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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Ações anti-aborto mostram como o ativismo conservador aprendeu a reagir

Se no passado protagonismo era do lobby da CNBB, agora vemos uma mais ampla coalizão entre as ruas e as instituições políticas

Na sexta-feira 10 de novembro Judith Butler deixou o país perseguida por manifestantes no aeroporto de Congonhas. Empunhando cartazes, gritavam: “Assassina, matadora de crianças!” “Você é a favor do aborto, não é bem-vinda aqui!”, “Assassina, destruidora da família!”.

Dois dias antes, dia 8 de novembro, foi aprovada por 18 votos (masculinos) a 1 (feminino), em comissão especial da câmara dos deputados a PEC 181, que insere na Constituição a proteção da vida “desde a concepção” que, ao supor embriões e fetos como sujeitos de direitos, transforma em ilegais os casos de aborto hoje previstos em lei. Se aprovada, a PEC coloca o país entre os poucos no mundo em que o aborto é proibido até em caso de estupro ou risco de vida para a mulher.

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A batalha pela regulação do direito ao aborto tem história mais longa do que a sua visibilidade pública. Desde a Assembleia Nacional Constituinte, a Igreja Católica pressiona pela inclusão da proteção da vida desde a concepção na Constituição. Nesses 30 anos que nos separam da Constituinte, movimentos pró e anti aborto, por meio de aliados no Congresso, apresentaram mais de duas centenas de tentativas de alteração da regulação estabelecida pelo Código Penal de 40, tanto ampliando quanto restringindo-a. De um lado, tivemos 7 emendas constitucionais, além de 3 versões do Estatuto do Nascituro, uma ainda em tramitação. Do outro lado, projetos de lei que tentaram ampliar direitos das mulheres, mais significativamente, tentativas de ampliação das hipóteses de aborto legal. O jogo de forças no Parlamento até hoje havia impedido vitórias de um lado ou do outro – jogo que parece estar mudando agora.

O movimento pró-aborto avançou pelos bastidores com a edição de normas técnicas que permitissem a efetivação do acesso ao aborto legal. A mobilização vem desde o Governo Fernando Henrique Cardoso, mas foi especialmente no primeiro Governo Lula da Silva que a regulação avançou. Foi da articulação entre mobilização pró-aborto e o Executivo que saiu a proposta de formação de uma Comissão Tripartite – formada por membros do Executivo, Legislativo e sociedade civil – para rever a criminalização do aborto. Essa tentativa – a mais ousada da história brasileira - naufragou com o paulatino enfraquecimento dos Governos do PT gerado pelo escândalo do Mensalão e a emergência do primeiro movimento social nacional dedicado especificamente à causa anti aborto.

Surgido de dentro do Congresso Nacional às vésperas das eleições de 2006, o Movimento Nacional Brasil sem Aborto, passou a conectar em nível nacional, nas marchas anuais em defesa da vida, pequenos grupos pró-vida locais, que foram sendo criadas ao longo do da década de 90. Graças à campanha lançada por ocasião da eleição de 2006 – “Vote pela Vida”; “Vote em um candidato que defende a vida” – o aborto tornou-se um dos temas centrais da agenda eleitoral. Em 2010, Dilma Rousseff acabou por assinar a “Carta Aberta ao povo de Deus”, prometendo não avançar políticas pró-aborto em seu Governo, o que cumpriu fielmente, retirando o Executivo de cena pelo menos até seu impeachment, quando Temer sinalizou claramente pender para o campo pró-vida. A cada eleição, a representação de deputados evangélicos aumenta. A bancada Pró-vida e Pró-família, criada também em 2006, é renovada a cada legislatura e vem pressionando pela aprovação de projetos que restringem direitos reprodutivos das mulheres.

Os dois episódios da semana passada ilustram, assim, a articulação construída nos últimos 10 anos entre partidos políticos conservadores e mobilização societária. Se no passado predominou basicamente lobby da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) junto ao Congresso e autoridades políticas, agora vemos uma mais ampla coalizão entre as ruas e as instituições políticas.

É preciso compreender melhor as novas formas de associação e de ação pública conservadora. Pois, nos parece, vieram para ficar

Mas não é só isso. O movimento antiaborto ampliou e diversificou sua pauta e passou a se mobilizar em torno de qualquer questão que envolva políticas públicas antidiscriminação e igualdade de gênero, ou, em seu vocabulário, contra a “ideologia de gênero”. Expressão lançada pelo Vaticano, na Conferência do Cairo, em 1994, se espalhou e foi apropriada nos embates nacionais por toda a América Latina, agregando hoje organizações não governamentais, associações profissionais, instituições de defesa da família, além de unir distintas igrejas. A aliança entre católicos e evangélicos é visível em vários países da região. No Brasil, temos uma especificidade, a inclusão das associações espíritas, com forte enraizamento na sociedade civil, por meio de ações filantrópicas.

Ativistas antiaborto se mobilizam não só contra o aborto, mas contra a educação sexual e a pauta de gênero nas Escolas. Ganharam as batalhas em torno dos planos de educação não só no Brasil, mas também na Argentina, Colombia, Peru, Paraguai, Costa Rica, Panamá, Equador e Uruguai. Utilizam-se do recurso à judicializacão e, cada vez mais, do discurso dos direitos. Aborto seria genocídio, crime contra a humanidade, uma prática discriminatória contra pessoas portadoras de deficiência. Falam em proteção à mulher e proteção aos direitos das crianças. Liberdade de expressão, liberdade de consciência e liberdade religiosa. Articulam interpretações da Constituição, de tratados internacionais e do discurso dos direitos humanos. Apresentam ações na Justiça e participam dos debates nas cortes como amici curiae.

A renovação de estratégias discursivas revela que movimentos conservadores têm se submetido ao aprendizado do jogo de reação, neutralização e adaptação de linguagem. E também de formas de mobilização política. O ativismo antiaborto tem recorrido às práticas políticas típicas dos movimentos sociais progressistas para, em sentido inverso, bloquear ou fazer retroceder mudanças sociais e política: formação de associações, campanhas públicas, engajamento em partidos políticos, apoio a candidaturas, mobilização legal em arenas judiciais.

Assim, não se trata mais de reivindicar monopólio do poder de mobilização ao campo progressista, mas de compreender melhor as novas formas de associação e de ação pública conservadora. Pois, nos parece, vieram para ficar.

Marta Rodriguez de A. Machado é professora da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo e pesquisadora do CEBRAP. Débora Alves Maciel é professora de sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Unifesp e pesquisadora do CEBRAP. Atualmente desenvolvem pesquisa sobre a trajetória histórica do conflito político em torno do direito ao aborto, no Brasil, vinculada ao projeto internacional Abortion Rights Lawfare, Chr. Michelsen Institute, Norway, coordenado, no Brasil, por Marta Rodriguez A. Machado.

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