_
_
_
_
_

O hospital do Haiti que trocou baleados por acidentados

Número de vítimas por armas caiu em Martissant, Porto Príncipe, indica a rotina de um hospital

Pacientes descansam no centro de urgências de MSF no bairro de Martissant, em Porto Príncipe, capital do Haiti
Pacientes descansam no centro de urgências de MSF no bairro de Martissant, em Porto Príncipe, capital do HaitiJavier Arcenillas
Mais informações
Opinião | Envio de tropas brasileiras à África Central seria boa notícia para o Brasil e o mundo
A odisseia dos haitianos que deixam o Brasil em crise com destino aos EUA
ONU mantém imunidade apesar de admitir responsabilidade na eclosão da cólera no Haiti

Poucos organismos no Haiti possuem um registro detalhado de atividades. É difícil conseguir dados precisos sobre o censo populacional, a esperança de vida, os movimentos migratórios ou os últimos nascimentos. A maioria dos números divulgados provém de ONGs e é o conjunto de cooperadores em atuação no país caribenho que faz os cálculos. O Governo, entidade cuja existência parece capricho dos meios de comunicação, parece ter renunciado. Uma das organizações que ocuparam o vazio deixado por essa deserção é a Médicos sem Fronteiras. Visitar um de seus centros de operações não é como entrar num oásis, mas passar os olhos por páginas e páginas forradas de números em ordem impecável emociona.

Na capital, Porto Príncipe, o escritório do posto de saúde da organização no bairro de Martissant é transparente. Tem divisórias de vidro e o sol, em qualquer mês, bate forte: sempre em torno dos 30 graus. Graças à eletricidade autogerada, o doutor Helman liga um ar condicionado que devolve a alma a corpos inertes e derretidos pelo exterior. Em uma pilha próxima alcança um caderno com a contabilidade do hospital: última semana, 25 casos de cólera em cerca de 700. O restante, 54% de acidentes e 8% de ferimentos por arma de fogo. Toda uma conquista que vem se repetindo há meses. A segunda maior favela de Porto Príncipe e uma das mais perigosas, depois de Cité Soleil, trocou as armas pelas motocicletas. Ou melhor dizendo: passou a sofrer mais com traumatismos do que com tiros ou punhaladas.

O fenômeno é aplaudido pelo médico belga que prefere se manter anônimo. Atende 300.000 pessoas por ano, um cálculo aproximado que infere ao dar uma olhada em listas mais concretas que discriminam internações de atendimentos rápidos. E que vêm acumulando desde 2006, quando se mudaram para o imóvel utilizado em 2004 pela Organização das Nações Unidas. “Algumas doenças se agravam ou têm novos surtos, os tiros estão diminuindo”, diz, “a área está tranquila há um ano porque as brigas de gangues se acalmaram”, explica. No Haiti, os homicídios por arma de fogo chegaram a 1.132 em 2014, segundo as últimas pesquisas feitas pela Universidade de Sydney e divulgadas pelo site Gunpolicy.org, sem atualizações posteriores. Apesar de pouco atuais, tratava-se de uma redução considerável em comparação com os 1.939 de 2003, o número mais alto neste século.

No Haiti, os homicídios por arma de fogo chegaram a 1.132em 2014

“Uma das razões para estarmos aqui é oferecer um lugar aonde se possa ir em caso de emergência”, conta o diretor com um largo sorriso. Gesto que não desaparece nem ao ver as notícias do dia, que destacam a violência da capital, nem ao encarar o térreo do edifício, que não sofreu nenhum dano na passagem do furacão Irma pelo país semanas atrás. “Desviou para o norte. Na capital nem se notou”, diz um morador. Já sem o ambiente climatizado e com o tumulto entrando pela porta, o doutor percorre os corredores com um otimismo que contrasta com os rostos nas enfermarias. Contornando as rodas de pessoas plantadas nos corredores se vislumbra uma turba desesperada que estende os braços para conseguir entrar na lista. Em um canto, a apatia domina os que esperam em cadeiras de madeira. Em traje de palhaço, o comediante Merandisse Harold, de 32 anos, distrai as crianças. “Enumero os critérios de admissão, incentivo hábitos saudáveis e peço para esperar a vez e chegar o mais cedo possível”, diz com orgulho.

Segundo contam, os hospitais públicos estão em greve há 15 anos. “Não atendem ninguém”, acrescenta Helman mostrando as três ambulâncias de que dispõem para traslados. Cruzamos com a supervisora Eleonora Motta, que está há dois meses no Haiti. Sua primeira visita é à seção da cólera, uma barraca no pátio onde é preciso higienizar os sapatos e as mãos ao entrar e sair. “Transmite-se muito rápido”, alerta. “No início o surto foi muito forte porque a doença não era conhecida e nos pegou desprevenidos. Agora os sintomas já são conhecidos e não há tantas mortes”. Todos os leitos da seção, controlada por uma enfermeira, estão vazios, menos um, ocupado por S. M., de quatro anos. O menino jaz adormecido e entubado sobre uma grande abertura situada no meio da maca. “Chegam com diarreia e cólicas, muito desidratados, e o importante é tratá-los a tempo. Damos soro e acompanhamos a recuperação o organismo”, ensina Motta, que considera o menino de olhar ausente “recuperável”. Hoje, sussurra, vão lhe dar alta.

Das 100 pessoas que acorrem diariamente ao centro de emergência de Martissant, 50 o fazem de noite, quase todas por traumatismos. “Quatro em cada cinco são por batidas”, calcula a médica. Os casos mais graves são encaminhados a uma unidade especial. As fraturas simples são atendidas no horário das 7h30 às 16h, de segunda a sábado. “Sempre houve acidentes, mas agora as balas diminuíram”, observa Fritz, o enfermeiro da ala infantil que agora circula pelas dependências onde são feitas as reanimações. “Em 2015 eram 50 por mês, mas em 2016 já foram 30”, acrescenta ao lado de Blanc Jean Lesca, de 45 anos. Uma atadura cobre parte de seu crânio e uma tipoia imobiliza o braço direito. Evita com um ligeiro movimento de lábios contar de novo o que ocorreu. Seu acidente foi grave. Talvez por isso prefira fazer um balanço de sua sorte. Ao redor dele, outros pacientes tentam caminhar com muletas ou gemem entre gazes.

Em uma semana o hospital atendeu 700 casos: 54% são acidentes e 8% lesões por armas de fogo

Primeiros socorros, radiografias ou intervenções concretas. Depois da triagem, os pacientes são enviados ao centro traumatológico Nap Kenbe Tabarre, na área central da caótica urbe de 705.000 habitantes. Separados em cinco cores por índice de gravidade, aguardam ser chamados. Entre os piores, uma mulher com anemia por problemas ginecológicos que mal consegue respirar e apresenta um tom de pele opaco. “Estamos contendo a hemorragia para estabilizá-la. Já fizemos raios X e agora ficará aqui em observação”, traduz Motta. É acompanhada por um idoso de corpo seminu que mal consegue se levantar. “Está muito idoso”, indicam; nesta nação a esperança de vida ao nascer se situa em torno dos 63 anos. O trecho menos árduo da enfermaria principal é um menino de 11 anos: foi mordido por um cachorro, tomou a vacina antirrábica e já está pronto para partir.

Outros, no entanto, preocupam. Como um jovem inconsciente de 16 anos ou B. Z., de 45 anos, com uma febre nas alturas. “Vamos investigar se é malária, dengue ou chikungunya”, tranquiliza a médica, acostumada a lidar com essas doenças: no Haiti, a incidência de malária passou de 17.000 casos em 2010 para 25.000 em 2014, segundo um relatório da Organização Pan-Americana de Saúde. Também pode ser um parâmetro indicador de algo mais grave, como o HIV, com uma prevalência de 1,7% em adultos com idade entre 15 e 49 anos. Os desastres naturais como o violento terremoto de sete anos atrás – que deixou mais de 300.000 mortos e outros tantos feridos – ou o furacão Mathew de 2016, com 800 vítimas, dificultam os planos de erradicá-la até 2020. “Aqui tudo se propaga muito rápido”, lamenta Motta, que sussurra sabendo que logo mais terá de voltar para casa. Vai carro: não sobe em uma moto, sorri, “nem de brincadeira”.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_