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Escândalo de corrupção na família de Erdogan corrói a popularidade do presidente turco

Suspeitas continuadas de corrupção, vazamentos e deserções no campo governamental, junto com uma má gestão econômica, levam o apoio ao mandatário ao seu menor nível histórico

À direita, Kemal Kiliçdaroglu, líder da principal força de oposição da Turquia, o Partido Republicano do Povo (CHP, centro-esquerda), posa com o líder do pequeno Partido da Felicidade (SP, islâmico e de oposição), Temel Karamollaoglu. As duas formações negociam a criação de uma frente com seis partidos de oposição ao presidente Recep Tayyip Erdogan.
À direita, Kemal Kiliçdaroglu, líder da principal força de oposição da Turquia, o Partido Republicano do Povo (CHP, centro-esquerda), posa com o líder do pequeno Partido da Felicidade (SP, islâmico e de oposição), Temel Karamollaoglu. As duas formações negociam a criação de uma frente com seis partidos de oposição ao presidente Recep Tayyip Erdogan.CAGLA GURDOGAN (Reuters)
Andrés Mourenza

As fissuras nos alicerces que sustentam o poder do presidente Recep Tayyip Erdogan começaram a se tornar visíveis. As defesas apaixonadas, os silêncios de quem se calava, a atuação em uníssono como um pulso firme —porque quem se mexesse não saía na foto— passaram a dar lugar a sonoras deserções, críticas públicas e vazamentos de documentos que comprometem a família do até agora todo-poderoso líder turco e do seu partido islâmico. Tudo isso num ambiente de crise e má gestão econômica, que deixou o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) com o menor índice de apoio popular em quase duas décadas governando a Turquia. Aproveitando-se disso, a oposição, cada vez mais unida, foi para o ataque.

“Exijo que descumpram os pedidos que saiam da lei. Vocês não podem se escudar no fato de terem recebido ordens. São honoráveis funcionários do Estado, não da família Erdogan […]. É o último aviso: a partir de segunda-feira, 18 de outubro, todo o apoio que derem a esta ordem ilegal será de sua responsabilidade.” Esta dura mensagem aos funcionários públicos, divulgada no último sábado pelo habitualmente comedido Kemal Kiliçdaroglu, líder da oposição de centro-esquerda, enfureceu o Governo. O próprio Erdogan respondeu que se trata de um “crime” e uma “ameaça” que busca a insubordinação dos servidores públicos.

O que motivou a nova postura agressiva da oposição foram as revelações de um novo escândalo envolvendo a família do presidente. Na semana passada, documentos internos da Fundação da Juventude da Turquia (TÜGVA), que tem Bilal Erdogan —filho do presidente— como um de seus principais dirigentes, foram revelados pela imprensa, supostamente por um membro da própria organização. Esses arquivos —aos quais o EL PAÍS também teve acesso— são compostos por cópias de correspondências com diversas autoridades municipais, provinciais e nacionais, planilhas de gastos e arrecadação, registros de propriedade, currículos e listas de membros da fundação recomendados para ocupar posições no Estado, da direção de escolas a diversos escalões das Forças Armadas e a polícia.

O presidente da TÜGVA, Enes Eminoglu, inicialmente negou a veracidade dos papéis, nas no dia seguinte admitiu que “poderia haver algo de certo neles”. A fundação foi criada em 2014 e rapidamente se tornou um dos principais administradores de residências estudantis na Turquia, em boa medida graças a ter recebido a gestão de numerosos imóveis expropriados dos seguidores de Fethullah Gülen depois da ilegalização do movimento que leva seu nome, como resultado de sua participação numa tentativa de golpe de Estado em 2016. A oposição acusa a TÜGVA de ter virado uma “estrutura de Estado paralela”, tal como eram antigamente os gülenistas, que procuravam se infiltrar na Administração para assegurar um progressivo controle dos órgãos decisórios.

Entre os documentos há, além disso, vários que revelam quais instituições públicas pagam os gastos das sedes da fundação, usando o dinheiro dos contribuintes e acordos pouco transparentes. Segundo documentos vazados a outros jornalistas, a TÜGVA também organizava a participação de mulheres integrantes da fundação ou esposas de dirigentes na versão local do popular concurso Quem quer ser um milionário?, exibido em um canal pertencente a um grupo dirigido pelo irmão de um dos genros de Erdogan.

“Isto é só a ponta do iceberg”, disse Tamer Özsoy, ex-diretor provincial da TÜGVA, entrevistado pelo canal Tele1: “Faço um apelo aos promotores da Turquia: processem todos os responsáveis, começando por mim. É preciso investigar a fundo esta questão”, afirmou. Segundo o analista Murat Yetkin, estas declarações, assim como os próprios vazamentos, são uma forma de se blindar. “Os burocratas de nível médio-alto costumam ser os primeiros a sentirem os ventos da mudança, e pode ser que estejam procurando conservar seus cargos depois de uma possível mudança no poder”, escreve o analista no seu site Yetkinreport.

Özsoy hoje está filiado ao Partido do Futuro, uma das duas cisões do governista AKP que migraram para a oposição nos dois últimos anos. O Partido do Futuro é dirigido pelo ex-premiê Ahmet Davutoglu, ao passo que o Partido da Democracia e do Progresso (DEVA) foi fundado por Ali Babacan, ex-ministro de Economia e Relações Exteriores.

Mas eles não foram os únicos a abandonarem o barco do Governo Erdogan nos últimos meses. O ministro da Educação, Ziya Selçuk, pediu para sair em agosto —supostamente incomodado com a influência de fundações e confrarias religiosas em sua pasta—, e dois vice-presidentes do Banco Central foram demitidos por se recusarem a participar com seu chefe de uma reunião com investidores. Ambos se opunham à política de corte de juros ordenada à instituição monetária por Erdogan, o que causou uma nova desvalorização da moeda local e dificulta o combate à inflação galopante que assola a população.

Após anos de silêncio, os grandes empresários também começaram a dar as caras. Na sexta-feira, esse caminho foi aberto por Ömer Koç, presidente do conselho de um dos maiores conglomerados do país, com uma crítica à gestão econômica. Na terça-feira, os dirigentes da principal entidade patronal, a Tüsiad, atacaram a falta de independência do Banco Central, a precária separação entre os poderes e a saída da Turquia do Convênio de Istambul contra a violência machista. “É interessante que grupos empresariais se sintam com vontade de falar publicamente. Será um novo sinal de confiança na oposição?”, pergunta-se o analista econômico Timothy Ash.

Ao mesmo tempo, organizações de esquerda e sindicatos convocaram uma manifestação unitária em defesa do emprego para o próximo domingo. Em meio a uma situação econômica cada vez mais crítica para a maior parte da população, os escândalos de corrupção, as imagens de esbanjamento e a ostentação de alguns dirigentes (que recebem vários salários públicos ao mesmo tempo) estão abalando o apoio a Erdogan e seu partido. As pesquisas indicam que a intenção de voto do AKP caiu em dois anos de 40% para 30% (aquém do apoio recebido na sua primeira vitória, em 2002), e também seus sócios de extrema direita perdem votos. Aquela metade do país que amava Erdogan é cada vez mais reduzida.

Inclusive empresas de pesquisas antes firmemente apegadas ao AKP criticam publicamente as pressões do partido. “Ontem publicamos uma pesquisa. Como não dava os resultados que o AKP esperava, ligaram-nos da direção do partido e nos acusaram de não respeitar critérios científicos nem éticos. Não nos surpreendeu”, denunciou no Twitter Mehmet Pösteki, diretor-geral da empresa ORC, que atribui a perda de apoio do AKP em parte justamente à tendência dos seus dirigentes a não a aceitarem a realidade, preferindo ao invés disso “desacreditar quem não lhes dá o que querem”.

Negociações da oposição

Uma das vantagens que Erdogan explorava até agora era a fragmentação da oposição, mas esta parece ter encontrado um caminho depois terem se unido para tirar várias prefeituras importantes das mãos do AKP. Desde o início de outubro, delegações de seis partidos de oposição negociam um itinerário para substituir o atual sistema presidencialista, aprovado num disputado referendo em 2017, por um novo regime parlamentarista que garanta uma efetiva separação de poderes.

Entre os principais partidos da oposição, o único que não participa destas negociações é o pró-curdo HDP, embora provavelmente se trate de um acordo tácito para evitar que o Governo possa criticar a oposição por se aliar com uma formação que mantém laços com o grupo armado PKK. Contudo, o HDP mantém reuniões bilaterais com os demais partidos de oposição e se mostrou de acordo com as linhas gerais pactuadas por estes. Por sua vez, o principal partido de oposição, o centro-esquerdista e nacionalista CHP, lançou uma proposta para negociar no Parlamento uma solução pacífica do conflito curdo, tendo o HDP como interlocutor principal.

A oposição turca, cada vez mais segura de si, já não discute mais como vencer Erdogan nas urnas, mas sim o que fará depois disso. O mais chamativo é, talvez, que a população começou a acreditar nisso: segundo o levantamento da empresa Metropoll, hoje pela primeira vez uma maioria (50%) antevê que Erdogan perderá as próximas eleições, contra 44% que consideram que deve vencer outra vez.

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