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Pandemia de coronavírus
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Combate à tortura poderia diminuir os efeitos da pandemia nas prisões brasileiras

Está nas mãos do STF o restabelecimento do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, enfraquecido por Bolsonaro

Belisário dos Santos Júnior Marina Dias
Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, zona oeste de Sao Paulo (Brasil).
Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, zona oeste de Sao Paulo (Brasil).Sebastião Moreira (EFE)
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Epidemiologista da Casa Branca calcula que EUA poderão ter 200.000 mortes por coronavírus

Num cárcere paraense, um “calabouço da tortura” no qual presos, em contato direto com esgoto, bebiam água da privada e temperaturas chegavam a 40ºC. No Ceará, agentes federais quebravam dedos de detentos em cadeias sob intervenção. No Amazonas, rebeliões em quatro diferentes unidades prisionais tiveram como desfecho o assassinato de 55 pessoas sob custódia do Estado. De volta ao Pará, no Centro de Recuperação Regional de Altamira, mais 57 mortes num dos maiores massacres em presídios da história do Brasil.

O ano de 2019 mostrou mais uma vez que a violência marca a rotina dos estabelecimentos de privação de liberdade, especialmente das unidades prisionais. Assegurar a dignidade das pessoas que perderam temporariamente o direito de ir e vir é a razão de existir do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT): órgão independente, criado por lei em 2013, responsável por monitorar prisões, locais de acolhimento de crianças e idosos, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas e unidades de cumprimento de medidas socioeducativas. A partir da fiscalização que pode se dar in loco, o Mecanismo elabora relatórios, propõe recomendações e políticas públicas a fim de evitar penas e tratamento degradantes. Somente em tempos recentes, os peritos do MNPCT visitaram 169 locais de privação de liberdade, emitindo impressionantes 2.077 recomendações.

Entre as requisições recorrentes feitas pelo órgão sempre estiveram o acesso regular a água e melhorias na estrutura de saúde de estabelecimentos de privação de liberdade. Hoje tais exigências tornaram-se fundamentais para minorar os impactos iminentes da Covid-19 nos presídios brasileiros, cujas condições de insalubridade, incidência de doenças infectocontagiosas e déficit de vagas prometem potencializar os estragos da pandemia. Roraima, por exemplo, que possui a maior superlotação carcerária do Brasil, tem quatro vezes mais presos que a capacidade de suas unidades. Ali, na Cadeia Pública Masculina de Boa Vista e na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, não há sequer água encanada para consumo humano, como revelam documentos oficiais cujas informações foram publicadas pelo site The Intercept Brasil.

Como lembrou o Ministro do STF, Marco Aurélio Mello, no Brasil, o combate à tortura nunca foi exatamente um tema “campeão de audiência”. Contudo, desde que o atual governo assumiu, o MNPCT se encontra sob fogo cerrado. Infelizmente, o peso do cargo que ocupa não serviu de freio aos apetites autoritários do atual presidente da República, que durante toda a sua vida pública jamais escondeu a admiração por torturadores e violadores dos direitos humanos. Em junho passado, Bolsonaro formalizou de vez seu desprezo pela pauta da erradicação da tortura ao propor um decreto que, dando nova regulamentação à lei 12.847/2013, cortou a remuneração dos 11 peritos do Mecanismo, tornando-os voluntários, ademais de enfraquecer a sua independência financeira e funcional. Não há dúvidas de que a intenção foi o desmantelamento do mais importante órgão anti-tortura do país.

Agora em março (19) o IDDD - Instituto de Defesa do Direito de Defesa e a Comissão de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns protocolaram pedido de ingresso como amicus curiae na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 607, de autoria da Procuradoria Geral da República (PGR) perante o Supremo Tribunal Federal (STF) cujo objetivo é suspender os efeitos do decreto. O amicus curiae ou “amigo da corte” é o instrumento jurídico que permite que entidades com reconhecido acúmulo de trabalho sobre determinado tema compartilhem conhecimento (dados, estudos e experiência) com o tribunal, para informá-lo sobre assunto de interesse público em debate, e assim auxiliar a Corte a fundamentar sua decisão.

Agora está nas mãos do STF dar efetividade às recomendações constantes do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade e ao compromisso assumido soberanamente pelo Brasil em 2007, quando o país ratificou o Protocolo Facultativo à Convenção da ONU Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

Em dezembro passado, o Subcomitê da ONU para a Prevenção da Tortura emitiu parecer afirmando que o decreto presidencial sobre o Mecanismo enfraquecia severamente a política relacionada ao tema no Brasil. A avaliação das Nações Unidas aponta para a colidência do decreto de Bolsonaro com o que estabelecem nossa Constituição e as leis e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. A petição alerta não só para a ilegalidade do decreto mas também contra o risco de retrocesso nesse tema e em relação a outros direitos fundamentais. Ou seja: mais uma vulneração à letra da Constituição que veda o retrocesso social.

O “nunca mais!” que inaugurou nossa democracia denunciava uma série de expedientes perversos que marcaram a ditadura militar, os quais incluíam, como se sabe, a tortura. Sua sobrevivência a estes mais de 30 anos mostra o quão inconcluso é nosso processo de redemocratização, que deveria ter começado pelo compromisso de toda sociedade - e principalmente de suas autoridades públicas - com a erradicação desse mal, uma das maiores lembranças do período autoritário. A tortura é uma chaga aberta em todas as democracias, mas especialmente no Brasil, onde ainda falta por parte das instituições enfrentamento firme e contundente. Não ao retrocesso. Tortura nunca mais.

Belisário dos Santos Júnior é membro-fundador da Comissão de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns. Marina Dias é diretora executiva do IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa

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