Uma suruba para colorir, eis o Brasil
"Dê-me um sofá, um cão, um bom livro e uma moça bonita. E aí se você levar o cão para ler o livro em outro lugar, talvez eu tenha uma diversãozinha.” (Grouxo Marx)
Só me resta rir com a tirinha-série Bifland, a cidade maldita, do Allan Sieber, na Folha de quinta. Sobre o livro de colorir (bote anti-stress nisso) que já vem colorido. Colorido pelo Romero Britto, óbvio, o gênio-mor de Miami e região, of course.
No que, pasme, reflito, corta pra mim em posição do pensador de Rodin, uma mão na testa outra no copo de Caracu com ovo:
Em algumas listas importantes, bem sabemos, nove dos dez livros mais vendidos no Brasil são para colorir e o décimo no ranking, bem, o décimo não vale o que Deli, minha gata vira-lata achada no Largo da Batata (SP), enterra na sua caixa de areia e mistérios.
Tudo bem, só macaqueamos as modinhas de fora. Nada de novo sob o sol dos tristes trópicos. Chega de sonhar com aquela lista que rolava até os anos 1980, com a presença de importantes autores brasileiros: Rubem Fonseca, Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, José J. Veiga, Ivan Ângelo, Fernando Sabino, Dalton Trevisan, Ignácio de Loyola Brandão, Roberto Drummond, Lygia Fagundes Teles... Esquece.
Sem drama, sem tese, sem mimimi. Esqueça o que escrevi aí na cumeeira, moçada, esqueça. O importante é que temos uma resposta genuína ao não-leitor do lápis de cor. Uma versão brasileiríssima que reage ao “triunfo total da não-leitura” –como Carlos Andreazza, editor da casa impressora Record, definiu a tendência, em papo com Maria Fortuna n'O Globo de anteontem.
O importante é que temos uma resposta tupiniquim à arte fofa que domina o mercado editorial interplanetário: Suruba para colorir, uma publicação da Bebel Books, São Paulo, SP.
É simplesmente o melhor volume do ramo desde os pedagógicos e primários “cadernos de atividades” da escola. Nem se compara. Reúne uma penca dos nossos melhores cartunistas e ilustradores em um kama-sutra universal capaz de divertir o mais solitário dos cavaleiros.
Sério. Capaz de comover até a dama em branco & preto do Corte do Cantagalo (ai de mim, Copacabana), a elegante dama que rejeita as cores chamativas e, na sua aparente viuvez, me lembra a atriz Catherine Deneuve a cada gesto, a cada tarde, elegante mesmo quando pede um domingueiro frango assado no boteco da esquina. E uma solitária coca zero, lata.
Respiro fundo... Mais linda ainda a dama em preto & branco quando se enfeita e se pinta para dormir, como a vejo agora de uma janela indiscreta... Ela se pinta apenas antes de ir para a cama, em um ritual sagrado e profano. Como quem vai entrar colorida em um filme preto & branco... Ela se pinta para sonhar. Ela sabe que os sonhos são restos de filmes não-aproveitados pelos cineastas mortos. Ela deve sonhar Buñuel, tudo aquilo que ficou de fora da fita Esse Obscuro Objeto de Desejo. Deve.
Desestressar, verbo intransitivo
Suruba para colorir, em dois volumes, tem um charme gráfico capaz de reanimar o velho Gutenberg nesses tempos apocalípticos para o mundo das prensas. São excitantes desenhos capazes de fazer tremer a mão justiceira de um jovem mancebo ou de um velho macho-jurubeba como este desbotado cronista que já nasceu sob o filtro sépia da existência.
Se liga, sem essa caretice de desestressar, de aliviar a ansiedade etc, como prometem os “mais vendidos” é falácia, você sabe. Arte é nervosismo. Ao tentar colorir o desenho inicial do Christiano Mascaro, me vi mais lascado do que maxixe em cruz, excitadíssimo naquela “surubeta fora de época”, como é batizada a página do cara no livro 2 do projeto.
Nada mais representa o momento do país do que a ideia de uma suruba para colorir. É uma resposta à plataforma careta e conservadora
Na almôndega anal do desenho da Laerte, ave, que coisa linda, a terra é azul e gira em torno do fio-terra. Adão Iturrusgarai, outro mestre da sacanagem, fez do mitológico cavalo de troia um pansexualismo ad infinitum. Estou dentro, amigo.
Tem também o fabuloso fabulário de João Montanaro, apenas 18 primaveras de vida, nada inocente o mão-peluda; tem a Luciana Bastos, o Oga Mendonça, a Thais dos Anjos, o Fabio Zimbres... Só danações. No próximo volume, please, que conste a Sirlanney, autora de Magra de ruim (ed. Circuito Ambrosia), simplesmente uma sibita baleada, como se diz na terra do sol a respeito dos magricelos(as), genialíssima menina na porrada, no desenho e no discurso.
Suruba para colorir me pareceu, deveras, uma homenagem involuntária ao Wolinski, o maior desenhador de bacanais do universo, aquele gênio assassinado no terrorismo contra o Charlie Hebdo, salve Wolinski.
Digo, repito, assim no boteco como aqui por escrito. Nada mais representa o momento do país do que a ideia de uma suruba para colorir. É uma resposta à plataforma careta e conservadora, da qual tão bem se queixou a atriz Marieta Severo esta semana, referindo-se à pauta dos escrotinhos –lembra dos personagens homônimos do Angeli?
Os escrotinhos, óbvio, são os Cunhas e Renans da vida que se multiplicam feito Gremlins no Congresso ou na sua firma, capazes de forçar a maior marcha à ré da história, um período anti-JK, 50 anos destruídos em 5, vide os direitos trabalhistas e a crença de que a redução da maioridade penal vai diminuir a violência. Conta outra, em mais mil noites, Sheherazade. Chega da matança de pobres pretos da perifa, chega de extermínio.
Que o Brasil seja um suruba para colorir, abençoado pelo arco-íris de todos os gêneros e opções, que o Brasil seja menos mimimi e mais Cariri, como escreve o Dafne Sampaio nos muros de São Paulo. Os chacinados cariris da minha aldeia do Crato, quase 30 mil índios mortos nessa mesma conversinha escrota de hoje. Só muda o nome dos políticos e dos colunistas que incentivam a barbárie.
Por uma suruba para colorir o cais de José Estelita, Recife, terreno público, bem público, torrado na bacia das almas das campanhas políticas, agora sob a ameaça de virar mais um condomínio “Miami style”, que melancólico. Justo no Pernambuco de tantas revoluções, o Pernambuco da Confederação do Equador, o Pernambuco da Praieira, o Pernambuco de Miguel Arraes de Alencar –homem do Cariri por excelência– , cujos herdeiros do PSB fazem questão de trair os princípios na maior cara de pau, madeira que cupim rói e faz a festa sem fastio na frevioca.
Só me resta colorir e saber a origem, do tupi Suruba, tronco desgastado pelo uso. Faz todo sentido. Só me resta, sei lá, só me resta lembrar o poeta Vinícius de Moraes, enquanto houver língua e dedo, mulher nenhuma me mete medo. Melhor: enquanto houver língua, dedo e lápis de cor, suruba tem seu valor. Bom final de semana e até a próxima crônica do amor louco.
Xico Sá é autor de “Chabadabadá –aventuras do macho perdido e da fêmea que se acha” (editora Record), entre outros livros.
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