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Coluna
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Quem paga o pato?

Todas as vezes em que a elite econômica sente-se ameaçada em seus privilégios recorre a seu braço político para resolver o impasse. Não está sendo diferente agora, sob o Governo de Michel Temer

O presidente interino Michel Temer, no Palácio do Planalto.
O presidente interino Michel Temer, no Palácio do Planalto. Fernando Bizerra Jr. (EFE)

Somos o país dos cínicos. A elite econômica, cujos interesses a elite política defende, vem dilapidando o bem público desde que aqui pisaram os primeiros europeus no século XVI. Transformaram cada palmo do território em espaço de exploração privada visando manter umas poucas famílias no gozo da riqueza e do conforto. E para isso sempre fizeram uso da mentira, da fraude, da violência. A maior parte da população, acuada pela opressão, pela miséria e pelo analfabetismo, tem como única serventia oferecer sua força de trabalho em troca de salários irrisórios e do usufruto de uma cidadania capenga.

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Todas as vezes em que a elite econômica sente-se ameaçada em seus privilégios – por incompetência ou por excesso de exploração – recorre a seu braço político para resolver o impasse. Em geral, a única solução que compreende é o de impor sacrifícios ao povo. Não está sendo diferente agora, sob o governo do presidente interino, Michel Temer. Para enfrentar um quadro internacional desfavorável e uma série histórica de decisões equivocadas, Temer acena com o aumento de impostos e a supressão de direitos básicos que atingem essencialmente a classe média e os pobres.

O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, avisou que, caso o Congresso não estabeleça um teto para os gastos públicos, haverá aumento de impostos e os juros serão mantidos em patamar alto por longo período. Contraditoriamente, em apenas dois meses, Temer provocou um rombo de 127 bilhões de reais no orçamento da União, entre ampliação de despesas e renúncia de receitas. Foram destinados 67,8 bilhões de reais para reajuste dos salários dos servidores da ativa e aposentados; 4,8 bilhões de reais para correção do valor da bolsa-família e 2,9 bilhões de reais para ajuda para o falido Rio de Janeiro. Além disso, a União abriu mão de 50 bilhões de reais na renegociação da dívida dos Estados e de 1,7 bilhão de reais com a ampliação do Supersimples.

O Brasil, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), é o país onde os impostos arrecadados menos se convertem em serviços para a população. No entanto, possuímos uma das maiores cargas tributárias do mundo – a soma de todos os impostos pagos pelos indivíduos e empresas em proporção ao Produto Interno Bruto (PIB) -, equivalente a 36%. Também somos líderes mundiais da taxa de juros reais – juros nominais menos inflação do período –, 4,5% ao ano, segundo o ranking da Infinity Asset Management, um ponto percentual acima do segundo colocado, Rússia, com 3,5%. Impostos e juros altos são combustível para destruir o orçamento doméstico.

Outra medida pensada pelo Governo Temer para diminuir os gastos públicos é o da supressão de direitos. Uma das mais importantes conquistas da frágil e confusa Constituição de 1988 foi a de garantir a universalização do acesso ao sistema de saúde. Embora precário, o pouco que o Estado oferece hoje, principalmente aos pobres, é muito mais que se oferecia antes. Cirurgias sofisticadas como transplantes, medicamentos e exames de última geração ou transporte para tratamento em outras cidades só são possíveis a boa parte da população devido à existência do Sistema Único de Saúde (SUS).

Outra medida pensada pelo Governo Temer para diminuir os gastos é o da supressão de direitos. Enquanto isso, o projeto  “10 medidas de combate à corrupção” está parado

Entretanto, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, acredita que o conceito do SUS deve ser revisto. Ele quer impor limites ao direito de o paciente recorrer à Justiça para garantir determinado tratamento ou acesso a uma medicação específica. Barros pleiteia, junto ao Conselho Nacional de Justiça, a criação de varas únicas nos Estados, de núcleos técnicos e de formulários que dificultariam o processo. O ministro defende ainda o ressarcimento pelos planos de saúde privados toda vez que um paciente usar o hospital público, o que geraria uma espécie de reserva de vagas privadas, pondo em marcha a privatização do SUS.

Enquanto isso, o projeto de lei que engloba as chamadas “10 medidas de combate à corrupção”, elaboradas pelo Ministério Público Federal, está parado na Câmara dos Deputados. O projeto, que angariou mais de dois milhões de assinaturas, tem que ser analisado preliminarmente por uma comissão especial, que sequer foi instalada quatro meses após entregue com pompa e circunstância. Já a CPI da Carf, que investiga um esquema de corrupção descoberto no Conselho de Administração de Recursos Fiscais, será abruptamente encerrada, segundo anunciou o novo presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), por acordo de seu partido com o PSDB e o PSB. O Carf é o órgão que julga recursos contra autuações da Receita Federal —várias empresas de grande porte estão envolvidas em fraudes para anular multas milionárias.

Levantamento do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional indica que alcançam 1,2 trilhão de reais os débitos tributários inscritos na Dívida Ativa da União, ou seja, tudo aquilo que o Estado tem a receber de pessoas físicas e jurídicas que deixaram de recolher impostos —62% deste total é devido por 12 mil empresas, principalmente do ramo industrial. Por outro lado, o procurador da República, Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa do Ministério Público Federal na Operação Lava Jato, calcula que o esquema de corrupção desvia dos cofres públicos algo em torno de 200 bilhões de reais por ano. Só para se ter uma ideia, o orçamento da saúde para este ano é de 118,5 bilhões de reais.

Em 1852, Victor Hugo, em prefácio a um de seus livros mais famosos, o romance Os miseráveis, escreveu: “enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pelo proletariado; a prostituição da mulher pela fome; e a atrofia da criança pela ignorância – não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis”. Triste saber que 154 anos depois nos mantemos chafurdando na mesma lama.

Luiz Ruffato é jornalista e escritor.

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