A degeneração da democracia numa agenda contra o povo
Quanto mais fragilizado, mais o presidente entrega órgãos e orçamentos para serem trucidados por escusos interesses pessoais e partidários
Um publicitário disse, um tempo atrás, que a popularidade de um dígito do presidente Michel Temer lhe dava a oportunidade de tomar medidas duras e necessárias em vista da crise que assola o país. Estávamos, então, numa situação bem mais light: ainda não havia acusação contra o presidente por corrupção praticada no exercício do mandato. E reza a Constituição que o presidente não pode ser processado durante o seu mandato por um crime eventualmente praticado antes dele.
O grampo de Joesley Batista contra o presidente revelou que o trânsito de malas de dinheiro entre empresários e agentes públicos não apenas continua como também serve para obstruir a Justiça e financiar a defesa dos corruptos. Além de conter denúncias atuais que rompem a sua blindagem constitucional, o presidente vê diminuir - e encarecer - a sustentação parlamentar da qual deriva o seu poder, enquanto vice assumido e impopular.
Itamar Franco também foi um vice assumido quando ainda era pouco conhecido, mas não havia se empapuçado nas orgias do Collor e nem se envolvido na deposição dele. E ainda havia o medo de alguma eventual reação militar diante da queda rumorosa do primeiro presidente eleito após a democratização. Itamar encarou a missão, foi intransigente com a corrupção e deu espaço para o FHC implantar o Plano Real e controlar a hiperinflação. Terminou o seu pedaço de mandato com os índices de popularidade lá no céu.
A situação de Michel sempre foi diferente. Há referências de muitas décadas ao seu trânsito pela zona cinzenta de governos, tendo sido sócio em sangrias mais recentes como as ocorridas na Petrobras. Como candidato a vice, respaldou reincidentemente o Governo que, depois, derrubou. E justifica a agenda impopular do seu governo por oposição a medidas que, por longo tempo, apoiou.
Agora, a situação se agravou. Dia 2 de agosto deve haver votação no plenário da Câmara para autorizar, ou não, que o presidente seja processado pelo STF, sob a acusação de corrupção passiva. E a agenda do presidente se orienta exclusivamente para impedir que 342 deputados votem a favor da abertura do processo, número mínimo para que Temer seja julgado.
Embora já não sonhe com o apoio de 60% do Congresso para reformar a Previdência, o presidente não economizou para garantir, pelo menos, que tantos deputados não votem contra ele. Porém, já se anunciam outras duas denúncias para novos processos contra o presidente.
A lista das aberrações em curso é gigante e ainda pode se estender por onde não se exija o quórum constitucional: anistia de dívidas previdenciárias e tributárias, grilo de terras públicas, redução de unidades de conservação ambiental, paralisação da demarcação de terras indígenas e da titulação de quilombos, distribuição de cargos e verbas, permissão de venda de terras e de concessões minerárias para empresas estrangeiras, repatriação de dinheiro ilegal depositado no exterior, fragilização do licenciamento ambiental. Seriam essas as duras medidas que o país precisa, independentemente da vontade popular?
Quanto mais fragilizado, mais o presidente entrega órgãos e orçamentos para serem trucidados por escusos interesses pessoais e partidários. Políticas públicas e legislações que foram construídas durante três décadas de regime democrático estão sendo demolidas impunemente, de modo a despejar todo o ônus da crise sobre o andar de baixo da sociedade. Se o que resta de democracia e decência precisar de muito mais tempo para derrubar os cupins que se apossaram do poder à revelia do povo, restarão apenas escombros, como na Síria, duros de serem removidos para que se reconstrua o sentido de Nação.
Márcio Santilli foi presidente da Funai. Sócio-fundador do ISA, do que atualmente é assessor do Programa Política e Direito Socioambiental
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