A selva amazônica alimenta as torneiras em São Paulo
Mordidas do homem sobre a selva equivalem a acabar com a nascente de um rio
Nos últimos dois anos, muitos dos vizinhos da Grande São Paulo (20 milhões de habitantes) começaram a se acostumar a captar água da chuva com baldes, a esfregar o chão com água da máquina de lavar roupas e a se levantar de madrugada, antes que as torneiras fiquem secas novamente, para encher as bacias e ter água para o dia seguinte. O estado mais rico do Brasil ficou imerso por uma crise hídrica que não previu ou não soube prevenir e observou como suas reservas foram secando paulatina e perigosamente diante de uma queda inesperada de precipitações. Os estados próximos, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, seguiram os passos do vizinho e muitos de seus habitantes também sofreram com o desabastecimento de água durante dias. No Nordeste do país, uma região maior, embora menos populosa, a seca não é nenhuma novidade, e em épocas mais severas, multiplicam-se as imagens de famílias inteiras percorrendo dezenas de quilômetros em busca de algum poço de qualidade questionável ou esperando com a vista voltada às ruas, completamente dependentes da chegada de um caminhão-pipa. O problema explica-se pela falta de infraestruturas, de previsão e de uma cultura de consumo responsável. E, também, claro, pela falta de chuvas, um fenômeno que os especialistas associam ao desmatamento do maior tesouro do Brasil (e do Planeta): a selva amazônica.
As mordidas constantes do homem sobre a selva amazônica, um ecossistema único que mantém o ar úmido por até 3.000 quilômetros continente adentro, podem equiparar-se, em termos ambientais, a acabar com a nascente de um gigantesco rio. Há mais de 20 anos, diferentes estudos climáticos estabeleceram uma conexão entre o desmatamento e as secas. Uma grande árvore pode absorver do solo e liberar mais de mil litros em um único dia, segundo o relatório mais recente sobre o tema, com o título “O futuro climático da Amazônia”, coordenado por Antonio Nobre, um dos principais estudiosos da área.
Em 2010, uma descoberta ilustrou a preocupação dos especialistas. Pela primeira vez, durante sua estiagem, encontraram-se pinturas rupestres nas rochas do fundo do leito do Rio Negro, em Manaus. Os desenhos foram feitos quando o nível dos mares, durante a era glacial milhares de anos atrás, estava 100 metros abaixo do nível atual. As relações entre o clima e a Amazônia ainda não são conclusivas, mas continuam a ser reforçadas no Brasil nos últimos anos.
O conceito de “rios voadores” já faz parte do imaginário coletivo de muitos brasileiros, uma vitória dos cientistas que se empenharam em demonstrar que as cicatrizes da selva amazônica deixam marcas em todo o continente — calcula-se que 19% das chuvas da Bacia da Prata têm sua origem na umidade que a selva amazônica gera, e que voa para o sul. As secas foram acompanhadas nos últimos anos de outros fenômenos climáticos extremos, como inundações — especialmente no sul do país —, o que reforça a teoria dos especialistas sobre o papel da selva no equilíbrio climático da região.
Com este panorama, em que até o Rio de Janeiro terá que investir em obras que garantam o abastecimento durante as Olimpíadas do ano que vem, o Brasil chega à Cúpula do Clima de Paris com uma má notícia. O desmatamento na Amazônia aumentou 16% este ano e chegou a 5.841 quilômetros quadrados, uma área equivalente à metade do território de Porto Rico.
O desmatamento é o principal responsável pelas emissões de gás do efeito estufa do país e desafia o ambicioso objetivo que o Brasil colocará sobre a mesa diante de 194 países: reduzir as emissões de carbono em 43% e acabar com a extração ilegal de madeira até 2030. “Esses dados debilitam a posição brasileira nas negociações internacionais sobre o clima. Mas é ainda pior porque estamos dando um tiro no nosso pé, já que a consequência do desmatamento é uma degradação do clima até extremos inimagináveis”, lamenta um dos principais estudiosos da relação da Amazônia com o clima, o cientista Antonio Nobre.
A boa notícia é que o Brasil já esteve pior: em 2004, foram destruídos 27.772 quilômetros quadrados. O objetivo para 2020 é não superar os 4.000 km². O desafio é enorme. Contra ele, estão principalmente os interesses da pecuária e dos agricultores. Os estados que concentram os maiores aumentos do desmatamento (Amazônia, Rondônia e Mato Grosso) beneficiaram-se, paradoxalmente, de recursos do Fundo Amazônia, nutrido pelo investimento estrangeiro e idealizado, precisamente, para reduzi-lo.
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