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Gastronomia
Coluna
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Mulheres quebram tabu na cozinha

Elas preparam sushi, dominam o churrasco e viram pizzaiola O preconceito com a mão feminina em algumas searas da gastronomia é somente isso: preconceito

Helena Rizzo, no Maní.
Helena Rizzo, no Maní.MANI-MANIOCA

Miriam Moriyama fala baixo, sorri discretamente e, diante de elogios, demonstra modéstia. Numa primeira impressão, desempenha o papel que o senso comum associa ao comportamento padrão das mulheres japonesas. Entretanto, ela é uma profissional da cozinha nipônica, um ambiente de notória predominância masculina. E, mais ainda, comanda uma brigada numerosa como chef do Shiso, um dos restaurantes do hotel Grand Hyatt do Rio de Janeiro.

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Nascida na Argentina de pais japoneses, Miriam já liderou o Matsuri, em Santiago, e passou por restaurantes na América Central. Morou no Japão, onde aprimorou sua técnica nos pratos quentes e, sim, na cozinha fria – mãos femininas manipulando sushis e sashimis, lembremos, era algo impensável anos atrás. O motivo mais alardeado: uma suposta temperatura corporal acima do ideal, o que prejudicaria o resultado final. “Tudo bobagem. Essa história de que as mulheres têm mãos quentes não tem nada a ver. Era só preconceito, mesmo”, explica Shin Koike, chef do Sakagura A1, recentemente declarado pelo Governo japonês como seu embaixador culinário em solo brasileiro.

Koike reconhece que, mais e mais, as mulheres têm ocupado espaço nos restaurantes gastronômicos (nos izakayas e nos estabelecimentos de katei ryori, a comida caseira, as cozinheiras são mais presentes). Raras, entretanto, chegam à posição de chef. Será que o exemplo de Miriam haverá de iluminar não apenas as jovens aspirantes a itamae (chef em japonês), mas também os próprios restaurateurs? Fazendo uma analogia um tanto marota, é curioso lembrar que, até muito recentemente, os sushimen que não fossem destros eram discriminados na profissão – pelo fato de seus gestos, seus cortes, sua dinâmica de trabalho, enfim, serem diferentes. Até que um dos mais festejados profissionais do planeta, o decano Jiro Ono (protagonista do documentário O Sushi dos Sonhos de Jiro, de David Gelb), irredutivelmente canhoto, conquistou fama mundial e também tem contribuído para aliviar o estigma.

Voltando à Miriam Moriyama, a chef não chega a ser uma ortodoxa do receituário japonês. Seu trabalho é profundamente nipônico, sem dúvida. Mas carrega marcas de uma extensa vivência internacional, nas combinações, na condimentação, nos toques autorais. Por outro lado, seu arroz é dos melhores que provei ultimamente, em mordida, em equilíbrio entre doçura e acidez. E seu desempenho é notável com os peixes e, em especial, com carne de gado wagyu.

A performance da cozinheira é serena, de gestos contidos, de silêncios pontuados por observações concisas à equipe. Miriam não se altera e, quando muito – não sei fiz a leitura correta, sentado no meu canto –, controla a brigada pelo olhar. Ou, para usar a expressão de outro grande chef, Tsuyoshi Murakami, do Kinoshita, dá apenas aquela “bronca de japonês”, quando uma mirada mais penetrante se revela mais forte do que um grito.

Foi observando o trabalho da jovem nipo-argentina que me ocorreu o tema da coluna. Nem penso só na crescente presença feminina nas cozinhas profissionais (em muitos casos, com sua realidade de salários ainda menores do que os deles). Meu ponto são as mulheres que têm se afirmado em territórios historicamente associados aos homens, como os restaurantes japoneses. Mas não só eles.

As mulheres que têm se afirmado em territórios historicamente associados aos homens, como os restaurantes japoneses

Já se especulou sobre se haveria (e o que seria) a expressão do feminino na gastronomia profissional ­– já que, historicamente, elas sempre cuidaram mais da cozinha de casa. Grosso modo (grossíssimo, até), a tendência sempre foi cair em generalizações do tipo: pratos mais delicados; apresentações mais graciosas; lideranças mais acolhedoras. Isso, sem mencionar divisões do tipo: “a relação da mulher com a comida tem a ver com o cuidado com a família, como expressão do espírito maternal”; “a relação do homem passa pelo desenvolvimento do ofício, pela criatividade, pela afirmação de processos e técnicas”.

Será que isso realmente tem fundamento? Cultivar a generosidade com os comensais, buscar a satisfação do público, querer surpreender, almejar a perfeição, me parecem traços comuns aos bons chefs, sem distinções. Fico em dúvida se o que há, de fato, não são diferenças de estilo, de personalidade – o que tem mais a ver com questões individuais do que de gênero.

Tomemos o exemplo do Maní, restaurante cuja força inventiva emana de Helena Rizzo e Daniel Redondo. Há limites demarcados nas situações de criação? Onde começam as atribuições dela, até onde vai a jurisdição dele? Por que imaginar que Helena seja só poesia e intuição, e Daniel represente a técnica e a experimentação? É evidente que existe um intercâmbio, uma soma de talentos, uma alternância de competências.

Mais ainda do que o balcão do sushiman, talvez não exista contexto culinário mais associado à virilidade do que o universo do churrasco. A visão mais simplificadora nos leva a um festim de grelhas, facas, ganchos, nacos de carne, glutonice, brasas, fogo (tudo aquilo, enfim, de que gostava Hefesto, o mais bruto e resoluto dos deuses da mitologia grega). Dá para conceber um restaurante com tal perfil sob a batuta – ou, se preferirem, sob o cutelo – de uma mulher?

Lígia Karazawa, paulista, também descendente de japoneses, é justamente a chef de uma casa cujo nome, Brace, significa brasa, em italiano. Restaurante mais reservado (fica no último piso) dentro do Eataly, o Brace prepara seus pratos principais e suas guarnições majoritariamente na grelha. Não é uma churrascaria, mas tem nas chamas e na defumação os traços mais marcantes de sua linguagem. Elementos que, para Ligia, nunca foram obstáculos. A linhagem das mulheres que cultivam por aqui a culinária do fogo, diga-se, não vem de hoje e inclui nomes como Paola Carosella e Gabriela Barretto, entre outras.

Cozinheira com formação europeia, com passagens por alguns dos melhores endereços da vanguarda espanhola (em São Paulo, ela comandou o contemporâneo Clos), Lígia diz que, para ela, o repertório técnico e a disposição para liderar se sobrepuseram aos esteriótipos. Ela explica que trabalhar com grelhados não é meramente questão de força ou de suportar o desconforto do calor. “Tem a ver com técnica, com a sensibilidade para observar parâmetros como tempo e temperatura”. Nesse momento, me parece automática a lembrança do brilhante Bittor Arguinzoniz, do Extebarri, no País Basco, talvez o cozinheiro que melhor tenha entendido que as brasas têm o poder de não apenas produzir delicadezas, mas de ser um instrumento para a alta gastronomia.

“Essa história de que as mulheres têm mãos quentes não tem nada a ver. Era só preconceito, mesmo” 

Quando em ação, Lígia é quase o oposto de Miriam. Comunica-se o tempo todo com os demais membros da brigada e, ainda que seu posto fixo seja o da chamada boqueta, liberando pratos para o salão, ela parece se multiplicar e marcar presença por todas as praças da cozinha de formato quadrado do Brace, onde a maioria dos assistentes é jovem (e as mulheres são minoria). Existe concentração e senso de urgência. Mas nada que evoque a fúria do mencionado deus grego, sempre de martelo e bigorna em punho. O que me dá um certo alívio.

Na condição de cidadão urbano e cordato, pouco impositivo fisicamente, sem barbas hirsutas nem tatuagens, confesso que, eu mesmo, fico deslocado dentro de uma certa atmosfera macho man que se criou em torno do churrasco. Ou melhor, em torno de uma certa vertente anglo-americana, retratada em reality shows e afins. Como se sentir confortável entre o clichê do gaudério, o gaúcho da campanha com seus trajes de vaqueiro, e o ogro lumberjack dos tempos atuais – com seus dogmas sobre prime ribs, bacon e coisas do tipo? Brincadeiras e caricaturas à parte, é preciso fazer justiça e destacar que eventos como o Churrascada, de nome auto-explicativo, vêm recebendo cada vez mais assadoras entre os seus participantes, Lígia Karazawa inclusive. Elas simplesmente aprenderam a passar por cima de piadinhas machistas, assim como não dão bola para o calor acima de 50 graus que prevalece ao redor da grelha.

Temperatura altas também nunca foram problema para Larissa de Negreiros Texeira, pizzaiola da Bráz (a única, de toda a rede). Aos 19 anos, a piauense trabalha na unidade de Perdizes desde a inauguração, no ano passado. Mas começou no delivery – “uma excelente escola”, reconhece – onde aprendeu a importância de manter o vigor sem vacilar no padrão. No serviço de entrega, eram até 350 pizzas aos sábados e de 100 a 120 nos dias de semana.

Seu cotidiano é no balcão, perto do forno, abrindo discos, dosando coberturas, dominando de cabeça algumas dezenas de receitas. A idade é pouca, mas a experiência é considerável: ela acompanha a produção de pizzas desde os 13 anos. Foi observando o pai, ex-funcionário da Bráz e dono de pizzaria (ele morreu em 2014) que Larissa aprendeu a gestualidade do ofício, a sensibilidade com a massa, os macetes na manipulação do forno – ao bom forneiro (e à boa forneira, perdão), cabe a cocção perfeita da pizza, girando-a com a pá dentro do forno, em busca de uma cor uniforme, com muita atenção na propagação do calor (a lenha fascina justamente por suas surpresas e imperfeições).

Preconceito, ela conta que nunca sentiu. Assumiu seu posto de trabalho e seguiu adiante. “Larrissa se impôs muito bem desde o começo, sendo muito profissional e sabendo se integrar. Além disso, o time de Perdizes é jovem, o que facilitou”, conta Ricardo Garrido, diretor de operações da Cia. Tradicional de Comércio.

O aspecto delgado e a leveza de movimentos podem induzir a uma falsa impressão de fragilidade: Larissa prepara cerca de 80 redondas por noite, em jornadas de nove horas contínuas de pé. Da minha mesa, pude constatar uma coreografia incessante de massas abertas na mão, molhos que se espalham, coberturas que se agregam. A rotina pode ser pesada; mas a expressão da pizzaiola que quase não se dispersa, é leve.

Luiz Américo Camargo é comentarista e consultor gastronômico, especializado em eventos e produção de conteúdo. Foi um dos fundadores do Paladar, marca de gastronomia de O Estado de S. Paulo. É também colunista do jornal Zero Hora.

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