O filho de dona Terezinha Maria de Jesus
Os jovens do Voz da Comunidade, o primeiro jornal do Complexo do Alemão, parecem veteranos repórteres de uma guerra que acompanham desde o berço
Embora tenham entre 15 e 20 e poucos anos, os jovens do Voz da Comunidade, o primeiro jornal do Complexo do Alemão, parecem veteranos repórteres de uma guerra que acompanham desde o berço. Nos últimos dias, nas redes sociais, havia uma gota de sangue em cada twitter de alerta escrito por Renê Silva, 22, fundador e editor-chefe. O novo capítulo da tragédia, mais anunciada que a morte de Santiago Nasar na crônica de Gabriel Garcia Márquez, crucificou, na véspera desta sexta-feira da Paixão, o menino Eduardo, 10, um dos quatro filhos da doméstica Terezinha Maria de Jesus.
As autoridades do Rio de Janeiro lamentaram o ocorrido no confronto entre policiais e traficantes, prometem apuração rigorosa para punir os culpados e toda aquela lengalenga redigida pela fantástica máquina de cuspir notas oficiais dos burocratas. As notas que surgem depois das chacinas e calamidades que destroçam as vidas periféricas dos maiores ou menores de 16 anos. As notas surdas e mudas despachadas às redações com o objetivo de transmitir os sentimentos dos governantes que fogem do cenário do crime.
As notas são como as coroas de flores, igualmente burocráticas, enviadas pelas autoridades aos velórios anônimos dos feios, sujos e malvados. As notas oficiais não falam, como as rosas.
Mas, é sempre bom que se diga, se os mandatários, com suas UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) e milhares de câmeras para vigiar e punir, fingiram não ver, o filme de terror não sairá nunca mais da memória da mãe:
“Eu marquei a cara dele. Eu nunca vou esquecer o rosto do PM que acabou com a minha vida. Quando eu corri para falar com ele, ele apontou a arma para mim. Eu falei ‘pode me matar, você já acabou com a minha vida’”, contou Terezinha de Jesus aos repórteres. “Ele estava sentado no sofá comigo. Foi questão de segundos. Ele saiu e sentou no batente da porta. Teve um estrondo e quando olhei, parte do crânio do meu filho estava na sala e ele caído lá embaixo morto”.
Plantão permanente do Voz da Comunidade informou na página do jornal na internet: “Na noite dessa quinta-feira, 02 de Abril, os moradores do Complexo do Alemão realizaram um pequeno protesto na rua Joaquim de Queiroz (Grota), contra a morte de Eduardo Ferreira Calei, de 10 anos, que foi atingido nesta tarde por um tiro de fuzil no Areal. O protesto começou por volta das 22h40 e durou cerca de 30 minutos, onde os moradores, junto com todos os presidentes das associações de moradores do Complexo do Alemão, levaram velas acesas em forma de protesto.”
O retrato de Terezinha de Jesus captada por Renato Moura, fotógrafo e cinegrafista da equipe, revelava e ampliava a dor que não cabia em palavras àquela altura. A dor que sai no jornal do complexo de favelas desde 2010, quando Renê Silva, no meio do fogo cruzado entre tropas policias e traficantes, narrou, nas redes sociais, a ocupação da área pela PM carioca. Foi a melhor cobertura do episódio, com grande audiência e a repercussão que merece um jovem editor-chefe no front de uma guerra que acontece na porta de casa.
Graças à mesma brava equipe, a tragédia carioca -ocorrida dois dias depois do Congresso abrir as portas para a redução da maioridade penal- hoje é espalhada para o mundo com o avatar “Somos todos Complexo” seguido do clamor da hashtag #PazNoAlemão. Além de Eduardo, a polícia matou ainda outros dois menores e uma mulher de 40 anos nos primeiros dias de abril.
Que o relato de Teresinha, na mais dolorosa forma da primeira pessoa, a voz de uma mãe, reverbere na consciência das autoridades de todas as patentes:
“...Teve um estrondo e quando olhei, parte do crânio do meu filho estava na sala e ele caído lá embaixo morto.”
Malhação do Judas
Mais do que nunca é preciso ler ou reler João Antônio (1937-1996), o criador do conto-reportagem, boa dica para estes moços, pobres moços que ainda se arriscam no jornalismo. Nada mais justo e apropriado do que um trecho de Malhação do Judas carioca:
“Branca, ainda assim, Mariazinha Tiro a Esmo, é uma peça. Meteram-lhe esse nome lá pelos altos encardidos da Favela da Rocinha, num ponto de pivetes tão tumultuado, tão cheio de movimento, rumor e estripulias que ali acordar era fácil, dormir é que não.
Direitinha, como diriam os últimos rapazes, família da Zona Sul. Ela tem picardia e está na dela, como dizem os tipos amalandrados dos becos e das favelas. Dissimulada em seu trabalho, matreira trabalhando na boca do mocó, indo e vindo na baba de quiabo, enganando otários e pacatos, ela sobrevive. Só ou acompanhada na marginalidade, vai beirando o crime na cidade que castiga –para mais de quatro milhões de habitantes, mais de um milhão de favelados”.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor do romance Big Jato (Companhia das Letras) e comentarista dos programas Extra-ordinários e Redação Sportv.
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