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Tribuna
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Carnaval, ministros e heróis

Sobre a democracia circense e o papel do Judiciário no Governo Temer

Votação do pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, na Câmara dos Deputados, em maio
Votação do pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, na Câmara dos Deputados, em maioAntonio Augusto (Câmara dos Deputados)

A iminente destituição de Dilma Rousseff pelo Congresso selará um capítulo tortuoso na democracia brasileira. Entre as lembranças do impeachment passarão à posteridade os discursos que transformaram a Câmara dos Deputados em um circo burlesco. As sessões do Senado serão vistas como um espetáculo menos bufão, cujo auge teve lugar em 26 de agosto. Nessa data, Renan Calheiros recordou aos críticos da Casa que preside que ele mesmo interveio perante o Supremo Tribunal Federal (STF) para evitar um processo contra a senadora petista Gleisi Hoffmann e seu marido, o ex-ministro Paulo Bernardo.

Quem ostenta certos cargos públicos tende a se esquivar das condutas prescritas em leis aprovadas na própria esfera pública

Diante da virtual ratificação de Michel Temer como Presidente, surge a pergunta de se o governo dele dançará ao ritmo da democracia circense ou dos escândalos de corrupção que continuarão sendo revelados. O impeachment de Rousseff sempre esteve marcado por arranjos partidários, muito mais que pelo suposto descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. Basta ouvir as intervenções dos integrantes da Câmara dos Deputados na traumática sessão de 17 de abril, ou observar como a base aliada do governo petista mudava de posição segundo a oferta de ministérios feita por Lula e Temer nos bastidores do chamado fisiologismo partidário.

Num contexto de crise econômica e processos eleitorais permeáveis à corrupção, a força do impeachment oscilou ao sabor das ordens de prisão e das denúncias contra congressistas, atuais e ex-ministros do Partido dos Trabalhadores (PT). Não há muito segredo no fato de que a opinião pública foi levada a satanizar o PT pela maior parte das crises atravessadas pelo país. Agora que o PT já não é mais governo, a continuidade da Operação Lava Jato poderia causar um imprevisível ciclo de indignação que pode se agravar ou mitigar a partir de duas conjunturas. A primeira tem a ver com o impulso que o Governo dará às reformas previdenciária e trabalhista, impopulares para um setor da população capaz de agregar centenas de milhares de pessoas a eventuais marchas de indignados. A segunda tem a ver com a eficácia das ações judiciais relativas aos escândalos de corrupção que, inevitavelmente, alcançarão nomes de peso do Governo Temer.

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Apesar de o Poder Judicial já ter demonstrado um elevado grau de independência frente ao poder político, ele não está isento do fenômeno intrinsecamente brasileiro descrito por Roberto da Matta em Carnaval, Malandros e Heróis. Ali, o autor explica que quem ostenta certos cargos públicos tende a se esquivar das condutas prescritas em leis aprovadas na própria esfera pública. A usurpação do princípio de igualdade perante a lei se manifesta na reivindicação, deliberada ou inconsciente, do status de supracidadãos por parte dos detentores da autoridade. Entre os exemplos recentes de supracidadania exercida pelo STF podemos citar os supostos incidentes de nepotismo na nomeação das filhas dos ministros Luiz Fux e Marco Aurelio Mello como magistradas, assim como o lobby do STF, apoiado pela Procuradoria Geral da República (PGR), para que o Congresso aprove aumentos salariais em benefício de ambas as entidades. Se aprovados, esses aumentos implicariam um rombo de mais de oito bilhões de reais nos próximos quatro anos, somando-se ao déficit fiscal de 170 bilhões previsto para 2016.

Entre as ações que beiram as escaramuças de impunidade frente à corrupção foram particularmente polêmicas as críticas do ministro Gilmar Mendes aos procuradores da Operação Lava Jato e seus vitupérios contra a Lei da Ficha Limpa, pela qual candidatos a cargos eletivos podem ficar politicamente inabilitados. Mendes antecipou sua opinião em denúncias ao Tribunal Superior Eleitoral, presidido por ele mesmo, nas quais Temer poderia ser destituído por financiamento irregular de sua campanha a vice-presidente em 2014. Enquanto associações de magistrados e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) condenaram a atitude de Mendes, Rodrigo Maia, presidente da Câmara de Deputados, declarou que as críticas à Operação Lava Jato devem ser devidamente escutadas.

O destino de Temer poderia ser uma réplica do calvário de Rousseff se a anunciada recuperação econômica for apenas um dedo na frente do sol de escândalos que ainda estão por ser revelados. É aqui onde os ministros do STF podem se alinhar ao clamor dos cidadãos e continuar depurando a corrupção, ou agir como supracidadãos em defesa de interesses corporativos ou do fisiologismo político que tanto têm castigado a democracia brasileira.

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