Corrupção empresarial coloca em xeque o modelo de capitalismo brasileiro
Devassa da Lava Jato em megacompanhias como a Odebrecht e JBS mostram "laços" do sistema
A divulgação das delações de Marcelo Odebrecht e de seu pai, Emílio Odebrecht, em abril, colocou em xeque a ideia de que existe uma fronteira entre Estado e empresas privadas no Brasil. Independentemente da orientação política, a Odebrecht mostrou que é possível corromper autoridades públicas, com o pagamento de propinas – chamadas de "ajuda" ou "investimento" pelos empresários, nos depoimentos –, e garantir que seus interesses sejam atendidos. Para isto, bastava ter flexibilidade para se adaptar ao interlocutor. A corrupção praticada por Emílio não é a mesma de Marcelo. Enquanto o pai mantinha o estilo de baiano conciliador, respeitoso das hierarquias e tido como interessado em grandes questões do futuro do país, o filho abraçou sua herança germânica e colocou a praticidade à frente dos relacionamentos. Em comum, ambos tinham apenas uma característica: o capitalismo de laços.
O termo, cunhado pelo professor do Insper Sérgio Lazzarini, descreve um emaranhado de contatos, alianças e estratégias de apoio gravitando em torno de interesses políticos e econômicos. Quando fala em "laços", Lazzarini não está se referindo a relações próximas, íntimas ou duradouras, mas sim "um contato pessoal que é estabelecido para obter algum benefício particular ou, ainda, um gesto de apoio visando algo em troca no futuro". Esse modelo de "trocas" de interesse foi a base do desenvolvimento do Brasil nas últimas décadas. "O país cresceu com intensa atuação do Estado distribuindo recursos via BNDES, concessões públicas, cargos nas estatais, projetos de infraestrutura. Para ter acesso a estes recursos, era preciso saber quem controlava essa máquina de benefícios. E no Brasil esse papel é feito pelo Governo", afirma Lazzarini.
Passados dois anos da prisão de Marcelo Odebrecht, em junho de 2015, outros casos mostrando que não se trata de um problema partidário ou pontual de determinado governo ou setor. Joesley Batista, dono da gigante de carnes J&F, tirou do eixo o já frágil Governo de Michel Temer com as gravações em que tenta revelar as ligações do presidente com pagamento de propina. Se Temer lidera a "quadrilha mais perigosa do Brasil", como quer fazer crer Batista, é difícil dizer. Os casos de corrupção continuam pipocando e em todas as esferas de poder. Veja o transporte no Rio, com a família Barata, proprietária de dezenas de empresas de ônibus, que entrou na mira da Lava Jato, com a prisão de Jacob Barata Filha, o herdeiro do império, acusado de pagamento de propinas de meio milhão de reais entre 2019 e 2016. A expectativa é que outros setores ainda sejam atingidos, ou seja, no capitalismo de laços brasileiro, separar o joio do trigo, por enquanto, parece ser uma tarefa difícil. Os defensores da Lava Jato dizem que são essas companhias alvo que, se sobreviveram e seguirem no mercado, serão obrigadas a liderar a mudança no modelo.
De Emílio a Marcelo
Neste panorama, a trajetória dos Odebrecht é reveladora. O patriarca do grupo, Emílio, aproveitou o processo de redemocratização para se colocar "à disposição" dos diferentes Governos, a fim de ter acesso à essa estrutura de benefícios. Sua participação nas esferas de poder está bem clara nos três volumes de memórias escritos pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Diários da Presidência. Em abril de 1996, o presidente escreveu: "Almocei com Emílio Odebrecht e a Ruth. Emílio veio trazer sugestões, nada para ele, só a respeito de vários temas de interesse nacional. É curioso. Tem um nome tão ruim a Odebrecht, e o Emílio tem sido tão correto, e há tantos anos".
O nome ruim a que Fernando Henrique se referia estava ligado às acusações feitas à empresa no inquérito dos "Anões do Orçamento" – o escândalo que tomou o Congresso no final dos anos 1980, quando um grupo de parlamentares de menor repercussão, chamados pejorativamente de anões, foram investigados por fraudes com recursos do Orçamento Geral da União. Descobriu-se, na época, que os políticos negociavam emendas pelo recebimento de percentuais dos recursos que seriam futuramente repassados às obras de infraestrutura. E a Odebrecht era uma das empresas envolvidas, tendo sido, inclusive, alvo de busca e apreensão de documentos.
Em sua delação, Claudio Melo Filho, ex-diretor de Relações Institucionais da Construtora Norberto Odebrecht, explicou as mudanças que a empresa teve que fazer para se adaptar à realidade após as investigações. "Os recursos para as obras passaram a ser aprovados e liberados diretamente pelo Poder Executivo, por meio da criação de dotação orçamentária específica, que não mais sofria influência individual de parlamentares (...) Ao invés de pressionar parlamentares, passou-se a pressionar os 'donos da obra', ou seja, os governadores ou prefeitos, para que estes pressionassem as suas respectivas bancadas estaduais".
Assim, a Odebrecht sobreviveu a mais um escândalo, pelo menos até a Lava Jato. A má fama não impediu que o empresário tivesse acesso privilegiado às esferas de poder. "É verdade, ele contribuiu, como todos [os demais empresários]", afirmou FHC em suas memórias. Mais tarde, Emilio descreveria em sua delação ter dado "vantagens indevidas não contabilizadas" às campanhas eleitorais do tucano, o que o ex-presidente nega. Nesta quarta-feira, a Justiça arquivou o pedido de investigação com base na acusação do patriarca porque, de acordo com o Ministério Público, o crime prescreveu.
O delatado por Emílio segue, no entanto, sendo fonte de pressão para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, já que o modelo de capitalismo de laços foi mantido no Governo petista. O patriarca da Odebrecht e Marcelo descrevem em suas colaborações a aproximação com Lula, a quem dizem chamar de "Amigo" na planilha do setor de propinas da Odebrecht. Os favores, eles dizem, eram pessoais: mesada para parentes, ajuda com reformas de propriedades, como afirmou Emílio.
À medida que o país foi crescendo, os "favores" e recompensas também mudaram de figura. E quando Marcelo assumiu a empresa, o modelo de relacionamento também mudou. Para ele, a "nobreza" cultuada por seu pai – parlamentares, ministros, membros do executivo que se reuniam em seus jantares para azeitar as relações – atrasavam o andamento do país, e, paralelamente, o desenvolvimento da empresa. Em sua delação, Hilberto Silva, chefe do departamento de propinas da Odebrecht firmou: "Ele [Marcelo] queria um nível de crescimento para a empresa, mas sabia que para que a empresa crescesse da forma que ela operava, ia precisar aumentar esse tipo de trabalho [pagamento de propina]. E para todos os setores, não só o público. O fiscal de uma obra de um setor privado também exige certos benefícios que não era do setor privado."
Com um estilo prático, Marcelo estruturou um modelo de pagamentos que atendesse à ânsia política, prospectasse novas lideranças a serem corrompidas – nem sempre com sucesso, como o investimento de R$ 6 milhões feito ao Pastor Everaldo PSC), que não decolou na corrida presidencial –, e garantisse que nada desses valores saíssem do caixa da empresa. E sim de um sistema de caixa 2, montado com base em superfaturamento de obras. Tudo isso institucionalizado como uma prática comum do negócio.
A agressividade do jovem empresário incomodava políticos, segundo os relatos. Em seu depoimento, Emílio afirma que quem pagava propina para os políticos era seu filho, Marcelo. Afinal, ele só oferecia "ajuda". Dois modelos distintos de usar o poder, mas com um só resultado.
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