“O Black Lives Matter se corrompeu”, diz ativista Norman Ajari
Também filósofo, o intelectual franco-americano, autor de um ensaio-manifesto sobre o tema, alerta para o surgimento de novas formas de desumanizar a comunidade negra
Norman Ajari (Columbia, Estados Unidos, 34 anos), ativista, filósofo, especialista em questões raciais e pensamento decolonial, não se lembra da primeira vez em que se sentiu diferente. Foi professor na Universidade Jean-Jaurès de Toulouse e agora trabalha como docente na Universidade Villanova (Filadélfia) e recorda que cresceu em uma cidade do leste da França, “uma dessas em que agora a extrema-direita sempre vence quando há eleições”, e que era o único garoto negro conhecido por lá. “Pode ser que existisse outro na cidade, mas não nos conhecíamos”, diz. Também conta que “as piores lembranças são da piscina, de quando tinha seis anos, de como os outros me olhavam”. Seus artigos acadêmicos sobre o pan-africanismo, o socialismo africano, sobre o psicanalista e filósofo anticolonialista Frantz Fanon e a luta pelos direitos civis chamaram a atenção do Partido dos Indígenas da República, que o quis em suas fileiras. E militou nelas até há pouco tempo. Ajari abre uma videochamada da Filadélfia com a intenção de falar sobre seu primeiro livro, o ensaio-manifesto Dignidade ou Morte, e da luta no geral, que deve continuar porque “tomamos as conquistas como vitórias, e não é assim que funciona”.
Pergunta. A que você se refere?
Resposta. Há quem diga que hoje estamos pior do que na época de Martin Luther King e em certo sentido é verdade. Seu sucesso foi visto como uma vitória sem levar em consideração que o racismo é algo permanente, especialmente nos Estados Unidos e em todos os países que têm em sua história alguma sombra de imperialismo. O problema hoje é a crença de que se está avançando rumo a algum tipo de igualdade que não é real. Enquanto isso acontece, estão sendo criadas novas formas de explorar e desumanizar a comunidade negra, enquanto ocorrem atrocidades como o encarceramento maciço nos EUA e em outras partes do mundo. Há entre 20 e 30 vezes mais pessoas negras e hispânicas do que brancas nas prisões. O racismo está em mutação, mas não está indo a lugar algum.
P. E fingir que avançamos a algum tipo de igualdade não real é, então, algo pior?
R. Sim, porque a sensação é a de que há esperança e que existem progressos. Isso faz com que baixemos a guarda e não lutemos com tanta força como se lutava em outros tempos. Em parte, é como se essa esperança estivesse domesticando a ideia da luta.
P. O que você acha do movimento Black Lives Matter?
R. Creio que, no começo, foi um movimento estupendo, maravilhoso, muito promissor. Foi articulado como resposta ao que estava acontecendo e fez sentido. A primeira onda se iniciou durante a Administração de Obama e foi muito necessária para a tomada de consciência, e depois deu a volta ao mundo após o assassinato de George Floyd, em uma segunda onda que conscientizou sobre todo o desempoderamento da comunidade negra em todo o mundo, já que isso não acontece só nos EUA. Pessoas na Nigéria perceberam que sentiam que sua vida nunca iria valer o mesmo do que a de um branco. Mas, de alguma forma tudo, hoje isso se corrompeu.
P. Como?
R. Uma das fundadoras do movimento, Patrisse Cullors, se tornou bilionária com as mortes de outras pessoas e isso é inadmissível. Não digo que um ativista deva viver na pobreza, mas deve continuar comprometido e não se dedicar a comprar mansões na Califórnia. O movimento perdeu toda a credibilidade. Deveria ser fundado um novo.
P. Um partido político?
R. Algo maior. Algo que articulasse todos nós em todas as partes e de onde pudessem sair propostas políticas, claro. Estamos trabalhando nisso. Quando deixei o Partido dos Indígenas da República me uni a outro grupo e estamos trabalhando na recuperação da tradição pan-africana, do socialismo africano, de outra maneira de pensar o mundo. A única coisa que queremos é estabelecer conexões em todo o mundo e criar uma plataforma que represente a todos e permita lutar contra o desempoderamento, que é, sem dúvida, o principal problema.
P. Nesse sentido, as redes sociais são um aliado ou um inimigo?
R. São um pouco as duas coisas. Por um lado, permitem compartilhar conhecimentos. No TikTok começam a surgir grandes pensadores! Sim, sim, filosofia. Não é uma plataforma estúpida como as pessoas acham, de fato é muito menos do que outras do passado. De qualquer modo, a partir daí são criadas comunidades, e isso sempre é bom. A voz corre por todo o mundo. Mas, ao mesmo tempo, existe o risco da polarização. Quando alguém é cancelado, não há debate. E é assim porque as redes têm muito poder e é preciso tentar ser mais poderosos do que elas. Ou seja, o pensamento individual deve estar por cima, não seguir uma corrente.
P. Levando em consideração que você tem um pé na França e outro nos Estados Unidos, como vê a situação atual em cada um desses países?
R. Vejo muitos pontos em comum, evidentemente. A principal diferença é que os Estados Unidos foram uma colônia e a França não. E tudo é mais violento em um lugar colonizado. Mas o racismo não foi inventado nos Estados Unidos. Chegou com os colonos. E eles vinham da França e da Inglaterra, da Espanha e de Portugal. Vinham da Europa, que tende a ver a história da escravidão como algo longínquo quando fez parte dela e quando se fala de como enriqueceram graças a ela. É curioso. O sobrenome do policial que matou George Floyd é um sobrenome francês, Chauvin. Parece ironia do destino, mas diz muito de muitas coisas.
P. Em seus escritos você fala de “essência negra” no lugar de identidade negra. Por quê?
R. Por uma razão filosófica. Gosto muito do conceito de essência. Gosto do essencialismo. E acho que define muito melhor o que se sente sendo negro. Ou seja, é algo que faz parte de você, do que não pode escapar. Não é como conceito de gênero. É muito diferente. Não é performático. Estamos superexpostos à violência e à morte desde o momento em que nascemos por ser algo que não poderemos mudar. A ideia de essência se ajusta mais ao real. E, de qualquer modo, não é uma noção tão subversiva como se acredita. Era algo que já estava no ambiente. Eu só coloquei no papel.
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