_
_
_
_
_
Pandemia de coronavírus
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O Ministério da Saúde sob intervenção militar

Bolsonaro atravessa a maior tragédia sanitária das nossas vidas provocando morte, derrubando ministros populares, enfrentando governadores e prefeitos populares, e, ainda assim, avançando na ocupação bolsonarista do Executivo

Os ex- ministro da Saúde do Governo Bolsonsro, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, em 17 de abril, quando Teich tomava posse.
Os ex- ministro da Saúde do Governo Bolsonsro, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, em 17 de abril, quando Teich tomava posse.Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Mais informações
Police officers are seen in front of Laranjeiras Palace, Rio de Janeiro Governor Wilson Witzel's residence during a corruption investigation involving the use of public money destined to fight the coronavirus disease (COVID-19) outbreak in Rio de Janeiro, Brazil, May 26, 2020. REUTERS/Pilar Olivares
AO VIVO | Últimas notícias sobre o coronavírus e a crise política no Brasil
Supporters of Brazil's President Jair Bolsonaro wear face masks amid the new coronavirus pandemic decorated with his image during the president's departure from his official residence, Alvorada palace, Brasilia, Brazil, Monday, May 25, 2020. (AP Photo/Eraldo Peres)
Cientistas brasileiros vivem pesadelo em meio à politização da cloroquina
A man gestures as supporters of Brazil's President Jair Bolsonaro protest near the house of Sao Paulo's Governor Joao Doria against quarantine measures amid the coronavirus disease (COVID-19) outbreak, in Sao Paulo, Brazil, May 24, 2020. REUTERS/Amanda Perobelli
Bolsonaro insistiu em reduzir controle de armas quatro vezes na pandemia para “armar população”

Há uma pergunta no ar: Bolsonaro cairá diante de um impeachment ou os militares renderão a República através de um golpe?

Há evidências para lidarmos com esta pergunta. No Ministério da Saúde, por exemplo, o bloco militar no poder conduziu, blefando com a atual epidemia pelo coronavírus e fritando técnicos, a ocupação da pasta para finalmente transformá-la em caserna.

A queda de Luiz Henrique Mandetta não representou apenas a saída de um ministro, mas a rendição de toda uma estrutura no Executivo. Na Saúde, é hoje evidente o uso de táticas e estratégias de ocupação por parte do bloco militar no poder, ocupação que não será temporária. Encadeiam-se, abaixo, alguns acontecimentos que não estão recebendo a devida atenção da opinião pública.

Mandetta era um ministro discreto, de bom trânsito entre os poderes da República e pelas estruturas que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS). Ainda que operasse retrocessos para o Sistema de Saúde, sempre o fez por dentro das regras do jogo, da institucionalidade vigente. Com a chegada da epidemia pelo coronavírus (SARS-CoV-2) ao Brasil, diante do risco sanitário e do temor de colapso do sistema, Mandetta vestiu a jaquetinha do SUS. O ministro usou as suas credenciais de operador do sistema vigente e habilidades políticas para liderar uma resposta à epidemia pelo SARS-CoV-2 que foi, no mínimo, responsável. Mandetta passou a se apoiar nas evidências científicas e experiências logísticas dos principais sistemas de saúde do mundo para planejar ações. O ministro fazia comunicados diretos e diários sobre o avanço da epidemia no território nacional e dos trabalhos de resposta do SUS. Mesmo que as notícias não fossem fáceis e as ações, acanhadas, Mandetta conduzia com segurança o processo e tornou-se popular. Sua condução chegou a ser aprovada por 76% dos brasileiros.

Se por um lado a consistência técnica e política era reconhecida pela população, por outro o presidente Bolsonaro desqualificava diariamente o ministro Mandetta. Dizia à imprensa que ninguém é insubstituível, que o ministro se comportava como uma estrela, que queria ‘aparecer’. O processo de fritura do ministro operado pelo presidente durou cerca de dois meses com capítulos diários veiculados nas mídias, criando-se uma espécie de torcida por um ou por outro. Por fim, ainda bastante popular, Mandetta caiu.

Contrariando a expectativa de muitos, que esperavam uma queda na popularidade de Bolsonaro e uma mudança no seu discurso, nada passou a ser diferente. O presidente convidou outro ministro técnico, por ser médico, Nelson Teich. Este, contudo, tinha pouco traquejo político e era um ‘corpo estranho’ às estruturas institucionais do SUS. Teich seguiu as principais diretrizes apontadas anteriormente por Mandetta, e Bolsonaro seguiu fritando-o, deslegitimando a sua condução. Teich entrou em abril e pediu exoneração em maio, tão cabisbaixo quanto entrou.

Teich não era do métier, não tinha equipe. Assumiu no dia 17 de abril e ficou com parte da equipe técnica anterior, realocou alguns nomes e nomeou outros. Na secretaria-executiva da Saúde, secretaria tida como a mais importante por ser o centro operador de toda a pasta, manteve José Gabbardo dos Reis, secretário indicado por Mandetta, durante cinco dias. Em 22 de abril, no dia do ‘descobrimento’ do Brasil e da fatídica reunião ministerial, o general Eduardo Pazuello foi nomeado no seu lugar. Com experiência em logística e ações de emergência no Exército, Pazuello vinha chancelado por ter coordenado operacionalmente a Força-Tarefa Logística Humanitária Operação Acolhida, em Roraima, que tinha por objetivo realocar no Brasil cidadãos venezuelanos em fuga do seu país natal; outra chancela importante foi a do próprio presidente Jair Bolsonaro, com quem o general tinha conversado no dia anterior, por mediação dos ministros militares do Governo.

Entre 22 de abril e 13 de maio de 2020, Teich nomeou sete militares para cargos estratégicos no Ministério da Saúde. Contraposto, nas coletivas de imprensa, quanto à militarização do ministério, o ministro respondia, contrariado, que os militares cumpriam uma função temporária durante a resposta à epidemia e logo voltariam ao Exército. Contudo, entre os secretários estaduais e municipais de saúde, já estava claro que Teich não dava as cartas no ministério, parecia perdido e não tinha respostas consistentes nas reuniões interfederativas. Em 15 de maio, Teich caiu e assumiu o ministro interino Eduardo Pazuello. Entre 15 de maio e 20 de maio, Pazuello nomeou mais 13 militares para cargos estratégicos e agora, em 22 de maio, Bolsonaro declarou vida longa ao novo ministro, pois a gestão civil do ministério “não deu certo”.

O Ministério da Saúde (MS) está hoje sob intervenção militar. É mais uma entre tantas outras pastas do Executivo federal sob ocupação militar. Entretanto, é importante chamar a atenção para algumas nuances preocupantes dessa chegada militar ao MS. Primeiro: a Saúde é historicamente ocupada por gestores civis e técnicos, quase todos médicos, alguns com formação em Saúde Pública. A segunda nuance, já indicada anteriormente, é que até mesmo neste Governo, a Saúde era, até abril de 2020, a pasta mais preservada. A condução era civil e, ainda que operasse retrocessos para o SUS, tudo era feito por dentro da institucionalidade vigente há pelo menos três décadas. A terceira nuance, a que mais preocupa, é que Bolsonaro e o seu bloco militar conseguiram operar essa ocupação sob muita tensão. O presidente atravessa a maior tragédia sanitária das nossas vidas provocando morte, colhendo e desdenhando dessas mortes, derrubando ministros populares, enfrentando governadores e prefeitos populares, e, ainda assim, avançando na ocupação bolsonarista do Executivo federal. Neste mês de maio, quando se esperava a derrocada de Bolsonaro pela sua responsabilização quanto à nossa tragédia sanitária, ele e sua tropa avançam sobre o Ministério da Justiça, sobre a Polícia Federal e sobre o Ministério da Saúde. Parece alguma criatura mítica que se alimenta de mortes e destruição, que se fortalece com a tragédia. Que forças podemos opor ao seu avanço?

Leandro Augusto Pires Gonçalves é professor da Universidade Federal Fluminense, no Instituto de Saúde Coletiva, Departamento de Saúde e Sociedade.

Informações sobre o coronavírus:

- Clique para seguir a cobertura em tempo real, minuto a minuto, da crise da Covid-19;

- O mapa do coronavírus no Brasil e no mundo: assim crescem os casos dia a dia, país por país;

- O que fazer para se proteger? Perguntas e respostas sobre o coronavírus;

- Guia para viver com uma pessoa infectada pelo coronavírus;

- Clique para assinar a newsletter e seguir a cobertura diária.

Registre-se grátis para continuar lendo

Obrigado por ler o EL PAÍS
Ou assine para ler de forma ilimitada

_

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_