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As incógnitas do golpe turco

Um ano depois da sublevação militar, ainda existem perguntas sem resposta

Andrés Mourenza

Já se passou um ano do fracassado golpe de Estado contra o Governo da Turquia, mas ainda restam numerosas perguntas sobre o que aconteceu naquelas horas que abalaram o país euroasiático e causaram a morte de 248 pessoas leais ao Executivo (em sua maioria civis), 34 militares sublevados e deixaram mais de 2.000 feridos. Os julgamentos em andamento contra os militares envolvidos e a comissão parlamentar de investigação – na qual o partido islâmico governante, o AKP, possuía maioria absoluta para impor seu critério – não fizeram o suficiente para esclarecer os fatos e, ao invés de estabelecer o ocorrido entre a tarde de 15 de julho e a manhã seguinte, quando o golpe foi derrotado, se optou por acusações grandiloquentes e macroprocessos judiciais de conteúdo político.

O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, no dia de 10 de julho.
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, no dia de 10 de julho.OZAN KOSE (AFP)

Quem dirigiu o golpe?

O centro de operações dos golpistas se estabeleceu na base de Akinci, pertencente às Forças Aéreas e situada nos arredores da capital turca, Ancara. Para o Governo islâmico, quem supervisionou a sublevação foi Fethüllah Gülen, um clérigo exilado nos EUA que dirige uma vasta e secreta rede de seguidores que durante décadas se infiltraram na Administração. Até 2013 foi aliado do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, mas desde então são inimigos mortais. A oposição turca também acha que os gülenistas tiveram um papel indiscutível no levante militar, mas também acha que outras fações estiveram envolvidas. O partido socialdemocrata CHP afirma em um relatório que se tratou de “um golpe sob controle”: o Governo sabia sobre ele, mas deixou que acontecesse para aproveitá-lo politicamente.

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Por que o Governo e as tropas leais demoraram tanto para reagir?

Através de um oficial militar, os serviços secretos turcos souberam do plano golpista às 14h30, hora local (8h30 de Brasília) de 15 de julho de 2016, quase sete horas antes de que os tanques saíssem às ruas. Duas horas depois, o chefe dos serviços secretos, Hakan Fidan, alertou o escritório do chefe do Estado Maior, Hulusi Akar, mas este demorou mais de três horas para emitir um alerta às suas unidades. O Governo também não foi informado até o cair da tarde. Fidan, às 18h (12h de Brasília), se apresentou no escritório do chefe das Forças Armadas, com quem esteve reunido durante duas horas e meia, voltando depois ao seu escritório normalmente. Por volta das 23h (17h de Brasília), Akar foi sequestrado pelos golpistas e levado à base de Akinci.

O comandante das Forças Especiais, Zekai Aksakalli, se perguntou em um depoimento por que Akar não ordenou, como indicam os manuais, que todas as unidades do Exército ficassem encerradas em seus quartéis e o fechamento do espaço aéreo da Turquia, de modo que qualquer movimento suspeito ficasse evidente. O analista militar Metin Gürcan enumera três possíveis explicações para a estranha atitude de Fidan e Akar: “Uma, são incompetentes. Dois, subvalorizaram a capacidade de ação dos golpistas. Três, demonstraram uma clara falta de cálculo ao pensar: ‘vamos deixá-los agir, assim iremos expor os gülenistas do Exército e os prenderemos com a mão na massa”. É preciso acrescentar uma pergunta a tudo isso: Por que Fidan e Akar continuam em seus postos um ano depois e não foram acusados, nem mesmo por negligência?

Por que os encarregados de capturar Erdogan foram incapazes de localizá-lo?

Esse é um dos episódios mais rocambolescos da noite do golpe. O presidente Erdogan estava de férias no Grande Yazici Club Turban de Marmaris (sudoeste da Turquia), algo que vários sites turcos informaram. Mas o grupo de 25 integrantes do Comando de Ataque Subaquático (SAT) que foi enviado com o objetivo de capturá-lo ou assassiná-lo não recebeu as coordenadas. E mais, quando chegaram ao local, às 3h da madrugada (21h de 15 de julho de Brasília) de 16 de julho, Erdogan já havia abandonado o hotel para pegar o avião presidencial em direção a Istambul. O próprio líder dos SAT reconheceu nos tribunais que a operação foi muito malfeita e se perguntou por que seus superiores a dirigiram assim.

O avião presidencial de Erdogan chegou a Istambul quase sem contratempos, apesar de ter sido localizado pelos caças F-16 dos golpistas. O relato oficial afirma que, apesar dos caças terem se mantido ao lado do avião durante parte do trajeto, o piloto presidencial os enganou mudando o código de seu avião pelo de um voo comercial da companhia aérea Turkish Airlines.

Por que o Governo e o Exército ignoraram as advertências dos serviços secretos?

Nos oito meses anteriores ao golpe de Estado os serviços turcos (MIT) informaram 14 vezes o Governo sobre supostas iniciativas golpistas dentro das Forças Armadas, e avisaram até mesmo sobre os oficiais que supostamente estavam envolvidos. Em março de 2016, diante da publicação de vários artigos na imprensa que ecoavam o ruído das espadas, o Estado Maior emitiu um duro comunicado desmentindo os rumores e pediu que se perseguissem os propagadores dos boatos.

Por que o Governo ignorou durante anos as advertências militares sobre os gülenistas?

Oficiais militares já haviam alertado anteriormente o Governo de Erdogan, pelo menos desde 2004, de que os gülenistas tinham “capacidade” suficiente para se infiltrarem em todas as instituições e propuseram “monitorá-los”. Erdogan se negou porque à época quem era um obstáculo aos islâmicos turcos era o Exército e não o grupo de Gülen, também islâmico e com quem se aliou para, mediante processos falsos como o Ergenekon e o Balyoz, acabar com as lideranças das Forças Armadas. “Eu o alertei: ‘hoje vêm atrás de nós, amanhã irão atrás de vocês’. Mas Erdogan me respondeu que eu estava exagerando”, explicaria mais tarde o ex-chefe do Estado Maior, Ilker Basbug, condenado em um desses julgamentos. Em janeiro de 2015 um relatório da inteligência militar alertava sobre a possibilidade de que oficiais gülenistas dessem um “golpe prematuro e imaturo” e alertou que os ajudantes do presidente Erdogan “deveriam ser trocados imediatamente” (agora, vários foram acusados como participantes da trama golpista). Mas à época também nada foi feito.

Existiu participação estrangeira no golpe?

A Turquia se incomoda com o que considera ter sido uma reação fraca de seus aliados ocidentais durante o golpe. E fica ainda mais irritada pelo fato da inteligência militar da OTAN ter adotado uma linha praticamente idêntica à mantida pelos gülenistas e acreditar que o 15-J foi um autogolpe orquestrado pelo próprio Erdogan. Em várias ocasiões os ministros turcos afirmaram que os serviços secretos ocidentais estiveram envolvidos no golpe. São especialmente apontados os laços de Gülen com certos membros da CIA (seu pedido de asilo nos EUA no final da década de 1990 foi patrocinado por dois ex-membros da agência de espionagem, George Fidas e Graham Fuller, e um ex-embaixador norte-americano, Morton Abramowitz) e outros serviços secretos ocidentais.

O Governo de Ancara também critica o fato de países europeus acolherem supostos envolvidos no complô. De acordo com seus números, 7.700 turcos pediram asilo na Alemanha após o golpe, dos quais um terço tem relações com a rede gülenista. Mais de 700 militares procurados pela Turquia se refugiaram em países estrangeiros, especialmente na Europa. Por exemplo na Grécia, onde a Justiça se posicionou contra a extradição dos supostos golpistas enquanto existir o risco de que sejam torturados em seu país de origem.

Por que quase não há acusados e expurgados entre o lado governista?

A oposição denuncia que as prisões e expurgos por ligação com o grupo gülenista estão em sua maioria entre os contrários ao Governo e quase não ocorreram nas fileiras da situação, apesar de ter sido justamente o partido governista AKP a ter maior colaboração com a rede do clérigo exilado (um número significativo de deputados de seu grupo parlamentar nos mandatos entre 2007 e 2015 eram gülenistas declarados). De fato, um dos militares acusados de liderar a sublevação, Mehmet Disli, é irmão de um dos dirigentes do AKP, Saban Disli. Os genros de duas importantes figuras dentro do partido – o prefeito de Istambul, Kadir Topbas, e o ex-presidente do Parlamento, Bülent Arinç – também estão sendo investigados por sua participação na estrutura gülenista, mas, ao contrário de outros, foram imediatamente colocados em liberdade.

Por que Erdogan disse que o golpe foi “um presente de Deus”?

Em sua primeira entrevista à imprensa uma vez derrotado o golpe, Erdogan afirmou que havia sido “um presente de Deus”, o que aumentou as suspeitas dos que veem sua mão por trás do complô. Certamente, nos meses seguintes, aproveitou a oportunidade da melhor maneira possível para reprimir a oposição e conseguir a aprovação de uma reforma constitucional que lhe dará maiores poderes. Reforma que, antes do golpe, não contava com o apoio parlamentar e popular necessário.

Apesar de ter se beneficiado do golpe, não significa exatamente que estivesse por trás dele. Shadi Hamid, autor do livro Islamic Exceptionalism, argumenta que, talvez, a resposta seja mais simples: “Erdogan acredita literalmente que [o golpe] foi um presente de Deus”, uma vez que sua fé no destino é inquebrantável. Há décadas vê cada ascensão nos degraus de sua carreira política como um voto de confiança do povo, mas também como parte de um plano divino onde ele próprio tem atribuído um papel primordial.

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