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Entrevista

Paulinho da Viola: “O samba não acabou só porque o povo não deixou”

O músico de 74 anos, fala sobre o centenário do samba, o carnaval moderno e a crise

Paulinho da Viola, na sua casa, no Rio.
Paulinho da Viola, na sua casa, no Rio.Paula Giolito

Paulo César Batista de Faria (Rio de Janeiro, 1942) não faz nada com pressa. Um músico que demorou mais de 15 anos em concluir uma letra não vê inconveniente em se estender mais de 15 minutos em cada uma das perguntas desta entrevista. Assim, o encontro, em um dia chuvoso na sua casa da zona oeste do Rio, dura cerca de quatro horas. “Eu falo muito, vou emendando uma coisa na outra e eu não sei sintetizar”, diz sorrindo.

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A conversa começa no que foi sua oficina de marcenaria, onde Paulinho restaurava violões, móveis talhados e até tacos de sinuca. A madeira é, junto com a música e a mecânica, uma paixão antiga. Hoje, aquele esconderijo onde os pregos se guardam em caixas de charutos está ocupado por trastes que a família foi deixando por lá. Há cerca de um ano que as ferramentas, algumas com mais de cem anos, não saem dos seus estojos de couro nordestino, mas Paulinho promete limpar tudo aquilo e retomar os trabalhos. Ele precisa, confessa. “Eu poderia ter sido marceneiro, ou talvez um bancário aposentado. Mas não deixaria de tocar violão”, diz.

É difícil arrancar dele uma crítica e fácil demais ouvir elogios a quem o acompanhou em suas andanças. Paulinho da Viola encerrou no último 16 de janeiro no Rio uma turnê comemorativa de 50 anos de carreira. Seu plano hoje, além de continuar com alguns shows esporádicos, é lançar um disco novo. Ele não sabe quando, não sabe com quais músicas, mas não se importa. Trabalhará, escreverá, reescreverá, gravará e regravará... Ele não tem pressa. “Algum dia ficará pronto”.

Pergunta. O samba faz seu primeiro centenário. Que referências são indispensáveis nessa comemoração?

Resposta. Na letra de Bebadosamba falo de muitas delas, mas eu falo aí dos nomes mais tradicionais, ligados às escolas, é uma escolha bem pessoal. Tem Donga, Ismael Silva, Noel Rosa, o próprio Ary Barroso, que eu não cito na música, Paulo da Portela, que foi fundador da Portela... Puxa! Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti, esse era grande... Elton Medeiros, Candeia... Olha, é difícil. Wilson Batista, Geraldo Pereira, Monsueto Menezes, Dona Ivone Lara... E muitos outros que fogem da minha memória agora.

Essa história nossa do samba é fascinante porque se enriqueceu e mudou muito. Os movimentos que vinham surgindo na música brasileira, desde a bossa nova na década dos 50, já propunham uma abordagem diferente daquilo que se fazia tradicionalmente com o samba. As escolas de samba mudaram de ano para ano e elas incorporaram muita coisa nova também. Você pode dizer que o samba tem origem na África, com elementos da cultura portuguesa, com grandes influências aqui no Brasil, mas você vê que o povo foi antropofágico, pegou tudo e o devolveu de outra maneira. Nesses cem anos sempre houve experimentações, desconstruções, jovens talentos trazendo coisas novas... E essa linha rítmica, tão forte, só não desapareceu por um motivo: porque o povo não deixou. Já no começo dos anos 1970, eu ouvia produtores dizer: “Ihh, a gente tem que acabar com essa velharia aí”. Se um produtor diz isso tem um peso, mas as pessoas não deixaram de tocar, artistas gravavam sambas antigos e novos, incorporaram novas tecnologias, usaram um instrumental diferente, construíram versos de outra maneira... Tudo foi mudando, mas se fosse pelo mercado, o samba não seria o que hoje é.

Paula Giolito

P. O que acha que a gente comemorará daqui a outros cem anos? Como imagina o futuro do samba?

R. Não sei te dizer isso, mas hoje há escolas de samba até fora do país. Quando fui ao Japão em 1986 já tinha uma escola de samba lá e desfilava e tudo. Um dos primeiros enredos da Portela, em 1923, chamava-se O Samba dominando o mundo. Já havia o sonho do compositor popular de que algum dia o samba conquistaria o mundo. Eu não acho que dominou o mundo, mas foi para muitos lugares. Eu acredito que essa coisa do samba no mundo se deve muito às escolas do samba, mesmo com os estereótipos e a visão distorcida que chega lá fora do que o samba é.

P. No cenário atual, com tanta oferta, se prestaria atenção ao nascimento de um novo Paulinho da Viola?

R. Eu não sei. Mas eu viajo, e onde eu vou e faço um show recebo até 15 discos. É muita coisa, é muita gente e fica difícil você saber [o que é bom]. É muito diferente do nosso tempo. O que eu sei é que tem muita coisa legal, mesmo no universo do samba, no universo do choro. Outro dia, um rapaz, de quem eu já havia ouvido falar, me deu um CD seu em São Paulo. Eu nunca ouvi ninguém fazer aquilo com um cavaquinho. Chama-se Messias Britto. Agora, veja se você vai achar um disco dele em alguma loja! Talvez em alguma especializada. Mas as pessoas que fazem esses trabalhos autorais e não têm uma gravadora que vai distribuir, encontram uma enorme dificuldade para dar a conhecer sua música. E os espaços para essas pessoas jovens apresentarem seus trabalhos, ao invés de se multiplicar, diminuem. Por outro lado, muitas vezes tem artistas, que nem são artistas, que gravam uma duas, três músicas e daqui a pouco é um estouro.

"As pessoas que fazem esses trabalhos autorais e não têm uma gravadora que vai distribuir, encontram uma enorme dificuldade para dar a conhecer sua música"

P. O que lhe sugere que um intérprete como Wesley Safadão tenha um dos cachês mais altos do país (fala-se em cerca de 650.000 reais por um show)?

R. Eu li sobre ele. Isso é o que se chama de mercado. Você tem um público enorme que consome esse trabalho e isso reverte no cachê. É difícil julgar isso. Acho perigoso dizer se isso é bom ou ruim, seria uma pretensão. Claro que tem gente que não gosta, mas você tem que cuidar de fazer o melhor que você pode. Eu mesmo tenho trabalhos que não gosto mais de ouvir.

P. Como foi trabalhar durante a ditadura?

R. Eu só tive uma música censurada e isso que era uma época que eu tinha um envolvimento político maior. Mas meu trabalho não era reivindicativo. Eu achava que já tinha muita gente fazendo isso, e algumas pessoas não faziam bem. Algumas músicas eram mais panfletos do que arte. E panfleto não é arte.

A música que eu tive censurada era sobre um par de sapatos. Eles sapateavam. Chamava-se Meu sapato. Dizia assim: Meu sapato/ de salto de aço/ inoxidável/ que sapateia/ que rompe as teias/ que se formaram/ sobre as calçadas.... E o sapato ficava ai fazendo uma batucada [ele imita o som do tamborin]. Num determinado trecho a música falava de uma figura que tinha brasões e eles viram aí uma provável alusão ao militarismo. Não fazia sentido. Eu acabei tirando aquele trecho e botei um outro titulo: Meu novo sapato, que foi o que acabei gravando.

Tem vários sambas que são mais alusivos. Tem um que fala assim [Paulinho canta]: Acende uma chama/ É o som de um samba / Que chega nas ondas da noite pra mim / Dizendo que a história nos ensina/ E um amor assim ninguém domina... Essa frase, “que um amor assim ninguém domina”, tinha um significado na época que você não quer saber, mas eles não podiam censurar isso. [Paulinho continua cantando] Se há um tempo de amargura/ Pode haver a desventura/ De um samba sem calor/ Mas nada se conserva eternamente/ Depois a gente se vê amor. Essa música tinha um significado, não precisava falar diretamente de nada, estava aí. Inúmeros artistas fizeram isso para driblar a censura.

P. O que acha do Carnaval de hoje? É muito diferente daqueles em que você participava?

"O fato das escolas se verem obrigadas a passar em um tempo cronometrado, ver as pessoas correndo, se empurrando inclusive para não ser penalizadas, isso não é desfile"

R. Essa história é também longa. Na década de 1970 eu ainda saía na Portela e começamos a notar que algumas escolas apresentavam uns sambas mais curtos e mais rápidos, mais vibrantes. As escolas enfrentavam alguns problemas, entre eles de espaço. Não tinha sambódromo, havia pequenas arquibancadas, o povo invadia o desfile, não havia como controlar isso. Mas eu adorava. Principalmente porque a batucada, era outra batucada.

A forma de tocar mudou muito. Cada bateria tinha um som diferente, você poderia diferenciar as escolas pela forma como tocavam os instrumentos. E como não havia essa quantidade de escolas, ficavam um tempo enorme desfilando. Mas a medida que as escolas foram crescendo e sofisticando seus enredos e aprimorando suas fantasias é claro que tudo mudou e o andamento acelerou. Pensava-se que ficava mais vibrante. Você pode acelerar, mas tem que ter um limite. Nesse andamento que as escolas fazem hoje, repare no tamborim tocando: ele não faz mais a síncopa do samba. Antes não era qualquer pessoa que saía tocando um instrumento, saíam os melhores. Isso dava um balanço no samba que não existe mais. O fato das escola se verem obrigadas a passar em um tempo cronometrado, ver as pessoas correndo, se empurrando inclusive para não serem penalizadas, isso não é desfile.

Ao mesmo tempo, os sambas chamados de terreiro ou de quadra são sambas que até hoje são cantados pelas pessoas e gravados pelos artistas, enquanto os sambas de enredo, com algumas exceções, são descartáveis.

P. O Carnaval deste ano está cheio de marchinhas satíricas sobre a crise econômica e política... Se tivesse que compor uma letra crítica hoje sobre o que seria?

R. Acho que a gente vive uma situação muito difícil. Existe uma luta política e muita desinformação da nossa parte. Mas pela primeira vez você tem uma discussão aberta sobre uma questão muito antiga e que não é só daqui que é a corrupção. É algo muito sério, mais que qualquer outra coisa, eu acho. Eu tento acompanhar de alguns jornais, tento discutir com meus filhos, meus amigos, mas eu acho que é uma areia muito grande para o meu caminhão. Eu não sei como vai se desenvolver tudo isso.

"Pela primeira vez você tem uma discussão aberta sobre uma questão muito antiga e que não é só daqui que é a corrupção"

P. Há algo que ultimamente lhe indignou, como um possível aumento de impostos?

R. Olha, se essa é a melhor proposta... nessa hora em que as pessoas não têm condições de comprar nada... De repente uma ação da Petrobras vale cinco reais, a maior companhia do país. Qual é o significado disso? Tem muita gente que investiu dinheiro aí, pequenos investidores que foram estimulados a isso. O que você vai dizer para essas pessoas?

P. Você se decepcionou com estes últimos governos?

R. Sim, estou um pouco decepcionado. Mas de uma maneira geral, é difícil ficar entusiasmado nesses tempos. Mas eu não gosto de falar disso, não.

P. No documentário sobre a sua vida, de Zuenir Ventura, a saudade é um tema recorrente. Às vezes parece que você foge dela, às vezes parece que a minimiza. O que é a saudade para Paulinho?

R. O Zuenir me perguntou sobre essa coisa da memória. A memória é muito importante para mim, tem um peso muito grande. Aí ele me perguntou sobre a saudade e eu disse: “Eu não sinto saudade”. Isso ficou no filme e eu estava andando uma vez na cidade e uma senhora me parou e me disse: “Como é que você pode dizer uma coisa dessas? Eu acabei de perder uma pessoa, você não sabe o que isso significa para mim”. E ela disse isso com lágrimas nos olhos. A única resposta que eu tive foi abraçá-la [os olhos de Paulinho se avermelham] e comecei a chorar com ela. Quando falo isso fico emocionado. Mas o que eu queria dizer é que talvez eu não sinta essa saudade, como se quisesse voltar no tempo, porque para mim é como se tudo estivesse presente. Quando eu falo do Paulo da Portela é como se ele estivesse aqui, quando eu falo do Pixinguinha, que é a coisa que eu mais gosto de ouvir na minha vida, ele está aqui. Zé Kéti, que é adoração, é como se estivesse aqui. Quando eu falo da minha avó, que adoro, minha mãe, meu pai, eu não sinto a falta deles, porque é como se eles estivessem aqui. Eu acho que sofro menos, talvez é um mecanismo de defesa que eu criei, eu não sei. Meu passado é muito presente, mas isso não quer dizer que eu seguro ele.

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