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Odebrecht, a favorita do kirchnerismo na Argentina

Macri investiga contratos da principal responsável estrangeira por obras públicas entre 2003 e 2015

Federico Rivas Molina
Uma obra de construção do metrô em Buenos Aires.
Uma obra de construção do metrô em Buenos Aires. Telam

A Odebrecht chegou à Argentina há 27 anos, quando colocou a primeira pedra da central hidrelétrica Pichi Picún Leufú, na província patagônica de Neuquén. Em um catálogo de 200 páginas colorido e com ilustrações impresso em 2012, a empresa considerou essa a primeira obra local prova “dos fundamentos éticos, morais e conceituais que regem a Organização Odebrecht em todo o mundo”. Hoje sabemos que esses fundamentos nem sempre foram cumpridos. Em um acordo judicial assinado nos Estados Unidos, a empresa admitiu a montagem de uma rede de pagamento de propinas em países da América Latina, entre eles a Argentina. Em 2012, a Odebrecht era uma das principais empreiteiras de obras públicas do Governo de Cristina Kirchner. Nessa época deu a “intermediários” em Buenos Aires 35 milhões de dólares (114 milhões de reais) que permitiram à empresa ter acesso a contratos de “aproximadamente 278 milhões de dólares (909 milhões de reais)”, de acordo com o documento assinado em uma corte Federal no Brooklin, Nova York. O Governo do presidente Mauricio Macri, através do Escritório Anticorrupção (OA, na sigla em espanhol), pediu aos Estados Unidos os detalhes desse acordo para investigar possíveis responsabilidades locais.

Até 2005, a Odebrecht só havia construído na Argentina a represa em Neuquén e a rodovia do Oeste, uma das principais conexões de Buenos Aires com sua periferia. O grande salto ocorreu com a chegada do kirchnerismo. Tanto Néstor Kirchner (2003-2007) como sua esposa e sucessora, Cristina Kirchner (2007-2015) deram um impulso sem precedentes às obras públicas, base de sua política de promoção do emprego e consumo interno. A Odebrecht estava aí, beneficiada pelo tratamento preferencial à empresa do Mercosul e à boa sintonia dos Kirchner com seus iguais brasileiros Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016). Em sociedade temporária com outras empresas, a Odebrecht obteve contratos do Estado argentino por 10,73 bilhões de pesos, equivalentes a 2,55 bilhões de dólares ao câmbio de 2011, ano da última licitação ganha pela empresa, e a 671 milhões de dólares (2,2 bilhões de reais) pela cotação atual.

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A relação entre membros do Governo e executivos da empresa era fluida. O controle de audiências que deve ser preenchido pelos funcionários de alto escalão registrou 22 encontros oficiais, com dois momentos cruciais que ocorreram em um curto período de tempo. Em 31 de julho daquele ano, a ex-presidenta Cristina Kirchner recebeu Marcelo Odebrecht na Casa Rosada. O encontro se repetiu um mês depois por pedido do ministro do Planejamento, Julio de Vido. De Vido foi uma peça fundamental na relação com a Odebrecht. No comando de todas as feituras de obras públicas, foi o único ministro que assumiu no primeiro dia de Néstor Kirchner no poder e se manteve em seu cargo até o último dia de Cristina Kirchner, em 10 de dezembro de 2015. Em uma mensagem publicada em sua conta no Twitter, De Vido negou semana passada que recebeu propinas da Odebrecht e de “qualquer outra empresa”. “Queremos que os supostos intermediários que receberam sejam identificados e que digam quais foram os funcionários pagos”, disse o ex-ministro.

O dinheiro que o Governo argentino deu à Odebrecht entre 2003 e 2015 significou somente 3,19% do total destinado às obras de infraestrutura. O número colocou a empresa no sétimo lugar de uma lista de outras 36 beneficiadas por contratos do Estado. A porcentagem pode parecer baixa, mas esconde que a Odebrecht foi a primeira entre as empresas estrangeiras. É preciso avançar até a 18° colocação para encontrar a próxima: a General Eletric, de origem norte-americana. Para a deputada Graciela Ocaña, do partido Confiança Pública, o sucesso da Odebrecht respondeu “à sua política de pagamento de propinas e custos mais elevados”. “As empresas norte-americanas têm outras restrições”, disse ao EL PAÍS. Ocaña levou adiante em 2009 uma denúncia contra o ex-secretário de Transportes, Ricardo Jaime, hoje na prisão, por entender que ele havia pedido uma propina de 80.000 dólares (262.000 reais) à Odebrecht. Ela se baseou nas provas coletadas no Brasil, uma série de e-mails onde um suposto testa-de-ferro de Jaime, Manuel Vázquez, pedia um pagamento a Mauricio Couri Ribeiro, diretor do grupo Odebrecht. “Isso está provado. Jaime pedia a Mauricio em 2009 uma série de transferências que não havia recebido e que deviam chegar aos Estados Unidos de uma conta da empresa uruguaia Primbox, uma conta com vários milhões de dólares. Vázquez está na prisão por outros crimes, mas seu nome está entre os intermediários que receberam propina”, explicou Ocaña.

De gasodutos a fertilizantes

A Odebrecht obteve seis grandes contratos durante o kirchnerismo. O primeiro foi em 2005, quando ganhou a licitação para instalar 455 quilômetros de encanamentos na rede troncal dos gasodutos San Martín e Neuba. A obra nos gasodutos foi ampliada em 2007, quando a Odebrecht instalou, junto com as argentinas Cammesa S.A e Grupo Albanesi S.A, 2.100 quilômetros de encanamentos ao longo de 15 províncias. Dois anos depois, a empreiteira obteve, junto com as construtoras locais Roggio, Supercemento e Cartellone, um contrato da estatal AySA para a construção de uma usina de purificação de água potável. As obras, destinadas à periferia norte de Buenos Aires, custaram 2,85 bilhões de pesos (586,6 milhões de reais, pelo câmbio atual), dos quais 290 milhões de pesos foram financiados por um crédito do BNDES brasileiro, uma prática que se repetiria em outros contratos.

A Odebrecht também trabalhou para o setor petroleiro. Em 2009, iniciou a construção de uma refinaria para a empresa petroleira estatal YPF, com um investimento de 348 milhões de dólares (1,14 bilhão de reais, pelo câmbio atual). Um ano depois, a construtora participou do desenvolvimento da fábrica de fertilizantes Potasio Río Colorado, na província de Mendoza. O grande salto, entretanto, viria em 2011, quando a Odebrecht e um consórcio de empresas locais obtiveram o contrato para o soterramento de 36,5 quilômetros de vias da Ferrovia Sarmento, um trem de subúrbio que liga as zonas norte e sul de Buenos Aires. A obra, com um custo estimado em três bilhões de dólares (9,8 bilhões de reais), foi financiada em 50% com um crédito do BNDES. O Governo de Cristina Kirchner pagou 40 milhões de dólares por uma tuneladora, mas foi preciso esperar o Governo de Mauricio Macri para colocá-la em funcionamento.

O acordo judicial da Odebrecht nos Estados Unidos agora deixou em xeque os métodos que permitiram à empresa obter essa quantidade de contratos. O órgão de combate à corrupção pediu detalhes do documento para encontrar possíveis conexões locais. A deputada Margarida Stolbizer, autora dos principais processos contra Cristina Kirchner por supostos casos de corrupção, pediu a um promotor que inicie uma investigação preliminar pelo suposto “pagamento de subornos por parte da construtora Odebrecht a funcionários públicos argentinos”. Ocaña, por sua vez, solicitou ao juiz que acrescente a delação da Odebrecht ao processo por pagamento de subornos a Jaime. Para a legisladora, cedo ou tarde a investigação “atingirá Julio de Vido”, mas admitiu que dificilmente as denúncias “chegarão até muito acima dele”. “Tudo depende de como se encare a investigação”, disse. “Cristina não podia ignorar, pelo tipo e valores das obras, mas obviamente não assinava nenhum papel.”

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