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Martinho da Vila: “O samba vive um momento forte, avançado e merecido”

Sambista defende que ‘O Samba’, de Georges Gachot, é um filme “para brasileiro ver” Em entrevista ao EL PAÍS, fala da atual fase forte do samba e discute política no Brasil

O cantor Martinho da Vila.
O cantor Martinho da Vila.Divulgação

Martinho da Vila, a quem o samba ensinou tantas lições, destaca no documentário O Samba, exibido durante o Festival de cinema do Rio, uma das principais: “Os verdadeiros revolucionários são otimistas”. E logo entoa para o diretor francês Georges Gachot, que o seguiu com a câmera para adentrar os bastidores da escola Unidos de Vila Isabel, os versos de sua canção mais gravada dentro e fora do Brasil, Canta, canta, minha gente, marcando a cadência e exibindo o sorriso que ele julga ideais para cantá-la.

Por telefone, cansada de uma vida de de entrevistas no rastro de tantas composições bem-sucedidas, a inconfundível voz do sambista passeia pelos mais variados temas, do filme à política no Brasil, passando pelos 100 anos que o samba completa no ano que vem. O único desgosto de Martinho, apesar de a conversa acontecer em uma segunda-feira de manhã, parece ser a falta de ideologia com que se faz política no país. Mas o tema não o impede de dar risada. Nem o cansaço, nem a segunda-feira.

Pergunta. Soube que, no começo, você resistiu à ideia de fazer o filme, mas terminou topando e, no fim, gostou do resultado. O que o preocupava no começo?

Resposta. Resisti, porque estava com a agenda complicada, mas aí o diretor, que é francês, me disse que eu não precisava fazer nada, que ele só ia me seguir em alguns momentos. E assim foi. Eu apareço muito, né?

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P. Na verdade, não. Mas você é quem guia o espectador.

R. Essa era a intenção. Tem gente falando que é um filme para gringo ver, mas, ao contrário, é para brasileiro ver. É um filme com um olhar de fora, mas isso é diferente. O cinema francês tem características próprias, com momentos para refletir, pensar. É uma história sem os clichês que todo mundo espera de um filme sobre o samba.

P. O que todo mundo espera?

R. Um show de samba. Aquela coisa com rainhas de bateria, mulatas. E o que o filme entrega é... um show de samba, mas com um tamborim e uma voz. É outro tipo de show. A história começa com alegorias cobertas, rumo à Sapucaí, e termina não com uma rainha da bateria, mas com uma senhora sambando. É algo para se pensar. Por isso, digo que é um filme para brasileiro ver.

P. Quando mostra a escola de samba, ele capta algo interessante: que se trata de uma escola de fato, onde as pessoas aprendem samba, entre outras coisas.

Uma senhora dança no desfecho de 'O Samba'.
Uma senhora dança no desfecho de 'O Samba'.Divulgação

R. Exatamente. A palavra escola não está mais ligada a esse aprendizado, mas lá há meninos estudando, mulheres praticando diferentes atividades, músicos aprendendo.

P. Não é a primeira vez que um longa-metragem é feito sobre a sua carreira. Qual a diferença entre O Samba e o filme Pequeno Burguês – Filosofia de vida, de 2010?

R. O Filosofia de Vida saiu acompanhando meu disco na época, o Pequeno Burguês. Foi um trabalho mais ligado ao disco, uma coisa mais promocional do artista. Esse último fala do samba mesmo. Mostra as pessoas que não têm dinheiro para pagar o desfile na Sapucaí, mas vão para lá, para espiar de longe. Inclusive, de cima do viaduto, que é um negócio perigoso. É algo que o brasileiro não vê. Não passa na televisão.

P. Você está quase completando 50 anos de carreira. Que balanço você faz, depois de tantos projetos e sendo um dos músicos mais importantes do Brasil?

R. Na arte, não tem carreira. Quando você faz arte, é vida artística, ou seja, não tem fim, só quando você morre. A carreira é uma coisa que começa, passa pelo ponto máximo e depois termina. Na vida, sempre há coisas para fazer. E arte é política, mesmo sem um engajamento de fato. Aliás, viver é um ato político.

P. Falando em política, você é filiado ao PCdoB desde 2005.

Os partidos brasileiros não têm ideologia definida"

R. Sou filiado, mas não sou um político partidário. Me filiei, porque acho que todo cidadão deveria fazer isso para participar e poder opinar, se quiser. Mas não tenho pretensões políticas. Os partidos brasileiros não têm ideologia definida. O PCdoB tem isso um pouco, mas já não muito. Aqui é como se não houvesse necessidade de identidade partidária. Assim caminha o Brasil: devagar e sempre. E o mundo também. Está tudo confuso: há uma crise financeira mundial, as relações internacionais são críticas, as guerras continuam...

P. O que você opina sobre a radicalização das discussões políticas hoje no Brasil?

R. Vivemos em uma democracia radical, no sentido das posições radicalizadas, em que os objetivos são puramente político-partidários. Muitos órgãos de imprensa parecem praticamente órgãos de oposição, difundindo notícias como se fossem informativos criados por partidos específicos. Imagine pessoas com pouca instrução recebendo essas notícias... A desinformação é total.

P. Outro quesito que fala contra nós, ainda hoje, é nossa relação débil com a África, tema que você defende há anos.

R. Sim, continuamos distantes. Hoje, um pouco menos pelo lado econômico, mas muito pelo cultural. Sou membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP, que integra oito países lusófonos. É uma idealização, que poderia contribuir com uma maior proximidade, mas precisaria ser levada mais a sério pelas administrações dos países envolvidos.

P. Tampouco aproveitamos o fato de sermos latino-americanos, você não acha?

R. Sim, o intercâmbio cultural deveria ser muito maior na região. Tem que ser muito curioso para ir atrás das novidades culturais sobre a América Latina aqui. O Uruguai é o país hispano-americano onde tenho mais público. Eles gostam de samba.

O samba cresceu por sua importância política, social, econômica e cultural. Vive um estágio forte, avançado, muito merecido"

P. Falando de samba, depois de ter sido marginalizado por tanto tempo, ele passou a abrir portas para o Brasil no mundo inteiro. Como você avalia o samba, que completa 100 anos no começo do ano que vem?

R. No começo, o samba era discriminado. Foi se impondo por força própria. Hoje, se o presidente de uma escola de samba do grupo especial ligar para um prefeito ou para um governador, eles atendem na hora. O samba cresceu por sua importância política, social, econômica e cultural. Vive um estágio forte, avançado, muito merecido.

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