumento real de 80%; a taxa de desemprego caiu a 4,3%, o que é considerado pleno emprego; o Brasil zerou a dívida externa considerada impagável; o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade, melhorou substancialmente; o percentual de jovens de 16 anos com diploma de ensino fundamental subiu de 57% para 74%; foram criadas 14 novas universidades públicas; foi implementado o Estatuto do Desarmamento; e, mais importante que tudo, deixamos de figurar no vergonhoso Mapa da Fome.
Mais de 35 milhões de pessoas, entre 2002 e 2010, subiram para a Classe C – famílias com rendimento médio entre 2,5 e 11 salários mínimos –, o que significa que passaram a consumir produtos antes inalcançáveis – carros, eletrodomésticos, televisores e celulares de melhor qualidade -, e a frequentar lugares antes proibidos, como aeroportos, restaurantes, shoppings, e, principalmente, universidades, por meio das cotas raciais e sociais. Mas a “minoria branca perversa”, ainda que também usufruísse do boom econômico, nunca engoliu a ideia de ter de dividir esses espaços privilegiados com seus “serviçais”.
O golpe que destituiu a presidente Dilma Rousseff e o golpe que retira do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a possibilidade de se candidatar a um novo mandato este ano são frutos da mesma lógica de ressentimento da nossa elite branca. O presidente não eleito, Michel Temer, tem se esforçado para, em seu curto governo, eliminar qualquer resquício dos pouquíssimos, mas fundamentais avanços obtidos no período do lulopetismo. Por meio da reforma trabalhista, precarizou as relações empregatícias a níveis impensáveis; por meio da reforma previdenciária, em andamento, inviabiliza o sistema público de amparo social. Devolve, assim, os pobres aos seus devidos lugares, de massa subalterna...
Claudio Lembo afirmava, em sua já citada entrevista, que o cinismo nacional poderia ser sintetizado no fato de que, ao abolir a escravatura, no final do século XIX, o Estado brasileiro indenizou os senhores, não os libertos. Não é diferente o que Michel Temer anda fazendo hoje, exatos 130 anos depois... Uma prova cabal de que, infelizmente, aqui o termo “capitalismo selvagem” não é uma metáfora e sim a nossa realidade cotidiana...
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