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“Receita nega cidadania às novas configurações familiares”

Desde 2015, órgão protela mudança que permitiria cadastro de outro progenitor que não seja unicamente a mãe e corrigiria exclusão de famílias LGBTQIA+. Para especialistas, órgão viola lei ao alegar falta de verba para mudança

Marcela Tiboni com sua esposa Melanie e filhos.
Marcela Tiboni com sua esposa Melanie e filhos.ARQUIVO PESSOAL

Foi uma descoberta ao acaso. Há duas semanas, Marcela Rebelo Tiboni (São Paulo, 38 anos) leu o relato de um casal de mulheres que não conseguia acessar ao auxílio emergencial porque o sistema da Receita Federal indicava uma incoerência no cruzamento de dados. O problema? No cadastro do filho do casal, apenas uma delas constava como mãe. O sistema do Governo federal, que reúne os dados de todos os cidadãos através do CPF, vincula os dados do cidadão ao nome da progenitora materna, excluindo uma ampla gama de configurações familiares, como as famílias multiparentais, as com duas mães, com dois pais e até mesmo a de pais solteiros. Marcela então resolveu conferir se o mesmo se passava com seus filhos gêmeos, Bernardo e Iolanda, de dois anos, e, sim, seu nome não apareceu como mãe.

“Desliguei o celular e comecei a chorar”, contou ela ao EL PAÍS. Ato seguido, Marcela começou uma mobilização online sobre o tema. Pouco depois, o coletivo de Famílias LGBTQIA+ pôs em marcha um abaixo assinado para notificar extrajudicialmente o órgão estatal exigindo esclarecimentos sobre as normas que fundamentam o banco de dados do sistema e quais os outros órgãos que utilizam as mesmas informações.

O problema que constrange e até impede que essas famílias acessem alguns direitos, no entanto, não é novo. A falha é conhecida há pelo menos cinco anos pela Justiça Federal. É que em meados de 2015, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro instaurou um inquérito civil —uma investigação prévia—, cobrando explicações do órgão sobre a brecha discriminatória do sistema. Cinco anos depois, o inquérito segue em aberto.

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Nas respostas dadas aos questionamentos do MPF do Rio, a que o EL PAÍS teve acesso, a Receita Federal prometia a criação do sistema “Novo CPF” que supriria as lacunas, e permitiria o cadastro dos genitores de maneira mais fiel à realidade. Entretanto, desde 2016 sua implementação tem sido constantemente protelada por restrições orçamentárias sucessivas. Em 2020, dentro do mesmo inquérito, o órgão federal informou que a mera substituição do termo “nome da mãe” para filiação junto ao seu sistema custaria aos cofres públicos 2.627.000,00 reais e que, diante dos custos elevados e das restrições orçamentárias, não se vislumbra a adaptação à curto prazo.

Letícia Kreuz, advogada e doutora em direito pela UFPR e professora de direito constitucional no Centro Universitário UniBrasil, explica que o custo apontado pela Receita é irrisório em comparação ao orçamento do órgão. Para 2020, o orçamento aprovado foi de 1,8 bilhões de reais, de modo que o custo apontado para a retificação do sistema não chegaria nem perto de custar 1% do total destinado ao órgão. “De fato, infelizmente os recursos públicos são limitados e o orçamento nacional não consegue garantir todos os direitos sociais preconizados na Constituição. No entanto, aqui há uma situação de acesso básico aos direitos, acesso básico ao próprio Estado”, diz Kreuz.

Já a advogada e professora de direito civil da UFPR Ana Carla Harmatiuk Matos explica que a Receita não pode adiar a questão. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, que as famílias com cônjuges do mesmo sexo têm direito a tudo que qualquer outra família têm, de modo que o preenchimento dos dados pela Receita Federal, tal como está, implica em um claro descumprimento da lei. “Havendo a previsão constitucional, e neste caso, ainda uma decisão do STF, nenhuma decisão, mesmo que administrativa ou de cadastro pode ser contrária à Constituição e à decisão da Suprema Corte”, diz. Matos é enfática. “Desculpas orçamentárias não são válidas em casos como este. A presente situação envolve um cidadão que deixa de ser reconhecido em suas individualidades pelo Governo e o maior prejudicado será a criança. Quando se fala em proteção do menor, deve-se somar, e nunca dividir”.

Kreuz reitera que em casos como estes, a Receita Federal é o agente estatal que está em contato direto com o indivíduo que precisa do atendimento do Estado. “O valor justificado pela Receita é um custo muito baixo para se dar dignidade a uma parcela da população. Ao não corrigir a lacuna no sistema, o Estado ignora essas pessoas, é como se elas não existissem. Nega a própria dimensão de cidadania e isso é muito grave”, lamenta.

Questionada pelo EL PAÍS, a Receita Federal disse que não se manifestará sobre o assunto. Questionada por outros veículos de imprensa, a Receita Federal emitiu uma nota: “A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil disponibilizou acesso a todos os dados do Cadastro de Pessoa Físicas para a concessão do auxílio emergencial pelo Ministério da Cidadania, incluindo dados de filiação independentemente do sexo. A Receita Federal entrou em contato com esse ministério no intuito de colaborar para a solução mais rápida dos casos apontados pela jornalista”.

Marcela Rebelo Tiboni conta que, na certidão de nascimento dos filhos que têm com sua mulher, Melanie, já constam os CPFs das crianças, graças a uma regra de 2017. “Como no documento, consta nossos nomes e o CPF de meus filhos, sempre presumi que o cadastro deles seguiria a mesma lógica. Por que eu haveria de duvidar da Receita?”. A advogada Ana Carla Harmatiuk Matos esclarece que, apesar das incongruências no cadastro do sistema federal, a certidão de nascimento prevalece, sendo que todos os mencionados no documento têm o exercício do poder familiar, e que, ainda assim todos os documentos e cadastros devem ser ajustados. “Me preocupo com o futuro de meus filhos. Qualquer ficha, seja para votar, fazer passaporte, se inscrever no vestibular exige a indicação do nome da mãe, e essa não poderá ser uma opção para eles. A escolha já foi feita pelo Estado. Se para os meus filhos eu não sou pai, e para o Estado eu não sou mãe, eu sou o que então?”, finaliza Marcela.

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