Samba da Vela acende todas as segundas em um lugar de São Paulo
Na Zona Sul de São Paulo, o samba continuará até que a vela se apague
Toda as segundas-feiras, perto das 20h30, na Casa de Cultura de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo, José Marilton da Cruz, o Chapinha, quando vê que já é hora e que as pessoas já estão ao redor da mesa e dos músicos, acende a vela (de cerca de vinte centímetros), a coloca sob uma divisória de vidro que a protege de correntes de ar e faz um gesto para que tudo comece: a música passa a soar. Ela continuará até que a vela se apague. Esse é o único limite.
Há 16 anos, Chapinha – junto com três amigos – decidiu criar uma roda de samba à antiga, no Sul da cidade. No início, eles se reuniam numa loja próxima, mas o lugar era frio e sem charme algum. No começo tampouco era aberta ao público, era uma simples reunião de amigos dispostos a compartilhar o samba, tocar e cantar juntos.
Mas os moradores do bairro vieram ouvir e os pioneiros decidiram abrir as portas. Era necessário, de qualquer forma, estabelecer regras, pelo menos para regulamentar o final da sessão, para indicar a todos que era hora de voltar para casa. Um pensou numa ampulheta, outro num despertador. Outro mencionou um galo. No fim, alguém pensou na vela. E a ideia vingou. Não só porque funciona melhor como relógio do que a areia (e nem falemos do galo), mas porque tem o simbolismo religioso da luz acesa, da chama que treme sem apagar, sobre a qual se recolhe uma comunidade de moradores.
Por isso, toda segunda-feira Chapinha, um sambista veterano que também dá oficinas de composição, acende uma vela com um isqueiro. Por lá passam compositores do bairro, músicos que trabalham de dia em outra coisa, cantores improvisados que se revezam diante da vela no meio do círculo de cadeiras.
Chapinnha se queixa de que há cada vez menos rádios de samba, que o funk ganha terreno entre os mais jovens, diz que o samba é uma música irreverente, graciosa, que fala de amores e de alegrias, mas também de luta e reivindicações sociais.
Enquanto isso, na mesa que serve de palco, passam compositores e intérpretes, que logo, em sua grande maioria, retornam para suas cadeiras do público. Não há muita diferença, nessa roda da samba, entre os espectadores e os intérpretes. Uns se identificam com os outros durante a noite, enquanto a vela queimar. Chapinha se encarrega de apresentar todos, de incentivá-los e de marcar o ritmo quando as coisas vacilam. E de lembrar outras coisas que, como a música, têm a ver com a comunidade da vela dos bairros humildes e violentos de São Paulo onde está enraizada. “E agora eu quero que a energia que manifestamos aqui vá para esses cinco rapazes da periferia que foram mortos a tiros pela polícia. Isso não teria acontecido se eles fossem de classe média”.
No meio de uma canção aparece Osvaldinho da Cuíca, uma lenda viva do samba de São Paulo; cumprimenta os músicos e o público e senta numa das cadeiras, como um espectador a mais. Ele não cantará até o final, até que tenham cantado todos os sambistas amadores do bairro, até que Chapinha peça, chamando-o simplesmente de mestre. A vela ainda arde. Então o velho músico, de 76 anos, tira umas folhinhas do bolso de sua jaqueta e explica: “Faz tempo que estou doente. Alguns dias atrás sonhei que estava morrendo. E ao acordar pensei que dessa coisa deveria sair uma canção, mas não muito triste”. Todos aplaudem e riem, e o músico interpreta um samba cheio de ironia que consegue conjurar o arrepio da doença e da morte.
E então a vela se apaga numa pequena explosão de fumaça. Foram mais de três horas de música ininterrupta, de risos, piadas, palavras de ordem do bairro inoculadas por meio das letras da canção, de amor ao samba e ao próprio bairro. Ao ver que não há luz, Chapinha se levanta novamente e dá alguns avisos, algumas informações, lembra que na próxima semana haverá uma segunda roda de samba. Depois lembra que para jantar haverá uma sopa –nessa noite faz frio em São Paulo. Todos os músicos, o público, os compositores, Osvaldinho e o próprio Chapinha, se aproximam para pegar o copo de plástico.
Os baianos garantem que o samba nasceu no Nordeste. Os do Rio replicam que sim, bom, mas que foi forjado no Rio. Os moradores dessa zona sul de São Paulo distante do centro da cidade sabem que o samba nasce aqui toda segunda-feira às oito e meia, quando Chapinha aproxima o isqueiro na vela.
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