Excesso de confiança e nova variante fazem pandemia escapar ao controle na Índia
País asiático, que achava ter superado o pior da crise sanitária, bate diariamente recordes globais de contágios, com uma dupla mutação do vírus, potencialmente mais resistente a vacinas
A pandemia está fora de controle na Índia. O subcontinente vem há dias superando repetidamente o recorde mundial de contágios diários (352.991 na segunda-feira); os hospitais, especialmente os da capital, Nova Délhi, chegaram ao limite da sua capacidade, sem oxigênio suficiente para todos os pacientes necessitados, e o céu de algumas grandes cidades se encheu de fumaça por causa da cremação maciça de mortos pela covid-19. Além da situação crítica, os especialistas observam com preocupação uma variante que circula no país, com uma dupla mutação que torna o vírus potencialmente mais infeccioso e resistente às vacinas, algo que terá que continuar sendo estudado.
O segundo país mais populoso do mundo (1,37 bilhão de habitantes, 6,5 vezes o tamanho da população brasileira) passou praticamente incólume pela pandemia até o começo do segundo semestre de 2020, quando enfrentou uma primeira onda que atingiu seu pico em setembro, voltando a um novo mínimo em fevereiro deste ano. Quando algumas autoridades e cientistas do país consideravam que a crise sanitária estava controlada, uma nova onda começou a crescer, primeiro num ritmo suave, e depois descontroladamente. Na semana passada, a Índia somou 1,6 milhão de novos casos, e a incidência acumulada é de 274 infecções por 100.000 habitantes nos últimos 14 dias, segundo o My World in Data, um site da Universidade de Oxford que reúne dados sobre diversos assuntos. A última cifra de óbitos voltou a bater um recorde no país: 2.336 no domingo. E a tendência em todos os indicadores é crescente.
Os motivos que levaram a Índia a esse ponto, depois de ter enfrentado com relativo sucesso a primeira onda de infecções, são variados. Por um lado, muitos apontam uma falsa sensação de normalidade que levou a um relaxamento das restrições. “Estávamos em estado de negação. A nação está perdida”, afirma, de Mumbai, Swati Rane, enfermeira que trabalha em uma UTI.
“Fomos muito otimistas e baixamos a guarda”, concorda Lancelot Pinto, epidemiologista do Hospital Nacional Hinduja, na mesma cidade. “Se observamos os dados de janeiro, parecia que a covid-19 tinha desaparecido das nossas vidas. As aglomerações começaram de novo, tudo reabriu. Isso contribuiu em grande medida para a propagação do vírus”, observa.
“O segundo fator é que esta nova variante do vírus parece muito mais contagiosa”, prossegue o médico. Por enquanto essa é apenas uma hipótese muito plausível, baseada nas evidências disponíveis, mas ele estima que, enquanto na primeira onda cada indivíduo positivo contaminava cinco contatos próximos, agora essa proporção disparou: “Vemos famílias inteiras contagiadas”, aponta. Além disso, o epidemiologista ressalta as falhas das pesquisas científicas que sugeriam que o país estava relativamente próximo da imunidade coletiva depois da primeira onda, pois cerca de metade da população adulta das principais cidades já teria sido contaminada. “Estes estudos não prestavam atenção às diferenças de prevalência entre as favelas e os bairros mais desenvolvidos, onde quase não houve contágios, e que agora representam ao redor de 80% a 90% das infecções que chegam ao hospital.”
O médico alerta para outra causa: o colossal desafio da vacinação em um país como a Índia, “que não transcorre no ritmo desejado”. E a enfermeira acrescenta que, como se fosse pouco, “agora tem gente que vai se vacinar e se contagia na espera”. “O sistema sanitário indiano é um caos”, resume Rane. Cerca de 10% da população recebeu pelo menos uma dose da vacina, o que significa que ainda há mais de um bilhão de pessoas sem imunização.
Cientistas de todo o mundo observam com atenção a evolução do vírus na Índia e as características desta nova variante. Sua peculiaridade, explica Antonio López Guerrero, virologista e professor de Microbiologia no departamento de Biologia Molecular da Universidade Autônoma de Madri, é que ele combina duas mutações. “Parecem conferir ao vírus mais capacidade de transmissão e, talvez, resistência à imunização, seja natural ou mediante vacinação”, afirma. Isto é, em suas palavras, “preocupante, como todas as variantes”. “Alarmante? O suficiente para tentar que não se espalhe pela Europa, como já se viu na Alemanha, Reino Unido e alguns outros países”, comenta.
Opinião semelhante expressa Marcos López Hoyos, presidente da Sociedade Espanhola de Imunologia: “As vacinas podem perder certa percentagem de efetividade, mas não toda. A questão é que, por quanto mais tempo o vírus circular e quanto mais infecções houver, mais chances há de surgirem mutações que causem problemas”.
Fernando Simón, principal autoridade espanhola para o combate à pandemia, disse na segunda-feira que a principal preocupação envolvendo a Índia é o volume de infectados, e não tanto a variante, que, segundo ele, não demonstrou por enquanto ser mais contagiosa nem mais virulenta. Vários países europeus ―incluindo França, Países Baixos e Reino Unido ―já estão impondo restrições a passageiros procedentes do país, para evitar a entrada dessa variante.
Situação “angustiante”
Lancelot Pinto conta por telefone, durante um de seus escassos momentos de descanso, que a situação no hospital onde ele trabalha em Mumbai é “angustiante”, mas sem chegar ainda aos caóticos níveis vistos em Nova Délhi ou outras partes do país. “Está sendo estressante encontrar leitos para os pacientes, muitos tiveram que ser atendidos em casa”, observa. A enfermeira Rane é ainda mais pessimista. “O ano de 2020 foi caótico porque era algo novo, mas agora a situação está fora de controle. Nunca havia visto pacientes morrendo por falta de oxigênio. Ou pacientes levados para casa porque não há leitos nos hospitais”, lamenta, também de Mumbai, onde atualmente dirige uma consultoria de saúde.
Pinto diz que o cenário em sua cidade é relativamente “afortunado” em comparação a outras partes do país. “Há zonas onde é extremamente difícil ser internado porque não há leitos hospitalares. Advertiram-nos de que o suprimento de oxigênio pode se tornar um problema também aqui, e estamos tentando racionalizá-lo, mudar para concentradores de oxigênio… Estamos sendo muito precavidos”, acrescenta.
O Ministério da Saúde indiano pediu na segunda-feira aos governos estaduais que adotem um toque de recolher e fechem shoppings e outros estabelecimentos, além de restringir em 50% a ocupação dos escritórios, entre outras medidas para conter o vírus. “Os encontros sociais, de caráter político, esportivo, acadêmico, cultural e religioso, entre outras aglomerações, devem ser proibidos. Os casamentos devem contar com um máximo de 50 pessoas, e os funerais estão limitados a 20 participantes”, advertiu o ministério, pedindo que as medidas durem pelo menos 14 dias, conforme publica o jornal The Hindu.
O primeiro-ministro Narendra Modi pediu a todos os cidadãos que se vacinem e tomem precauções, mas foi muito criticado pela reação considerada tardia e por promover grandes comícios políticos sem respeitar as medidas de distanciamento, apesar dos crescentes contágios. A realização de uma eleição na segunda-feira que vem no Estado de Bengala Ocidental, mobilizando um eleitorado de 8,6 milhões de pessoas, também foi alvo de duras críticas.