Elitismo prejudica debate sobre clima
Estudo coordenado pela agência Purpose recomenda incluir brasileiros de baixa renda no debate sobre sustentabilidade e aponta argumentos e narrativas para dialogar com aqueles que já vivem as consequências do caos climático
O Brasil é importante estrategicamente nos debates sobre o futuro do planeta por ser o principal responsável legal por biomas importantes, especialmente a floresta amazônica. Mas há um segundo protagonismo no caso brasileiro: o país já foi afetado por um evento climático de longa duração e portanto os brasileiros já conhecem as consequências desse fenômeno.
A partir de meado do século passado, aproximadamente 20 milhões de camponeses analfabetos abandonaram a zona rural nordestina. Eles não foram motivados a migrar em busca de modernidade, de educação, mas saíram porque já não conseguiam sobreviver pela lavoura e pela pecuária.
O antropólogo Gilberto Velho, precursor dos estudos antropológicos sobre as cidades no Brasil, classificou a migração causada pela seca nordestina como sendo o evento social mais importante do país no século XX. As cidades abrigavam 30% dos brasileiros em 1950; no final do século XX, 80% da população morava em áreas urbanas. Nasce aí o Brasil dos problemas de mobilidade urbana (poluição, estresse), da falta de infraestrutura de esgoto e coleta de lixo (alagamentos, contaminação) e também a explosão da violência e o surgimento de organizações grandes e complexas ligadas ao crime e à religião.
O Brasil do início do século XXI é a paisagem provável do mundo no século seguinte, quando fenômenos climáticos forçarem o desenraizamento e o deslocamentos de grandes populações para as periferias das cidades. No cenário conservador apresentado em A terra inabitável (Cia das Letras, 2019), o jornalista David Wallace-Wells apresenta cenários em que as mudanças climáticas provocarão o deslocamento de 600 milhões a 2 bilhões de refugiados até o final do século.
O clima como assunto dos intelectuais
Se a terra fosse um carro, os cientistas seriam faróis indicando que estamos nos dirigindo em alta velocidade para um abismo. A surpresa é que o motorista e os passageiros —líderes políticos, empresariais e a sociedade— não estão reagindo da forma que deveriam considerando a catástrofe que afetará todo mundo.
Uma pesquisa recente coordenada pela agência Purpose e realizada pela Behup, uma startup de pesquisa, sugere que brasileiros pobres podem ser mobilizados para atuar em defesa da sustentabilidade. Eles são mais da metade da população do país e sabem na pele como vai ser o mundo no futuro, porque eles representam mais da metade da população e já vivem os efeitos da catástrofe climática. Mas para isso funcionar, nós temos que partir das referências e das experiências deles em relação a esse assunto.
Um problema real, atual e econômico
A seguir, estão listados alguns insights sobre como populações menos privilegiadas percebem e falam sobre sustentabilidade.
1) Real e atual - Nos debates científicos sobre o aquecimento global, as consequências virão em algum momento do futuro, mas no Brasil popular ele é palpável e acontece hoje. O alagamento —causado pelo aumento ou pela irregularidade das chuvas— é a maneira mais evidente como o caos climático se mostra para essas pessoas. E ele aponta para dois problemas reais: a falta de infraestrutura de escoamento de água da chuva e a falta de serviços regulares de coleta de lixo. Outro problema é causado pelo clima seco, que acentua os casos de doenças respiratórias —relativamente fáceis de serem tratadas pela medicina, mas complicadas para quem depende do atendimento público.
2) O lixo tangibiliza o problema. Quando o pobre urbano fala sobre sustentabilidade, a primeira associação é com o lixo. Lixo coletado sem regularidade pelo serviço público nas periferias, muitas vezes descartado nas ruas — o “papel de bala” jogado no chão, lixo dispensado fora de hora e espalhado na rua por gatos, cachorros e outros animais. O problema do lixo materializa esse assunto para quem vê o lixo acumulado, a coleta irregular de dejetos, sacos de lixo resgados e espalhados nas ruas por animais; o impacto de se viver em locais sujos, desprezados pelos governantes; lixo que se acumula em espaços sem iluminação pública e que são ocupados por assaltantes ou por traficantes.
3) A metáfora do consumismo predatório. O lixo representa ou metaforiza a sociedade de consumo que descarta o que ainda é útil. O lixo talvez seja algo “naturalizado” para as camadas urbanas médias e altas, mas isso é menos claro para vem de uma lógica de reuso —o lixo orgânico alimenta os animais, a lata vira lamparina, a garrafa PET tem mil e uma utilidades. Para alguns respondentes do estudo, é moralmente incômodo descartar aquilo que pode ser reutilizado. Classificar algo como “lixo” é uma decisão, uma escolha, que mostra uma percepção sobre desperdício e responsabilidade conjunta para cuidar do lugar em que se vive.
4) Ser sustentável é ser econômico. Geralmente ouvimos falar da preservação do meio ambiente como algo que tem uma motivação altruísta: “zelar pelo futuro das crianças, das florestas etc.” Mas essa abstração não é prioridade para quem vive em situação de vulnerabilidade e está preocupada com o que vai acontecer amanhã. De onde vem o alimento, o emprego, o remédio; como se defender do crime, o que fazer em relação à escola fechada, por exemplo. Para esse brasileiro, sustentabilidade é uma boa ação que traz vantagem econômica. Plásticos e latas podem se tornar utensílios e brinquedos. Usar lâmpadas LED e controlar o uso da água diminuem os gastos. Pneus, tijolos e outros produtos de demolição são mais baratos para quem quer construir. E finalmente há o tema do trabalho: recolher lixo reciclável é uma fonte de renda para quem não tem outra fonte de renda.
O tema da sustentabilidade geralmente é debatido em círculos intelectualizados entre brasileiros das camadas médias e altas. O brasileiro pobre não é convidado a participar dessa conversa, pelo preconceito que associa baixa escolaridade a incapacidade de pensar e entender o mundo. Mas em um mundo com muito mais pobres do que ricos, essa discussão se fortalecerá se dialogar com as milhares de pessoas —no Brasil e no mundo— que já vivem as consequências do caos climático.
Estudo de caso
No início do mês de junho, portanto, pouco tempo depois de eu escrever este artigo, recebi pelo WhatsApp o vídeo incluído adiante, feito pela ativista Duda Salabert, vereadora em Belo Horizonte, sobre instalação de uma mineradora da empresa Tamisa na Serra do Curral, próxima à capital mineira. O vídeo argumenta que a mineração afetará as nascentes de água que servem a cidade, levantará poeira causando problemas respiratórios na população de BH, particularmente para uma comunidade/bairro chamado Taquaril, que fica a três quilômetros de onde o empreendimento será instalado caso seja aprovado.
O vídeo tem argumento convincente, imagens registradas por drone para dar ideia das distâncias entre os locais indicados. Fui mobilizado e por isso, parei o que estava fazendo e repassei o vídeo para… ambientalistas amigos meus — já me desculpando por achar que eles possivelmente já conheciam a situação ou teriam recebido o vídeo de outras pessoas. Mas escrevendo as mensagens, examinei como o argumento do vídeo — à luz do que eu mesmo escrevi acima — é feito para circular entre pessoas das camadas médias e altas, principalmente mais escolarizadas e identificadas com valores progressistas.
A vereadora Duda, em um trecho do vídeo, aponta para a comunidade/bairro do Taquaril e diz que os moradores não foram ouvidos mas sofrerão diretamente os impactos ambientais da mineração. Para a vereadora, essa atitude configura um caso de “racismo ambiental”. Esse argumento é convincente e deve soar “natural” para leitores e leitoras do EL PAÍS, mas falar dessa forma:
- Compara esse bairro pobre ao recurso natural, sugerindo passividade dos moradores, como se eles não tivessem capacidade —por falta de estudos e situação econômica adversa— para participar do debate.
- Ao fazer isso, os criadores do vídeo cometem o mesmo erro que estão denunciando, que é não envolver os moradores nesse debate.
Debater com os moradores do Taquaril, visitar o bairro e conversar com líderes comunitários. Mas escutar como pessoas comuns como eles percebem o empreendimento minerador — inclusive considerar a possibilidade de que a mineração abrirá oportunidades de emprego para várias dessas famílias. E, a partir dessa conversa interessada, atenta e continuada, que procura entender o problema a partir da ótica dessas pessoas, dialogar com elas sobre o assunto, conforme este artigo propõe.
O movimento ambientalista está se dando conta que precisa dialogar com outras audiências se quiser —mais do que ter razão— ser eficiente e produzir os resultados que mitigarão o caos climático. O caso da Serra do Curral em BH mostra como essa reflexão é urgente; se essa mudança de atitude não acontece em relação a um problema que acontece tão próximo a uma cidade grande, como então agir em relação ao que acontece nos rincões do país?
Juliano Spyer é antropólogo digital, escritor e educador. Mestre e doutor pela University College London, é autor de Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam (Geração Editorial), entre outros livros. Este texto foi publicado originalmente aqui.
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