Embates na fronteira com a Venezuela colocam Brasil numa encruzilhada diplomática
Mourão e Araújo vão à Colômbia tratar da crise no país vizinho que respingou em Pacaraima e tem potencial de acender barril de pólvora. Apoio do Governo Bolsonaro a ação humanitária põe em risco tradição da diplomacia
As virtudes diplomáticas do vice-presidente Hamilton Mourão estão à prova na mediação da crise com a Venezuela que respingou em Pacaraima neste final de semana. A cidade na fronteira do Brasil ficou em intensa adrenalina durante o sábado e domingo ao servir de passagem para dois caminhões de ajuda humanitária que chegariam aos venezuelanos neste sábado. Houve barreira de soldados chavistas, deserção de alguns militares, compatriotas em solo brasileiro jogando pedras contra a barreira chavista, e o revide com bombas de gás lacrimogênio. "Nunca vi Exército de outro país jogar bomba de gás lacrimogênio no Brasil", afirmou à rede Globo o coronel do Exército José Jacaúna, que integra a chamada Operação Acolhida.
A surpresa de Jacaúna mostra o nível de tensão que se instalou na cidade fronteiriça de Roraima, num dos momentos mais preocupantes do continente nos últimos tempos. No sábado, quatro pessoas foram mortas por forças chavistas na cidade de Santa Elena de Uairén, a 15 quilômetros de Pacaraima, quando tentavam se aproximar da fronteira com o Brasil para receber a ajuda humanitária destinada aos venezuelanos. Depois de ataques tão próximos, especialistas veem com apreensão o desenrolar da crise. “O perigo ali na fronteira dos dois países são as faíscas que podem se formar num quadro extremamente delicado”, diz Rafael Villa, cientista político venezuelano que vive no Brasil há 25 anos.
Leia-se por faísca qualquer situação que avance para um ataque ao Brasil e que acenda a pólvora de um conflito onde entrariam outros protagonistas de peso, como os Estados Unidos, que pressionam pela saída de Nicolas Maduro, e Rússia, que apoia o sucessor de Hugo Chávez. “Este é um conflito com capacidade de se tornar internacional rapidamente, com envolvimento de grandes potências, e aí a destruição é garantida, num conflito que não é nosso”, sublinha Dawisson Belem Lopes, professor de Política Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Com o Brasil no meio dessa potencial reedição da guerra fria, Mourão seguiu para a Colômbia neste domingo junto com o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, onde se reunirão com outros presidentes da região e com Juan Guaidó, que ganhou o apoio de 50 países ao se autoproclamar presidente interino da Venezuela, em desafio a Maduro. O chanceler esteve em Boa Vista e Pacaraima ao lado de María Teresa Belandria, a embaixadora venezuelana designada pelo presidente interino Juan Guaidó para o Brasil. A diplomacia internacional vê um claro contraste entre o general da reserva, vice do presidente Jair Bolsonaro, e Araújo. Enquanto o primeiro conta com o traquejo da ações internacionais, seja em missão de paz no Haiti ou como adido militar na Venezuela, o chanceler abraça uma linha que representa uma quebra com a tradição diplomática brasileira de ser um agente conciliador, segundo especialistas. Neste sábado, ele chegou a divulgar um vídeo afirmando que um caminhão de mantimentos que estava em Pacaraima havia atravessado a fronteira e alcançado terreno venezuelano, dando a entender que furara o bloqueio de guardas chavistas para levar a ajuda. A informação, no entanto, não procedia de todo, pois o veículo ficou numa área neutra entre os dois países e não avançou. Outro caminhão, de porte pequeno também chegou ao mesmo ponto, mas os dois precisaram dar meia volta sem levar a carga de medicamentos e alimentos – a maioria vinda dos Estados Unidos e uma parte do Brasil – para o outro lado da fronteira. “Não dá para imaginar jamais que um diplomata da velha cepa tomasse esse tipo de atitude incitando a população, fazendo vídeos da fronteira. Não tem propósito prático, é um engajamento que me parece leviano”, diz Lopes, da UFMG.
Em entrevista à BBC na semana que passou, Mourão optou por um tom mais ameno. “Nós jamais entraremos em uma situação bélica com a Venezuela, a não ser que sejamos atacados, aí é diferente”, diz ele. “Mas eu acho que o Maduro não é tão louco a esse ponto”, concluiu o general da reserva. O vice se manteve discreto ao longo do final de semana, assim como o próprio presidente Jair Bolsonaro. Contumaz tuiteiro, evitou falar da Venezuela mesmo quando foram registradas quatro mortes perto de Pacaraima. Tuitou sobre placas solares na região do São Francisco ou vagas no Exército, e nenhuma palavra sobre Maduro. Bem diferente de outros mandatários da região, como o presidente da Colômbia Ivan Duque, e do Chile Sebastián Piñera, que se reuniram com Guaidó em cidade colombiana de Cúcuta, onde houve um show em apoio aos venezuelanos, e que passaram o final de semana criticando Maduro nas redes sociais. Ernesto Araújo, contudo, esteve ali, e representou o Brasil na reunião entre os presidentes. “Ayuda y libertad!" Em Cúcuta, Colômbia, fronteira com a Venezuela, em reunião com os Presidentes da Colômbia, Chile e Paraguai e líderes venezuelanos. Grande momento de mobilização internacional pela Venezuela e apoio ao governo legítimo de Guaidó”, tuitou ele.
Até o momento, os militares brasileiros têm demonstrado bastante cautela com a operação de ajuda humanitária à Venezuela. Segundo a edição deste sábado do jornal Folha de S. Paulo, a própria definição do papel do Brasil na ação humanitária dividiu opiniões no Governo. De acordo com o jornal, Bolsonaro pediu reunião com os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e David Alcolumbre, respectivamente, para saber se o Brasil deveria enviar a ajuda humanitária à Venezuela. O encontro incluía seleto grupo de ministros de confiança e o presidente do STF, Dias Toffoli. Maia e os militares eram contra a participação do Brasil, segundo a Folha. Os demais foram favoráveis.
Ainda, segundo a Folha, os generais Santos Cruz e Augusto Heleno temiam emitir sinais equivocados caso o Brasil se envolvesse na crise da Venezuela neste momento, alertando que o país poderia estar sendo usado como isca para fomentar conflito e dar margem a uma intervenção militar dos Estados Unidos na Venezuela. Bolsonaro então teria se comprometido a não autorizar o ingresso de tropas americanas pelo território brasileiro e determinou que só liberaria o carregamento de mercadorias se todos os veículos e motoristas fossem venezuelanos. A contribuição material do Brasil também foi pequena. A grande maioria da ajuda humanitária foi doada pelos Estados Unidos. Mesmo com toda a prevenção, o temor é que a situação saia do controle, ainda mais com a pressão por uma eventual intervenção militar ansiada por Guaidó, que custaria bem pouco para os Estados Unidos, por exemplo, mas traria um risco incalculável para o continente e para o Brasil.
Por ora, a paciência dos militares que atuam em Pacaraima está sendo testada com relativo sucesso. Neste domingo, venezuelanos em território brasileiro lançaram pedras e outros objetos por uma meia hora contra os soldados da Guarda Nacional Bolivariana que formaram uma barreira para impedir a passagem da ajuda humanitária para a Venezuela. Houve também queima de objetos no interior de um posto militar venezuelano, segundo a agência AFP. Os militares chavistas, que se encontravam um pouco distantes do limite com o Brasil, decidiram chegar mais perto do solo brasileiro e atiraram as bombas de gás. Militares brasileiros, então, isolaram os manifestantes para evitar confronto, contou a correspondente do EL PAÍS Naiara Galarraga, o que esfriou os ânimos naquele momento. A dúvida é até quando é possível manter esse controle da situação.
Para Rafael Villa, o Brasil acabou indo a reboque dos Estados Unidos ao oferecer suporte na ação de ajuda humanitária. “Esperava-se que o Brasil assumisse um papel de responsabilidade, não o de ceder às pressões americanas, indo à fronteira”, diz ele. “Isso reafirma um papel diplomático secundário, demonstrando que a diplomacia brasileira está sem norte”, avalia o venezuelano, pós doutor por Columbia. Sem o papel de mediador de outrora, o país deixa um vácuo na região que desequilibra o jogo político.
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