_
_
_
_
_

Após um ano de resistência, Recife abre seu centro histórico à especulação

Mega-empreendimento de 13 torres na beira do mar é alvo da Justiça e dos ativistas

O cais José Estelita, no centro histórico de Recife.
O cais José Estelita, no centro histórico de Recife.Daniel Guimarães

Faz um ano que algumas retroescavadeiras acenderam o pavio do movimento social mais combativo da memória recente no Recife. Desde que um poderoso consórcio imobiliário entrou, naquela madrugada de 21 de maio, no cais José Estelita, para tentar demolir antigos armazéns e começar a construção de um megacondomínio de 13 gigantescas torres na beira do rio, os recifenses iniciaram uma agitada discussão sobre o modelo de cidade que estava dominando Recife. A capital começou a ser alimentada agressivamente, até hoje, pela especulação imobiliária. O movimento Ocupe Estelita, nascido dois anos antes, parou aquelas máquinas, e resiste hoje, com suas últimas cartadas e seu exército nas redes sociais, ao poder dos arranha-céus. Dentro de algumas semanas o consórcio vai protocolar um novo desenho daquele macrocondomínio residencial, hoteleiro e comercial. Faltam apenas os detalhes mais técnicos. As alterações, que dão ao exclusivo projeto uma cara mais amável com moradia social, área verde e ciclovias, foram combinadas lado a lado com a prefeitura.

Mais informações
Por que o cais José Estelita?
O Recife batalha pelo seu céu
A ocupação em imagens
O Ocupe Estelita e a “nova política”

Desde aquele dia das retroescavadeiras, prefeitura, construtoras, ativistas, arquitetos, engenheiros e professores se enfrentam para decidir qual é o melhor projeto para esse cais, um antigo armazém de açúcar e vila ferroviária do século XIX que faz fronteira com o centro histórico da cidade. "Foi consenso na cidade que o projeto original não atendia às nossas necessidades, era um modelo esgotado e saturado”, lembra Antônio Alexandre, o secretário de Desenvolvimento e Planejamento Urbano de Recife. O consenso durou pouco e a batalha por esse terreno, que equivale a cerca de 14 campos de futebol similar ao Maracanã, teve uma nova contenda no dia 4 de maio deste ano.

O prefeito Geraldo Júlio (PSB) sancionou, após uma tumultuada votação, um projeto de lei que define as normas de construção daquela área e que vai permitir ao consórcio Novo Recife construir, com algumas alterações sobre o projeto inicial, 13 torres de até 38 andares na beira da Bacia do Pina. A Prefeitura e o consórcio, que ostenta os grandes projetos da cidade e que colaborou economicamente com as campanhas eleitorais do governo municipal e estadual do PSB, defendem que a lei e o redesenho do projeto são fruto da conciliação dos interesses empresariais com os dos cidadãos, mas a defensoria pública e os ativistas estão revoltados.

O Ministério Público de Pernambuco, que já tinha solicitado que a discussão pública se reabrisse, pediu agora a nulidade da lei e que o município se abstenha de conceder o alvará de construção para qualquer empreendimento imobiliário na área. No Ministério Público Federal, o plano urbanístico municipal é considerado "um completo absurdo". "Ele fixa percentual de gabaritos [altura máxima dos prédios], de ocupação, mas não contempla estudos de impacto ambiental ou social. E mais: se você pega o projeto apresentado pelo consórcio e o plano da Prefeitura coincidem perfeitamente. Apenas foi feito para dar uma aparência de legalidade a um projeto polêmico", lamenta Mona Lisa Duarte, procuradora do Ministério Público Federal. A oposição também pediu na Justiça a suspensão da lei.

"A gente achou que abrir o debate era discutir o que a cidade queria nesse lugar, mas a Prefeitura acabou fazendo um projeto de lei para viabilizar um projeto que já existia. Fez a política pública ao contrário”, diz Ivan Moraes Filho, um dos integrantes do Ocupe Estelita, movimento que, após meses de ocupações e eventos culturais no cais, está agitando as ruas recifenses de novo. “Nós queremos um projeto de bairro, não redesenhar o projeto de uma construtora”. O prefeito Júlio, criticado por estar em São Paulo no dia de uma das votações mais relevantes para o futuro da cidade, já começou a pagar o preço da insatisfação cidadã com acampamentos e protestos na frente da sua casa e paródias nas redes sociais. “Devemos fazer com que as decisões das pessoas que mandam nesta cidade tenham um custo político. Seguir a cartilha das construtoras deve ter um preço e deve ser caro”, afirma Filho.

A Prefeitura e o consórcio defendem que a lei e o redesenho do projeto são fruto da conciliação, mas a defensoria pública e os ativistas estão revoltados.

O secretário Alexandre defende os avanços trazidos pela discussão com a sociedade ao projeto imobiliário e afirma que era impossível contentar todo o mundo em um "debate com tanta carga emocional". Ele argumenta que com as novas diretrizes vai prevalecer a área pública e serão construídas moradias sociais, além de se reduzir a altura dos prédios, e preservar a paisagem histórica. "Conquistamos muitos avanços neste debate e incluímos na nossa cidade princípios urbanísticos de mobilidade e da relação do espaço público e privado que não existiam", celebra o secretário. Alexandre defende, diante as críticas de trabalhar pelos interesses privados, a necessidade de garantir a segurança jurídica do consórcio, ainda mais em época de crise.

Após a aprovação do projeto de lei, o movimento Ocupe Estelita, braço do grupo Direitos Urbanos, que luta por uma cidade onde o lazer e a convivência não se limitem aos shoppings, levou uma petição ao Ministério da Cultura, em Brasília, para o tombamento da paisagem do cais. É, junto à mobilização social, a última cartada. “Isso não impede obras de urbanização, mas assegura a preservação das características históricas, muda tudo”, explica Liana Cirne, doutora em Direito Público e uma das lideranças dos ativistas. “A Prefeitura diz que incorporou 80% das nossas contribuições, mas é mentira. É clara nossa oposição ao gabarito dos prédios. Mais de cinco andares violentam nosso patrimônio paisagístico, e essa era uma das nossas principais críticas”. Hoje, o único instrumento que impede a demolição dos armazéns é um embargo de parte do terreno pelo Instituto de Patrimônio Histórico de Pernambuco (IPHAN) para elaborar um estudo arqueológico. Mas será liberado até final do ano.

Em menos de 20 dias, o projeto de lei municipal já soma três ações no Tribunal de Justiça de Pernambuco e o megacondomínio é investigado judicialmente em cinco processos. Questiona-se da falta de estudos de impacto ambiental ou de vizinhança até a necessidade de proteção do lugar como patrimônio histórico. As suspeitas começaram já com o leilão do terreno em 2008 a preço de banana. O consórcio formado pelas construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão – envolvida na operação Lava Jato –, G.L. Empreendimentos e Ara Empreendimentos, foi o único concorrente e pagou 55,4 milhões de reais, 554 reais o metro quadrado, preço privilegiado em uma das áreas mais valorizadas da cidade. Os juízes, menos rápidos que as burocracias municipais, ainda não se pronunciaram em última instância.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_