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Estado é corresponsável por mortes em cadeia do RN, dizem ONGs na OEA

Documento levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos relata precárias condições no presídio onde um confronto entre facções deixou ao menos 26 mortos em janeiro

Confronto na penitenciária de Alcaçuz em janeiro.
Confronto na penitenciária de Alcaçuz em janeiro.ANDRESSA ANHOLETE (AFP)

"Quando o Estado opta por não assumir o controle efetivo da penitenciária e, em decorrência disso, permite que mortes ocorram, torna-se coparticipante na autoria dos homicídios ocorridos dentro do estabelecimento prisional que está sob sua efetiva tutela". É o que afirma um documento assinado por entidades de defesa dos direitos humanos enviado à Organização dos Estados Americanos (OEA) denunciando as condições "mais que desumanas" em que se encontram os detentos da penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte. Em janeiro, um confronto entre organizações criminosas rivais deixou ao menos 26 mortos e escancarou as condições degradantes nas quais os presos vivem. O documento pede medidas "urgentes" à corte internacional.

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O número exato das vítimas desse confronto é, inclusive, outro pedido das entidades. "Cabeças e demais componentes anatômicos do corpo humano vêm sendo encontrados em Alcaçuz desde a data da rebelião, o que reforça a convicção de que o número total de mortos foi superior ao de 26", diz o texto.

A denúncia é assinada por ONGs e entidades como a Pastoral Carcerária Nacional, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Associação Brasileira de Antropologia e ativistas dos direitos humanos do Rio Grande do Norte. Os signatários afirmam que denunciaram as condições de Alcaçuz para o Ministério Público Estadual e a Defensoria Pública do Estado, mas que nenhuma medida foi tomada. Por isso, procuraram a Justiça internacional. O trâmite agora funciona da seguinte forma: a comissão interamericana recebe a denúncia e avalia se ela deve ou não ser debatida na corte. Em caso afirmativo, a corte também pode decidir por fiscalizar diretamente no local e ainda propor medidas ao Governo brasileiro, que pode ou não adotar essas orientações.

O documento de mais de 100 páginas denuncia a condição precária de higiene e instalação da penitenciária, o estado de saúde de diversos apenados – quadros de tuberculose, pneumonia, sífilis, dentre outras doenças foram relatados – além de casos de tortura física e psicológica. Relata também a distribuição de alimentos estragados por parte da penitenciária e a falta de água, luz, roupas e itens de higiene aos detentos.

A penitenciária de Alcaçuz tem 602 vagas, mas abriga uma população de cerca de 1.000 homens, entre presos provisórios e apenados sentenciados ao regime fechado, segundo o Governo do Estado do Rio Grande do Norte. No início do ano, o local foi palco de uma batalha campal que durou duas semanas, fruto de um confronto entre membros das facções criminosas Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte (RN) e do Primeiro Comando da Capital (PCC). O confronto transcendeu o complexo penitenciário e foi parar nas ruas de Natal, com diversos ônibus incendiados.

Localizado no município de Nísia Floresta, na região metropolitana de Natal, Alcaçuz é formado por cinco pavilhões. A alta deterioração do local – as celas já não existiam mais depois que todas as grades foram arrancadas pelos internos – permitia com que os detentos ficassem soltos na penitenciária, facilitando o confronto.

Na tentativa de separar os detentos das organizações rivais após a rebelião, o Governo do Estado colocou em janeiro contêineres para separar os pavilhões do presídio, como uma espécie de muro provisório. As ONGs, no entanto, denunciam que o Governo pretende agora aproveitar esses contêineres para “abrigar a população carcerária da unidade”. Ao todo, os cerca de 1.000 presos seriam distribuídos em 50 desses compartimentos, segundo a denúncia oferecida. Desta forma, a cada detento seria reservado cerca de 70 centímetros, "um espaço extremamente pequeno, intolerável e inaceitável para a vida humana". Mas, por meio de nota, a Secretaria de Justiça e Cidadania do Rio Grande do Norte afirmou que esse plano "não existe". "O que existe é o planejamento para se construir duas unidades prisionais modulares (que não tem nada a ver com contêineres) no Município de Afonso Bezerra. Cada unidade terá capacidade para abrigar 603 presos", afirma a Secretaria.

A denúncia feita à OEA afirma também que a missão do Estado perpetua "diversas formas análogas à tortura", e pede que atitudes sejam tomadas para reduzir a população carcerária de Alcaçuz, que produtos de higiene, roupas e colchões sejam distribuídos, que o Estado permita a entrada semanal de alimentos, dentre outras petições. Também requer a existência de um registro completo de todos os detentos, com foco especial nos presos em regime provisório.

Transferências

Nesta semana, a penitenciária de Alcaçuz adotou uma medida considerada arriscada pelos familiares dos detentos: Transferiu cerca de 800 presos dos pavilhões que reúnem membros do Sindicato do Crime para o pavilhão onde se encontram centenas de internos do PCC. O pavilhão abriga agora os cerca de 1.000 presos, de ambas as facções.

O Governo do Estado do Rio Grande do Norte afirma que a transferência é "temporária", até que os reparos de três dos cinco pavilhões de Alcaçuz sejam concluídos. Mas o Sindicato dos Agentes Penitenciários do Rio Grande do Norte encaminhou um ofício ao Governo estadual afirmando ser de "altíssimo risco" essa operação. Os agentes temem retaliações fora do presídio, como as que ocorreram em janeiro na cidade de Natal. Naquele mês, as Forças Armadas tiveram de ser acionadas para conter a onda de violência nas ruas depois que detentos do Sindicato do Crime foram transferidos de Alcaçuz para outras penitenciárias do Estado.

As denúncias da crise do sistema prisional brasileiro nos organismos internacionais são crônicas. Nem todas passam da comissão, mas justamente nesta semana, a Corte Interamericana de Direitos Humanos realizou uma audiência para debater as condições gerais do sistema carcerário no Brasil. Numa decisão inédita, a corte juntou quatro casos de violações nos presídios brasileiros em um único supercaso. Estão contidas violações ocorridas nos complexos penitenciários do Curado, em Pernambuco, em Pedrinhas, no Maranhão, no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, no Rio de Janeiro, e na Unidade de Internação Socioeducativa no Espírito Santo - este último para jovens infratores com menos de 18 anos.

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