Prefeito de BH: “Quero dinheiro para fazer hospital. O Temer que se dane”
Alexandre Kalil, que se elegeu negando ser político, rechaça comparações com João Doria. Ao EL PAÍS, o ex-dirigente de futebol diz não dar bola para tormentas no Governo federal
O ar de tensão é flagrante. À medida que a prefeitura fecha as portas, cercada por um cordão de isolamento formado por dezenas de policiais, ouve-se cada vez mais estrondos de bombas a poucos metros dali. De longe, o dia mais crítico dos seis meses de mandato de Alexandre Kalil, 58, ex-presidente do Atlético Mineiro que, pela primeira vez, ocupa um cargo público e tem de lidar com a resistência de vendedores ambulantes impedidos de trabalhar nas ruas de Belo Horizonte. A repressão violenta ao protesto dos camelôs, condenada por alguns vereadores e organizações de direitos humanos, não abalou a confiança do prefeito em seu projeto de revitalização do centro da cidade, uma promessa de campanha à qual ele não pretende renunciar. “Sou homem de compromisso”, afirma ao EL PAÍS após se reunir com representantes das forças de segurança em seu gabinete, na tentativa de contornar a crise deflagrada naquela tarde.
Neto de imigrantes sírios, Kalil tem sangue quente, mas diz que precisou controlar os ânimos ao assumir o Executivo da capital mineira. “A política é muito diferente do futebol. A política precisa ser tratada com humanidade e o futebol, com paixão”, divaga. “Política não é feita com grito e porrada, mas com planejamento e racionalidade”. Embora prefeito da terceira capital mais importante do país, ele não se enxerga como parte do sistema político tradicional que tanto amaldiçoou durante a campanha eleitoral. “A entrada na prefeitura foi um choque de realidade para mim. Não sabia que a elite brasileira, sobretudo a elite política, era tão gananciosa, corrupta e desumana”, sentencia de forma veemente, com os dedos indicadores em riste.
Também permanece o discurso populista da época de eleição. Faz questão de frisar o quanto a pobreza o sensibiliza, mas não esconde seus laços com o setor empresarial. Herdeiro de uma empresa de engenharia do pai, Elias Kalil, que também foi presidente do Atlético e é lembrado no quadro principal do gabinete, tomou posse acumulando dívidas de aproximadamente 200.000 reais com a prefeitura, sobretudo por atrasos no pagamento do IPTU. Alegando dificuldades nos negócios, entrou em acordo para quitar os débitos de forma parcelada antes de iniciar o mandato e, atualmente do outro lado do balcão, exime o empresariado de sua crítica às elites. “Quem ganhou dinheiro lutando, não tem obrigação de ajudar ninguém. O empresário não ficou rico pelo voto. Há uma grande diferença entre a elite política e a elite empresarial.”
Assim como João Doria, prefeito de São Paulo, Kalil elegeu-se sob o mantra do “não sou político”. Agora, confrontado com os meandros do Executivo, muda o tom ao descrever a própria condição. “O ser humano é político por natureza”, argumenta. “Eu disse na campanha que era possível fazer política sem dar emprego a vereador. Afirmei aquilo [que não era político] porque o povo não entenderia a linguagem da politicagem.” Por mais de uma década ele foi filiado ao PSDB e, apadrinhado por Eduardo Campos, esteve ligado ao PSB por dois anos. Em 2016, filiou-se ao PHS, que tem como presidente em Minas Gerais o deputado federal Marcelo Aro, antigo aliado de Eduardo Cunha no Congresso Nacional. Apesar do histórico, Kalil diz manter distância do aparato partidário. “Partido não é uma boa numa hora dessas. Meu partido não me elegeu, não me deu um centavo. Mas o trato com respeito, assim como a todos os partidos.”
Questionado sobre possíveis semelhanças com Doria, o prefeito de BH é enfático: “Eu não aceito qualquer tipo de comparação com nenhum dos governantes que foram eleitos comigo. Porque eu não tive apoio de governador, ex-governador, ex-prefeito... Fui eleito com 20 segundos de televisão. Meu adversário teve cinco minutos. Não conheço o prefeito Doria. Respeito sua maneira de ser. Mas tenho um jeito antagônico ao dele. Eu não quis apoio de político nenhum. Me parece que não foi o caso dele”. Seria improvável, então, ver Alexandre Kalil investir em marketing pessoal e fantasiar-se de gari ou agente de trânsito? “Eu acho que sim”, responde, gargalhando.
As principais diferenças entre as gestões Kalil e Doria, porém, tem residido no conceito de cidade. Enquanto Doria pintou muros paulistanos de cinza logo no início de seu mandato, Kalil bancou de cara o projeto Gentileza, que incentiva grafiteiros e a arte de rua. Enquanto Doria interrompeu parcialmente o fechamento de algumas vias da capital paulista aos domingos, Kalil abriu a área nobre da Savassi e pretende expandir a iniciativa para as avenidas da periferia de BH. “Doria foi eleito falando que não ia fechar as ruas para os carros. Eu fui eleito falando que ia abrir as ruas para as pessoas. Cada um faz o seu. Quero que a população ocupe Belo Horizonte aos domingos. Isso acontece no mundo inteiro. Nossa ideia é ter uma cidade aberta e colorida, com bicicleta, música e festivais de rua.”
Política sem partido
Kalil é econômico ao listar os méritos do primeiro semestre de gestão. “Não houve grande feito. Estamos trabalhando para não deixar os hospitais fecharem”, conta. No entanto, o prefeito não poupa adjetivos ao discorrer sobre o que, para ele, é sua principal conquista. “Hoje não tem nenhum partido político que manda na prefeitura. Pela primeira vez na história desse país, uma prefeitura é essencialmente técnica, sem nenhum partido tocando secretarias de primeiro escalão.” No comando das 13 secretarias, convivem três pessoas de confiança com quem trabalhou no Atlético (Adriana Branco, secretária de Comunicação Social, Bebeto de Freitas, secretário de Esporte e Lazer, e Daniel Nepomuceno, secretário de Desenvolvimento), ex-integrantes do staff dos ex-governadores Aécio Neves e Antonio Anastasia e figuras ligadas aos governos de Lula e Dilma Rousseff, como o ex-ministro da Cultura Juca Ferreira, responsável pela recriação da secretaria de Cultura em BH. “Não existe ninguém mais técnico que o Juca Ferreira para o cargo. É o homem que inventou a inclusão social através da cultura”, diz o prefeito.
Em junho, ele deu uma prova de força ao conseguir passar a reforma administrativa na Câmara dos Vereadores, que, entre outros pontos, enxuga a máquina municipal. “Aprovei a reforma por 38 votos a zero. Eu tive voto do PT e do PSDB, da esquerda e da direita, sem precisar dar nenhum cargo.” O ponto da reforma que mais gerou controvérsia era a proposta de criação de um Conselho LGBT na cidade. A emenda, apoiada pela gestão de Kalil, acabou rejeitada por vereadores, influenciados pela grita da bancada evangélica. “Eu era a favor. Mas respeito a maioria, que representa a maioria do povo. É um assunto que precisa ser debatido de um jeito mais ameno. Os próprios homossexuais que estão sofrendo acabam sendo vítimas de projetos políticos, tanto de um lado como do outro. São pessoas que precisam de proteção, mas o Estado pode protegê-las mesmo sem o Conselho. Eu criei três homens heterossexuais, mas posso ter um neto homossexual. Vou jogá-lo para fora de casa, nesse mundo tão marginalizado?”, afirma o prefeito, que promete organizar até o fim de seu mandato a maior Parada Gay do país em Belo Horizonte.
“Corrupção não é assunto para prefeito de Belo Horizonte, secretário, médico de hospital... Tem que perguntar aos juízes. Isso é assunto para o Judiciário. Que tomem vergonha e prendam os ladrões. A corrupção está escrachada na cara de todo mundo. Não há mais nada para se descobrir. Agora é problema do Judiciário.”
Centralizador desde os tempos de dirigente de futebol, o que mais incomoda Kalil em sua curta trajetória como político são os trâmites burocráticos e a falta de informação a respeito de questões-chave da cidade. “Isso é uma coisa que me entristece muito: ter o dinheiro e não conseguir usá-lo por causa da morosidade da máquina. Também me aborrece quando o problema não chega ao ouvido do prefeito, pelo tamanho da cidade e pelo tamanho das demandas.” Em uma dessas ocasiões, o prefeito quebrou o protocolo e, remetendo ao personagem de cartola falastrão, soltou o verbo em seu perfil no Twitter.
Durante 24 horas, os postos de saúde de BH ficaram sem fita para medição de glicemia em pacientes diabéticos. No dia seguinte, o prefeito anunciou a compra de 250.000 fitas. “Isso me tirou do sério. O assunto não chegou ao meu ouvido. Nada acaba de repente. Eu deveria ter sabido quando a fita estava acabando, e não quando acabou”, afirma, antes de justificar o palavrão empregado na rede social. “No Brasil é normal faltar remédio, faltar gaze, um secretário do Rio de Janeiro dizer que a putaria vai continuar na saúde... E o pecado do Alexandre é estar indignado? É ser polêmico? Gritar que faltar fita de glicemia é o caralho? É exatamente isso que o pai de uma criança diabética sente.”
Um ex-cartola entre os caciques
Corrupção é o único assunto que faz Kalil mudar o semblante e subir o tom de voz. Ao ser indagado sobre como a agonia do Governo de Michel Temer reflete em sua administração, o prefeito se exalta: “O Temer que se dane!”, esbraveja. Ele teve dois encontros com o presidente da República, em Brasília, para pedir a liberação de verbas para projetos da cidade, como a ampliação de atendimento no Hospital do Barreiro e a reabertura do aeroporto da Pampulha para aviões de grande porte. “Eu quero resolver o problema do pobre que eu prometi. Quero dinheiro para fazer hospital e o aeroporto. Não me interessa o Temer. ‘Ah, o Kalil tá se esquivando’. Eu quero que o Temer se foda, que ele vá pra puta que o pariu”, diz, reiterando que não se preocupa com as denúncias de corrupção que recaem sobre o Palácio do Planalto, desde que o Governo libere as verbas previstas para a cidade.
Sobre antigos aliados em Minas Gerais, Kalil fala com mais serenidade. Antes de mergulhar de cabeça na política, ele posou ao lado do amigo e então presidente do Cruzeiro, Zezé Perrella, para apoiar a candidatura de Antonio Anastasia (PSDB) ao Governo estadual, em 2010. Jura não ter votado, quatro anos depois, em Aécio Neves para a presidência – teria justificado o voto no Rio de Janeiro. Mas admite que endossou, inclusive com doação em dinheiro para campanhas, os dois mandatos do tucano como governador. “Eu sinto pena deles”, afirma, em alusão a Aécio e Perrella, investigados no escândalo de propina da JBS pela Operação Lava Jato. “Não consigo ter raiva de quem está passando por isso. Falo e repito: não acredito que o professor Anastasia esteja envolvido em nada. Já o Aécio eu conheço pouco. Não nego que o apoiei e não me arrependo de nada. Ele era uma espécie de coqueluche em Minas, foi eleito no primeiro turno, 85% da população do estado votou nele em algum momento. Acreditamos em uma coisa que deu errado. Ele vendeu um produto e entregou outro.”
Ele revela que continua próximo de Perrella, com quem protagonizou diversas trocas de farpas nos bastidores da cartolagem, mas mantinha boa relação fora da bolha futebolística. “Ele me trata com muita gentileza, e eu o trato da mesma forma. Antes de tudo isso acontecer, ele me visitou na prefeitura e eu o recebi com todo carinho, tanto ele quanto o filho [Gustavo Perrella]. Nunca tratamos de nenhum assunto secreto. Falamos de futebol, Atlético, Cruzeiro... Apesar de ter sido chamado para me atacar, ele fez questão de ficar fora da eleição.” Durante uma campanha marcada por acusações, seu adversário no segundo turno, o ex-goleiro João Leite, contava com o apoio de Aécio e outros cinco partidos além do PSDB. Kalil saboreou o triunfo de azarão como um título de Libertadores. “Minha vitória em BH foi o início da queda do Aécio. Uma vitória deliciosa. Vários caciques derrubados por um homem só, um pobre mortal. Cada vez que via a fotografia dos derrotados, mais eu me deliciava. Não gosto de ver ninguém preso. Mas gostei de ver todas aquelas caras de bunda depois que eu fui eleito.”
Kalil afirma que, embora já tenha sido filiado aos tucanos, não se identifica com nenhuma corrente política. Ao mesmo tempo em que defende que “o governo tem de cuidar dos pobres”, estufa o peito para sentenciar que “futebol não é coisa para pobre”, prega a favor do Estado mínimo e pragueja contra políticas públicas de distribuição de renda. “Assistência social é emprego para todo mundo. Enquanto a gente dava Bolsa Família, ‘Bolsa puta’, ‘Bolsa cachaça’, ‘Bolsa tudo’, a China fez os dez maiores portos do mundo”, compara ao sustentar sua tese. Assegura que, ao contrário daqueles que qualifica como “caciques da velha política”, seus eleitores não o verão nas manchetes por escândalos de corrupção. “Como presidente do Atlético, passaram bilhões de reais na minha mão. E as contas sempre foram aprovadas por unanimidade no Conselho. Tenho ficha limpa. Nunca ganhei um tostão com futebol.” Pouco mais de seis meses no Executivo foram suficientes, evocando uma histórica defesa do goleiro atleticano, para cravar: “É mais difícil ser dirigente do que prefeito”, diz, sem hesitação. “Porque, no futebol, você faz tudo certo e depende do pé esquerdo do Victor. Aqui [na prefeitura], não. Se eu fizer tudo certo, vou entregar uma cidade melhor.”
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