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Rafael Mafei | Professor de Direito da USP

“Falta de registro do triplex dificulta provar acusação, mas não absolve Lula”

Para professor da USP, Rafael Mafei, falta de documento pode ser interpretada como ocultação de bem

Rafael Mafei, professor doutor em Direito
Rafael Mafei, professor doutor em DireitoDivulgação

O processo de Lula sobre o triplex do Guarujá está em seu ato final, com o juiz Sérgio Moro prestes a elaborar uma sentença definitiva sobre eventuais crimes que o ex-presidente possa ter cometido. O aparato midiático que cercou o interrogatório do ex-presidente em Curitiba nesta quarta não deve interferir no juízo, avalia Rafael Mafei, professor de Direito da Universidade de São Paulo. Mafei respondeu a perguntas por email do EL PAÍS enquanto os vídeos de Lula respondendo a Moro eram divulgados na web.

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Pergunta. Na sua avaliação, o que está em jogo neste embate que se formou, Lula X Moro?

Resposta. De parte a parte, está em jogo, de um lado, a percepção social de que a Justiça é capaz de chegar aos altos escalões de poder. Mesmo quem critica a operação não pode negar que havia, historicamente, um déficit nesse sentido, e que ela foi capaz de mudar essa percepção em alguma medida. De outro lado, está em jogo também a nossa crença de que o Judiciário é capaz de fazer justiça sem descumprir, ele próprio, as regras do jogo. E, claro, também a crença de que essa nova era da justiça para todos atingirá, de fato, todos os envolvidos nas relações impróprias que têm sido reveladas. Não é razoável crer que empresas de engenharia de grande porte, que em grande parte viviam de contratar com o poder público, tivessem departamentos estruturados de corrupção apenas para uma relação episódica e transitória com o PT durante os seus anos de governo federal. Essas empresas contratam com Estados e municípios há décadas, passaram por todas as ideologias do espectro partidário e são o que são há mais de uma geração de políticos. No entanto, os judiciários e ministérios públicos estaduais, que têm relação histórica de proximidade acomodadora com os governadores, não parecem dispostos, até aqui, a comprar brigas semelhantes às que o MPF tem comprado em nível federal. Isso dá combustível à ideia de que a Justiça tem lado e desacredita os efeitos positivos que poderiam advir de todo esse processo.

P. No depoimento de cinco horas, o Lula político parece crescer sobre o juiz, mas sua verve de homem público não consegue fugir de contradições. É o caso de dizer que não sabia de reformas do apartamento mas que seu instituto disse que sabia que estavam sendo feitas. O “diabo nos detalhes” é suficiente para levar a uma sentença suntuosa?

R. O depoimento de Lula será apenas um dos muitos elementos de prova que há nos autos do processo. Ele não será condenado ou absolvido apenas pelo que disse ontem. Seu interrogatório foi inflado em importância pela imprensa e pelos atores políticos, é um elemento importante de sua defesa, mas seu peso é relativo e soma-se a tudo o mais que há nos autos, como documentos, laudos periciais e depoimentos de testemunhas. Resta-nos aguardar a sentença e avaliar os fundamentos de fato e de direito que Moro indicará em sua decisão, seja ela qual for.

P. Em seu depoimento, Lula disse que a dona Marisa foi ao apartamento e fez visitas que ele só soube depois. Atribui a ela interesse no imóvel como investimento. A dona Marisa, agora falecida, pode estar sendo usada como álibi pela defesa?

R. Não tenho como responder, seria pura especulação de minha parte. Pode ser que sim, mas também pode ser que não, já que há provas do efetivo envolvimento de Marisa nos assuntos relativos ao imóvel.

P. Quais são os próximos passos deste processo contra Lula?

R. Após o interrogatório, como regra há a apresentação das alegações finais de acusação e de defesa, e em seguida a sentença. Alegações finais são as peças processuais em que se articulam as teses de acusação e de defesa com referência às provas colhidas durante a fase de instrução processual, tais como laudos periciais, testemunhos, etc.

P. As considerações finais de defesa e acusação têm prazo regimental para ocorrer?

R. Embora o Código de Processo Penal fale em prazo de cinco dias para alegações finais escritas, é possível que em casos de maior complexidade, como certamente é este, esse limite seja estendido, a critério do magistrado. Em alguns casos na Lava Jato, Moro já estendeu esse prazo diante das circunstâncias de casos concretos. Em outros, não.

P. Lula pode ir direto para a prisão a depender da sentença de Moro? Ou só se, depois de Lula recorrer, ele já pedir uma prisão preventiva?

R. Tendo respondido a todo o processo em liberdade, parece-me muito difícil que Lula seja preso após sentença condenatória. Até o trânsito em julgado da decisão, ou ao menos até a condenação em segundo grau, qualquer prisão depende justificativas que não se confundem com a culpa do réu: ameaça de fuga, prejuízo à efetividade do processo, dano à ordem pública. Se não se viram presentes esses elementos até aqui, não tenho razões para acreditar que uma condenação recorrível os faria aparecer.

P. Mas caso a segunda instância (Tribunal Reginal Federal 4, do sul do país) confirme a sentença de Moro, Lula vai para a prisão ou depende da pena? A idade dele pode reduzir sua pena, segundo o estatuto do idoso?

R. Ao condenar alguém por um crime, a sentença condenatória fixa o regime inicial de cumprimento da pena. Tal regime depende tanto da quantidade de pena a que o réu for condenado, como também da gravidade da conduta. O Código Penal prevê, como circunstância atenuante, ter o réu mais de 70 anos na data da condenação. Mas na acusação contra Lula há várias outras circunstâncias que, se aceitas pelo juízo, aumentariam sua pena, como a acusação de violação de dever funcional. O impacto de redução não deve ser significativo, portanto. O que me parece mais importante, porém, é que a acusação pede a condenação de Lula a vários crimes em "concurso material", isto é, com as penas somadas. Como estamos falando de 7 acusações de corrupção e mais 3 de lavagem, isso levaria a penas muito altas, se a acusação for julgada procedente em sua maior parte. Nessa hipótese, nenhuma redução de pena ou circunstância atenuante, tal com a idade, seria capaz de impedir a fixação de regime inicial fechado.

P. Se Lula for condenado – e o TRF 4 confirmar – é possível interpretar que outros nomes relevantes de outros partidos serão?

R. Será possível afirmar que, no que depender de Moro e do TRF 4, tem grandes chances de prosperar a tese de que as cúpulas partidárias presumem-se penalmente responsáveis pelos atos de seus governos, parlamentares e indicados políticos. Essa presunção, porém, é muito problemática no direito penal, já que um princípio elementar deste campo do direito impede condenações por presunções de culpa baseadas apenas em posição hierárquica em uma organização (uma empresa, um partido, um governo). Contudo, qualquer juízo específico deve ser feito sempre à luz dos casos concretos, já que as situações de réus distintos raramente são idênticas.

P. Nesta ação, Lula é acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, mas não de formação de quadrilha, apesar de a denúncia falar que Lula era o "rei da propinocracia". Faz sentido para você? Qual punição prevista para tais crimes?

R. As denúncias contra Lula - são cinco até aqui - não foram elaboradas sem atentar para uma estratégia conjunta. Embora esta não o acusasse de que pertença a organização criminosa, ela já contém a narrativa que, adiante, permitiria que ele fosse denunciado por esse crime, com de fato foi. Trata-se da narrativa celebrizada na apresentação de Power Point feita pelo MPF em entrevista coletiva na ocasião: tudo levaria a Lula, em suma. Sob esse prisma, é possível compreender que ele tenha sido descrito como "rei da propinocracia" sem ser denunciado pelo crime. Trata-se de uma estratégia acusatória, na minha avaliação. Quanto às penas, o crime de corrupção passiva tem pena de 2 a 12 anos, com aumento de um terço pela violação de dever de ofício de funcionário público, conforme imputado a Lula; já o crime de lavagem de dinheiro tem pena de três a 10 anos, com aumento de um terço a dois terços pela sua prática de forma reiterada, como também imputado na denúncia.

P. Há nas delações provas como fotos de que Lula visitou o apartamento, além da acusação de que o pagamento da OAS pelo armazenamento dos presentes de Lula. Já a defesa de Lula afirma que o imóvel não era de sua propriedade, portanto não há crime. A acusação lhe parece forte o suficiente? De que forma a falta de registro fragiliza a acusação?

R. A falta do registro torna mais difícil provar a versão da acusação. Ela não é, contudo, absolutória de Lula por si só. É importante notar que, pela versão acusatória, a falta de registro seria modo de ocultar a verdadeira propriedade, ou ao menos o domínio de fato, do imóvel; e tal ocultação, quando se fala de bens ou valores de proveniência ilícita, é constitutiva do crime de lavagem de dinheiro. Embora eu não tenha acesso às provas dos autos, a mim parece que as provas até aqui veiculadas pela imprensa sugerem que Lula tinha, sim, uma relação com o imóvel que não era a de um [comprador] interessado comum. A questão é que isso não é, por si só, um crime: é necessário que se prove a relação desta vantagem indevida com um ato ilegal por ele praticado enquanto ainda era presidente. Essa me parece ser a relação mais difícil de se estabelecer. Lula teria recebido a vantagem (o domínio do imóvel) após deixar a Presidência, mas os atos ilegais a ele imputados na denúncia remontariam às primeiras nomeações de diretores da Petrobras, em 2003. Não é um nexo simples de se provar. Um versão alternativa plausível não é laudatória à figura de Lula, mas não chega a constituir um crime por si só: ao sair da Presidência, Lula teria se convertido em porta-voz dos interesses - um lobista, em outras palavras - dessas companhias, que hoje sabemos com funcionavam; e seu status de estrela mundial o garantiria, além de honorários de enorme valor, uma série de confortos, um dos quais seria o tal apartamento.

P. E nesse caso?

R. Nesse último caso, por mais que se reprove o emprego que Lula escolheu fazer de seu inigualável prestígio e influência, tal reprovação é política e deve ser feita em foros outros que não o Poder Judiciário - pela imprensa, pelos eleitores, etc. Em sentenças anteriores na Lava Jato, porém, Moro não teve dificuldades em reconhecer nexos igualmente tênues. Ficarei muito surpreso se ele decidir de modo distinto para Lula, ao menos por este motivo.

P. O que representa para o direito em si esta etapa midiática?

R. O direito deve ser capaz de cumprir seu papel mesmo nessas condições de hiperexposição midiática. Ele o fará se demonstrar que é capaz de assegurar processos justos, conduzidos por magistrados imparciais, onde se faz cumprir a lei - absolvendo ou condenando, sem busca por aplausos ou medo de vaias. Porém, não é de hoje que algumas autoridades judiciárias caminham sem prudência neste tópico. E o mau exemplo, muitas vezes, vem de cima.

P. O aparato midiático em torno do depoimento do ex-presidente pode influenciar direta ou indiretamente o julgamento?

R. Já não creio que haja quem negue a evidente relação entre mídia e Judiciário na Operação Lava Jato. A busca de apoio social utilizando-se de mídias variadas, desde veículos tradicionais até redes sociais, parece-me jamais ter sido negada pelos próprios integrantes da força tarefa. Novamente, o episódio dos áudios ilegalmente vazados; ou ainda o recuo na ordem de prisão de Guido Mantega, pelo aparente receio de que a situação de saúde de sua esposa causasse revés à imagem social da operação, são apenas alguns exemplos de como essa relação já existe e sua influência sobre atos jurisdicionais já se fez sentir.

P. Há quem diga que Lula começa agora uma corrida contra o relógio para evitar condenações. Você concorda?

R. Não conheço detalhes da estratégia de Lula. Posso dizer apenas que ele tem um motivo bastante objetivo para evitá-las, já que condenações o deixam mais perto de se tornar inelegível em 2018. Portanto, assumindo que seja seu objetivo candidatar-se em 2018, ele tem sim razão para evitá-las ou retardá-las, especialmente em segundo grau.

P. Quais as chances de prosperar esses pedidos de Lula para destituir Moro do caso, por que ele já teria perdido papel de juiz imparcial? O que acha da acusação?

R. Nenhum pedido de reconhecimento de imparcialidade de Moro prosperou até aqui. Vários foram feitos. Não creio que será diferente com Lula, pois isso abalaria a imagem de toda a operação. Esse cálculo político é impróprio quando falamos do direito a um processo justo, mas é inegável que o Judiciário o faz. Pessoalmente, não tenho confiança na imparcialidade de Moro para julgar Lula, por razões objetivas: em oportunidades anteriores, Moro se mostrou disposto a violar a lei em prejuízo dos projetos políticos de Lula e de seu partido. Refiro-me ao célebre caso do vazamento de áudios ilegalmente captados entre Lula e Dilma, cuja motivação parece-me ter sido evidentemente imprópria: criar fato político relevante que alimentou a comoção social contra o governo Dilma e barrar a posse de Lula como ministro. Isso para mim basta para recomendar, por prudência, que a juíza ou o juiz a julgá-lo fosse outro.

P. A determinação de um juiz de Brasília para fechar o Instituto Lula na ação que apura obstrução de Justiça tornou-se público um dia antes da oitiva do ex-presidente. O que acha dessa decisão em si?

R. A decisão é descabida. Os direitos de reunião, de manifestação, de livre expressão, de associação, e outros análogos, são pobremente defendidos no Brasil. Nossas autoridades têm inclinações por censura, por remoção de conteúdo na internet, por proibição a críticas contra figuras públicas. O Tribunal de Justiça de São Paulo fraqueja para impor mínimos padrões democráticos ao policiamento de protestos. O ministro Alexandre de Moraes, quando secretário de segurança pública de São Paulo, buscou meios jurídicos para usar força policial contra adolescentes em escolas ocupadas sem controle do Poder Judiciário, negando a óbvia dimensão dos direitos reclamados por aqueles jovens. Tenho convicção de que o Poder Judiciário não compreende o valor estruturante desses direitos para uma democracia, e os empobrece quando é chamado a defendê-los. O espírito da Constituição, nessas matérias, ainda está por ser descoberto no Brasil. Nesse contexto, embora descabida, a decisão não chega a ser surpreendente. O surpreendente, neste caso, é que, segundo as últimas informações, a medida foi determinada pelo juiz de ofício. Nem o próprio Ministério Público Federal a teria solicitado. Quero acreditar que ela será rapidamente reformada.

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