“Interferência do Judiciário na crise não é remédio, mas parte da doença”
Para professor, a solução para a crise estrutural brasileira deve passar pela política
Há tempos, o professor da FGV Direito Rio, Daniel Vargas, tem batido em uma mesma tecla: quão saudável é a interferência do Judiciário na vida política nacional? Agora, há poucos dias da votação que pode selar o afastamento, talvez definitivo, de Dilma Rousseff da presidência, e com a Justiça atuando como poucas vezes na história recente do Brasil, a questão levantada fica ainda mais pertinente. Pensando nisso, na origem da crise brasileira e nos desafios futuros do país, Vargas – que trabalhou na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República durante 2009 e é Doutor em Direito pela Harvard Law School – falou ao EL PAÍS por telefone. Leia abaixo os principais pontos da entrevista.
Pergunta. Faltando poucos dias para a decisão que definirá – pelo menos pelos próximos seis meses – o futuro de Dilma Rousseff, o Supremo Tribunal Federal (STF) afastou Eduardo Cunha de seu cargo político. O que isso significa nesse momento?
Resposta. A primeira lição da decisão é revelar um traço da mentalidade que hoje prevalece no Tribunal: se forçado a escolher entre lavar as mãos para os desmandos da democracia brasileira ou intervir, ainda que de forma desgovernada, ou exagerada, o Supremo optará pela segunda opção. Afastar o chefe do poder mais democrático do Brasil – pelo menos sob o ponto de vista da certificação do voto – não é uma decisão simples e nem comum em qualquer democracia do mundo. Ontem (quinta-feira), o STF testou, no limite máximo, a sua força e credibilidade.
P. E qual é sua avaliação da decisão?
R. Por um lado, todos os indícios indicam que Eduardo Cunha estava abusando de seu cargo e poder para se manter à frente da Câmara dos Deputados, assim como estava direcionando as disputas políticas segundo seus próprios interesses, mas há que se ver que o Supremo age, cada vez mais, como um maestro. Ou seja, ele é cada vez mais um mediador de disputas e cada vez menos um árbitro pontual. Para quem acredita que o Supremo deve ser um árbitro pontual, fica claro que essa decisão de afastar o deputado não pode ser justificada com base no texto constitucional. Agora, quem olha para o STF como um maestro, a decisão parece ser uma tentativa de corrigir problemas profundos de outros poderes.
"Se os vícios que resultam da presença de Eduardo Cunha à frente da Câmara dos Deputados são vícios que não começaram agora, por que as decisões que ele tomou ao longo desse processo são validas?"
P. Ao tentar corrigir esses problemas, ele extrapola seu papel?
R. O meu receio é que as pessoas passem a enxergar, a partir dessa decisão, que a interferência do Judiciário é um remédio, quando, na verdade, mais parece um sintoma da doença. O fato de o STF ter se transformado no grande protagonista das decisões políticas, e muitas vezes também econômicas, indica apenas como a democracia brasileira sangra cada vez mais. Nós estamos, cada vez mais, perdendo a capacidade institucional de gerir as crises sem precisar de uma intervenção externa. Não conseguimos mais apresentar um caminho que seja aceitável sem uma intervenção judicial. Parece que todas as rotas de fugas da crise que se tenta buscar, ou se encontra, são decisões extra políticas e não políticas, como deveriam ser.
P. O afastamento de Cunha pode impactar no processo de impeachment?
R. É difícil dizer agora qual será o efeito. Mas o questionamento é legítimo: se o Eduardo Cunha representa, como a decisão indicou, uma ameaça à credibilidade da Câmara, por que não representava quando o processo de impeachment foi iniciado? E mais: se os vícios que resultam da presença de Eduardo Cunha à frente da Câmara dos Deputados são vícios que não começaram agora, por que as decisões que ele tomou ao longo desse processo são válidas? Dificilmente o Senado não afastará a presidenta. As próprias manifestações públicas dos congressistas mostram isso, mas essas indagações estão realmente em aberto e serão alvo, sem dúvidas, de disputas políticas e judiciais nas próximas semanas.
"A cada dia que passa a impressão que fica é que se cria uma faixa extra de complexidade que apenas torna a solução dos problemas do Brasil menos clara."
P. Disputas que continuarão após a decisão do Senado na quarta-feira (11).
R. Sim. Um eventual Governo Temer terá que lidar com vários aspectos difíceis, sendo que a pressão das lideranças de esquerda e dos movimentos sociais que questionam a legitimidade desse possível Governo é apenas o mais óbvio deles. Em paralelo, por exemplo, há a questão do Judiciário cada vez mais ativo. Some-se a isso outros fatos, como a existência de um processo de cassação da chapa Dilma/Temer no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e as investigações em que diferentes aliados de Temer estão implicados, identifica-se outra fonte de preocupações que ele terá. E, agora, o afastamento do Cunha abre uma das maiores incógnitas. Ele era o aliado de Temer que, talvez, estivesse disposto a colocar em marcha um conjunto de reformas sem as quais o atual vice-presidente dificilmente conseguirá fazer alguma coisa. Com a saída dele, por incrível que pareça, o barulho da política brasileira fica ainda mais embaralhado. A cada dia que passa a impressão que fica é que se cria uma faixa extra de complexidade que apenas torna a solução dos problemas do Brasil menos clara.
P. Você acha que ele será capaz de desatar esse nó?
R. Dificilmente. O Brasil não vai conseguir sair dessa rota de colisão de todos contra todos em que estamos sem redirecionar o rumo do desenvolvimento do país. A crise brasileira não se resolverá apenas alterando o fluxo do rio, é preciso redirecionar sua rota. Imagine que fosse possível tirar todas as peças corruptas da política no Brasil. Agora, imagine também que um ajuste duro, que reequilibrasse as contas públicas, fosse feito. O que aconteceria no dia seguinte? Nada. Ainda que seja feito um ajuste contábil e que as principais posições políticas do país sejam ocupadas por um conjunto de santos, o problema continuaria. O projeto de desenvolvimento brasileiro, que eu não vejo ser debatido por ninguém, incluindo pelo Temer, é um projeto limitado, porque é incapaz de produzir, inovar e de estimular a criatividade do brasileiro.
"O debate está escravizado entre extremos que são incapazes de oferecer uma visão para uma saída da crise que aposte no que o Brasil tem de mais poderoso que é a força criativa e produtiva da população."
P. Como assim?
R. O Brasil teve um projeto importante nos últimos 15 anos. Resgatou milhões de pessoas da pobreza, elevou o número de pessoas que estão na classe média e atenuou desigualdades regionais. Só que, ao mesmo tempo, esse projeto conviveu com um vício original e profundo: produtividade muito baixa. Quando o cenário econômico internacional mudou e nossas commodities não puderam mais nos sustentar, a coisa começou a caminhar para o impasse atual. O mais importante não está sendo debatido, que é como redirecionar o desenvolvimento do Brasil para estimular o empreendedorismo, a inovação e o trabalho qualificado. É preciso mudar as condições de educação e inovação. E isso é o que a vasta maioria do povo brasileiro quer, mas não encontra discurso ou liderança que capitalize essa aspiração profunda.
P. Não é justamente o papel que o Temer tem expressado que assumiria? Mudar os rumos?
R. Hoje existem dois discursos populares, mas ambos limitados e superficiais. Um é o discurso “gerencialista” que leva em conta que o desenvolvimento dos últimos 15 anos foi perfeito e que só teve problemas em sua execução nos últimos anos. O outro, simbolizado pelo Temer, é o discurso do micro ajuste contábil, como se existisse um defeito grave nas contas públicas brasileiras que pudesse ser solucionado com mudanças marginais, como a redução no número de ministérios, quando, na verdade, a vasta maioria dos recursos orçamentários são comandados por leis, não são políticas discricionárias de um ou de outro líder do momento, como acontece em uma empresa, por exemplo. Ou seja, em nenhum dos dois discursos há preocupação com a capacidade produtiva do povo brasileiro. O debate está escravizado entre extremos que são incapazes de oferecer uma visão para uma saída da crise que aposte no que o Brasil tem de mais poderoso que é a força criativa e produtiva da população.
"Se a autoridade do voto, como o elemento legitimador da autoridade do Governo é afastado, cria-se um ônus argumentativo e moral imenso para uma sociedade desigual e politicamente dividida."
P. Na sua opinião, então, o impeachment veio tornar essa discussão ainda mais distante?
R. É importante que exista um nível de confiança da sociedade concedido pelo voto. Se a autoridade do voto, como o elemento legitimador da autoridade do Governo é afastado, cria-se um ônus argumentativo e moral imenso para uma sociedade desigual e politicamente dividida. O impeachment traz um cenário extremamente difícil para encaminhar um conjunto de mudanças institucionais que pavimentariam um novo leito para o desenvolvimento do País. Em uma democracia, se dois não querem, um não Governa.
P. Por que, então, a ideia de que o impeachment seria uma boa saída encontrou ressonância na sociedade?
R. Nos últimos anos, o Brasil personalizou o que, na verdade, é um problema institucional. Condenamos pessoas e absolvemos instituições, quando, no fundo, grande parte da corrupção e da crise econômica que vivemos são problemas da maneira como as coisas são organizadas. Essa ideia de que extirpar uma célula cancerígena resolveria, é falsa. Há uma busca contínua por saídas em pessoas, mas não há uma busca por saídas em instituições ou projetos alternativos de desenvolvimento do país. O grande paradoxo é que para se resolver esses problemas, o Brasil precisa, mais do que nunca, de política, mas o que nós assistimos nos últimos anos é uma verdadeira caça à política. Há uma condenação da própria possibilidade de cooperação política, que seria necessária para que as mudanças importantes pudessem ser discutidas.
"O Brasil precisa, mais do que nunca, de política, mas o que nós assistimos nos últimos anos é uma verdadeira caça à política."
P. A interferência do Judiciário é um reflexo dessa caça à política?
R. É causa e efeito. Há uma ansiedade geral pela busca da saída miraculosa da via judicial. Criou-se esse cenário indesejável e nocivo em que o juiz é colocado na posição desconfortável de ter que lavar as mãos ou intervir de forma afobada. O que a gente precisa é sair desse cenário em que a intervenção judicial, que deveria ser um caso extremo e excepcional, passou a ser vista como uma espécie de remédio ou rotina convencional. Essa intervenção está sendo tratada como se fosse uma aspirina para atenuar um sintoma passageiro, quando, na verdade, é expressão de uma crise profunda por qual a democracia brasileira passa.
P. E como você acredita que isso se revelou nos últimos meses?
R. Por exemplo nos vários episódios de manifestação pública de quase todos os ministros do STF sobre o processo de impeachment. Isso serve apenas para colocar em xeque, de antemão, a autoridade desses ministros para tomar uma decisão final. É combustível para se questionar a imparcialidade do Judiciário como ator das disputas políticas brasileiras. Eu realmente acredito que nenhuma democracia saudável do mundo sobrevive durante tanto tempo com o nível de intervenção judicial nas instituições políticas e com a falta de autoridade pública – no sentido de mobilizar o país – como o que está acontecendo aqui. O ponto, para mim, em relação ao Judiciário é, repito, não cometer o grave erro de enxergar como remédio o que, na verdade, é parte da doença. Qual é o desafio do Brasil hoje? É um desafio muito mais profundo do que a troca de pessoas ou o combate à corrupção.
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