Militares de Mianmar detém uma centena de blogueiros e artistas críticos ao regime
Um autonomeado Governo civil apresenta à ONU provas dos abusos do Exército após o golpe de Estado deste ano
A influencer Win Min Than se escondia com sua mãe num hotel da cidade mianmarense de Taunggyi (capital do Estado de Shan, no leste) quando uma patrulha das forças de segurança as flagrou, na noite de terça-feira. “Foram detidas por volta de oito da noite [hora local] e a levaram sozinha a Yangon [antes chamada de Rangum, a maior cidade de Mianmar, antiga Birmânia]”, conta de Taunggyi, por mensagem de texto, o seu amigo Hla Myat Tun. O nome da jovem está numa lista que inclui uma centena de artistas de várias disciplinas e blogueiros que a junta militar golpista de Mianmar acusa de “solapar a estabilidade” do país através de seu apoio às manifestações contra a quartelada de 1º de fevereiro.
A própria Win Min Than, entrevistada pelo EL PAÍS quando os primeiros protestos tomavam forma em Mianmar, há dois meses, deixou claro seu compromisso naquela ocasião. “Quero mostrar meu amor pelo país, não defender nenhum partido, mas sim manifestar pacificamente nosso rechaço à ditadura”, afirmou. A mulher tinha decidido promover uma mudança radical no seu perfil do Facebook, onde, com meio milhão de seguidores, se dedicava antes do golpe sobretudo a oferecer conselhos de moda. Nos últimos meses, passou a usá-lo para informar sobre a situação e estimular seus seguidores a participar das manifestações contra os militares. “Eles têm armas, nós não”, lamentava a ativista.
Desde que o regime militar foi reinstaurado, pelo menos 570 civis, incluídos quase meia centena de crianças e adolescentes, morreram vítimas da repressão das forças de segurança mianmarenses, segundo a Associação para a Assistência a Prisioneiros Políticos (AAPP). O grupo afirma também que foram detidas 2.728 pessoas, entre elas a líder do Governo civil deposto pelos generais, Aung San Suu Kyi. As famílias dos detidos denunciaram em alguns casos que não sabem onde esses ativistas se encontram. A mãe da blogueira foi posta em liberdade, mas desconhece o paradeiro de Win Min Than, segundo Hla Myat Tun.
A Junta militar, encabeçada pelo comandante-em-chefe das Forças Armadas, general Min Aung Hlaing, tem recorrido a velhas estratégias para perseguir seus oponentes. Numa espécie de caça às bruxas, nos últimos dias veículos de comunicação estatais como o The Global New Light of Myanmar e a TV Myawaddy divulgaram listas com os nomes dos atores, escritores, blogueiros e jornalistas apontados como desleais ao regime militar. São acusados de violar o artigo 505 do Código Penal ao “divulgar notícias que podem solapar a estabilidade do Estado”, o que resulta em penas de até três anos de prisão.
A família de Win Min Than ainda não recebeu notícias sobre as acusações contra ela, mas seu amigo Hla Myat Tun suspeita de que será acusada desse mesmo delito. O mesmo destino poderá recair sobre o humorista mais famoso do país, Zarganar ―nome artístico de Maung Thura―, também detido em sua casa em Yangon nesta terça-feira. O sexagenário comediante é um antigo adversário dos generais: em 1988, apoiou movimentos contra a Junta Militar da época (1962-2011) e por isso passou temporadas na prisão.
Sem internet
A Polícia e o Exército, enquanto isso, continuam detendo civis que participam dos protestos e dificultando cada vez mais a conexão com o exterior. O regime militar mandou as operadoras de telecomunicações cortarem o acesso à internet via celular ou wi-fi, deixando como única opção as escassas conexões através de fibra óptica. “Só posso me conectar à internet na casa da minha mãe”, conta, de lá mesmo, Hla Myat Tun. O jovem, na faixa dos 20 anos, lamenta que a violenta reação das Forças Armadas tenham feito os protestos perderem fôlego nos últimos dias. “Estou esperando para ver quais são os próximos planos para voltar à carga”, antecipa, já que o movimento de protesto e de desobediência civil continua, embora com estratégias mais simbólicas.
No domingo, os manifestantes pintaram ovos de Páscoa com mensagens contra a Junta Militar, e na segunda-feira espalharam tinta vermelha nas ruas de Yangon para recordar o banho de sangue perpetrado pelas forças de segurança. Porém, em zonas mais remotas a violência continua muito viva: a mídia local noticia que pelo menos oito manifestantes morreram e 20 ficaram feridos em protestos nesta quarta-feira na localidade de Kalay, na região de Sagaing (noroeste).
Paralelamente, a equipe jurídica do autodeclarado Governo civil de Mianmar (oficialmente, Comitê para a Representação da União Parlamentar, ou CRPH, na sigla em inglês), que se apresenta como a voz legítima do país e trabalha na clandestinidade contra os golpistas, aumenta sua ofensiva diplomática. Esse coletivo, formado por membros da Liga Nacional pela Democracia (NLD) ―o partido de Suu Kyi, vencedor das eleições de novembro, que foram declaradas fraudulentas pelos generais, servindo de pretexto para o golpe―, se reuniria nesta quarta-feira com investigadores da ONU para apresentar 180.000 provas de abusos cometidos pelo Exército desde a tomada do poder, segundo a agência Efe.
Os representantes jurídicos do CRPH ―do escritório Volterra Fietta, chefiado pelo espanhol Álvaro Nistal― se encontrariam com os responsáveis pelo Mecanismo de Investigação Independente para a Birmânia (IIMM, na sigla em inglês) para discutir as “atrocidades cometidas pelos militares” depois do golpe, disse em nota o doutor Sasa, nomeado pelo Governo civil como seu representante junto à ONU.
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