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Eleições em El Salvador colocam Nayib Bukele rumo ao poder absoluto

Tudo indica que o partido do midiático presidente arrasará no pleito parlamentar deste domingo, o que lhe permitirá controlar Legislativo e Judiciário e reformar a Constituição

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, durante uma entrevista coletiva em maio de 2020.
O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, durante uma entrevista coletiva em maio de 2020.José Cabezaas (Reuters)
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Nayib Bukele, o presidente mais jovem das Américas, não gosta das ruas, nem dos indígenas, nem de ir a mercados, nem de ser fotografado com bebês alheios. O mandatário de El Salvador, de 39 anos, gosta de seu celular, das pesquisas de imagem e de “executar, executar, executar”. Essas três coisas foram suficientes para que ele rompesse três décadas de bipartidarismo e transformasse drasticamente o cenário político de um país marcado pela herança de uma sangrenta guerra civil (1980-1992) que terminou quando ele tinha apenas 10 anos.

Para seu assessor e biógrafo Geovani Galeas, Bukele é um líder de múltiplas funções, capaz de administrar os destinos do povo a partir das telas de seu gabinete, com uma personalidade política comparável à de Fidel Castro ou Mao. Para sua ex-advogada e atual opositora Bertha Deleón, Bukele é “um adolescente com poder, incapaz de manter uma conversa sobre os assuntos mais importantes” sem “olhar constantemente seu telefone”. Entre as duas imagens, estão as máscaras e camisetas com seu rosto vendidas no centro de São Salvador por 12 dólares (67 reais) a unidade, que o pintam como um messias que inaugura hospitais e enfrenta os poderes sombrios da Assembleia. Todas as pesquisa apontam que seu partido Novas Ideias, que pela primeira vez apresenta candidatos a eleições, ganhará de goleada neste domingo e obterá o controle total do Legislativo.

Em apenas dois anos no poder, Bukele foi de político jovem a líder de uma espécie de telecracia moderna, um fenômeno social aplaudido em casa e criticado no exterior pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e por ONGs como a Humans Rights Watch, que considera que El Salvador caminha para se tornar “uma ditadura”. O novo Governo de Joe Biden nos EUA mantém distância de Bukele, mas em seu feudo o líder salvadorenho não tem rivais e acumula um dos índices de popularidade mais altos do continente, acima de 71%. Essa porcentagem revela uma habilidade que vai além de uma boa utilização do Twitter, e até seus adversários reconhecem algumas conquistas de sua gestão; entre elas, ter reduzido a violência a níveis raramente vistos no país e feito uma gestão da pandemia de coronavírus que combinou um confinamento estrito com ajudas diretas de 300 dólares (1.680 reais) à população.

Filho de pai muçulmano originário de Belém (Cisjordânia), que impulsionou a construção de algumas das primeiras mesquitas na América Latina, Bukele tem a política tão incorporada a ele quanto a publicidade. Parou de estudar Direito depois do primeiro ano e começou a trabalhar na agência de seu pai, que se encarregava da imagem do histórico partido de esquerda Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), ao mesmo tempo em que trabalhava como representante da marca Yamaha em El Salvador.

Nayib Bukele con su padre
Nayib Bukele com seu pai, Armando Bukele Kattán. CORTESÍA

Começou sua carreira política na FMLN, pela qual chegou a ser prefeito de São Salvador (2015-2018). Durante essa etapa, ficou conhecido como um gestor eficaz, capaz de recuperar o tenebroso centro da capital. Sua administração era acompanhada de frases como “temos de mudar a história” e “uma obra por dia”, até que, em 2016, teve sua primeira colisão com a democracia. Bukele ameaçou o procurador-geral, afirmando que o povo iria “tirá-lo do escritório” por convocá-lo a depor em um processo contra ele: estava sendo investigado por supostamente liderar um grupo de hackers que lançou ataques contra o jornal La Prensa Gráfica, e foi à audiência acompanhado por cerca de mil seguidores.

Naquela época, era apenas um prefeito de 34 anos com maiores aspirações, uma estrela emergente da política salvadorenha que crescia sobre as cinzas do bipartidarismo, mas alguns traços de sua forma de exercer o poder já estavam lá: seu repúdio aos demais poderes quando o contradizem, a realização de operações pouco claras para favorecer sua imagem e seu confronto com a imprensa. Nos dois anos de presidência, seus ataques ao jornalismo incluem não só veículos locais, como El Faro, Gatoencerrado e Factum, mas também externos, como a agência americana Associated Press. Suas críticas não têm se limitado aos mísseis em rede nacional contra a mídia independente, ele também impulsionou uma investigação por lavagem de dinheiro contra o El Faro pelas subvenções recebidas de doadores internacionais.

Ao terminar seu mandato como prefeito de São Salvador, entrou em confronto também com seu partido, que não o via como candidato presidencial. Para materializar suas ambições, não se importou em abandonar sua sigla e entrar na última hora em um partido, a Grande Aliança pela Unidade Nacional (GANA), que acumula uma série de casos de corrupção, mas que lhe proporcionou o registro eleitoral de que necessitava até poder formalizar legalmente seu partido Novas Ideias (NI). Durante aquela batalha com seu antigo partido, com a direita e com a imprensa, forjou sua imagem de rebelde idealista que deslumbrou os jovens.

Para explicar um crescimento tão rápido é necessário entender a podridão da qual ele surgiu, devido aos escândalos de corrupção que povoaram as últimas décadas da política salvadorenha e que terminaram com dois ex-presidentes presos e outro foragido, evidenciando a agonia do sistema partidário surgido da guerra. O publicitário criou frases como “devolvam o que roubaram”, transformadas em um eficaz slogan de campanha que seus seguidores repetem como um mantra em cada comício.

Nayib Bukele saluda
Bukele com Salvador Alas, conhecido como ‘La Choly’. CORTESÍA

Nos últimos anos, as redes sociais têm sido suas grandes aliadas. Através delas, Bukele demitiu ministros, supervisionou obras públicas, criticou a imprensa, anunciou seu casamento e mostrou a ultrassonografia de sua filha. Se a explicação precisa ser mais extensa, recorre ao Facebook Live. O próprio Bukele se definiu como “o presidente mais legal do mundo” em um país onde apenas 10,7% dos habitantes maiores de 18 anos têm Twitter, mas onde quase 40% acompanham pelas redes a vida política do país, segundo uma pesquisa do instituto LPG Datos encomendada pela Universidade Centro-americana (UCA). Ao efeito Bukele é preciso acrescentar a mudança geracional de um país em que a média de idade é de 29 anos e, segundo o cadastro eleitoral, quase metade dos salvadorenhos que poderão votar no domingo (48%) tem, em média, 38,9 anos: a mesma idade do presidente.

Bertha Deleón foi advogada de Bukele entre 2016 e 2019 em dois processos judiciais. Ela foi sua pessoa de confiança nos tribunais durante muitos anos, até que, em 9 de fevereiro de 2020, rompeu definitivamente com ele pelo WhatsApp: “Você estragou tudo”, escreveu em uma mensagem enviada ao celular pessoal do presidente quando ele entrou acompanhado por militares na Assembleia Legislativa para forçar os deputados a aprovar um empréstimo para o setor de segurança. “Ele visualizou [a mensagem] e nunca mais nos falamos”, diz Deleón, hoje candidata do partido Nosso Tempo. Aquele domingo de fevereiro foi um dos momentos decisivos da carreira política de Bukele e o sinal de alarme para a comunidade internacional, que desde então acompanha com lupa seus passos. “Superestimam minha capacidade de planejamento, eu faço o que acredito que tenho de fazer”, disse ao EL PAÍS naquela noite, dando a entender que “o povo” o levou até lá.

“Bukele tem um discurso de ódio em um país violento. É um homem brilhante no campo publicitário, porque não se pode esquecer que vem desse mundo”, assinala Deleón. A advogada descreve Nayib Bukele como “um sujeito viciado em pesquisas sobre sua imagem e sobre o que as ruas pensam, incapaz de manter uma conversa porque está constantemente olhando o telefone”. Uma das críticas mais duras de sua antiga colaboradora está relacionada ao desprezo do mandatário pelos acordos de paz que puseram fim a uma guerra civil que deixou 100.000 mortos, qualificados de “farsa” e assinados quando ele tinha dez anos. “Ele viveu em um berço de ouro, com uma infância protegida, e nunca sofreu com a guerra”, diz Deleón.

Sua origem privilegiada, seu discurso beligerante e sua pose cool não causam necessariamente um curto-circuito em sua imagem pública. São diferentes facetas que ele soube explorar. Bukele montou um modelo de telecracia moderna desprovida de ideologia para falar de eficácia. Acredita que com um telefone é possível governar um país, dizem seus assessores, e sabe que o melhor assessor de imprensa é ele mesmo. Bukele prefere falar pelo Instagram, usando o boné para trás, com o rapper René Residente a dar uma entrevista à CNN. Sua conta no Twitter serve para subir uma selfie tirada na Assembleia das Nações Unidas antes de falar diante de todos os líderes mundiais ou para divulgar fotos do interior de prisões com centenas de membros de gangues quase nus, algemados e aglomerados, para passar a imagem de líder inflexível com as gangues, o que lhe rende dividendos políticos.

Segundo o presidente, a queda da violência, que passou de 50 homicídios por 100.000 habitantes quando ele chegou ao poder para quase 19 atualmente, deve-se aos efeitos de seu Plano de Controle Territorial, que colocou o Exército em todos os cantos do país, e à linha dura exibida tanto nas ruas como nos presídios, autorizando as forças de segurança até mesmo a atirar para matar se for necessário. Segundo revelações do El Faro, essa pacificação se deve um pacto com as gangues, o que o mandatário nega.

Nayib Bukele con esposa e hija
O presidente com sua mulher e sua filha. CORTESÍA

Casado com Gabriela Rodríguez, psicóloga infantil com quem começou a namorar há uma década, quase todas as fontes consultadas concordam, no entanto, em apontar seus irmãos como as únicas pessoas em quem confia. Karim, Ibrajim e Yusef Bukele Ortez constituem o círculo de poder mais influente ao redor do presidente salvadorenho. São seus irmãos, filhos, como ele, do casal formado por Armando Bukele Kattán e Olga Ortez —4 dos 10 filhos de Bukele Kattán. Embora não tenham cargos públicos oficiais, várias fontes confirmam que são os principais estrategistas e os homens que falam ao ouvido do presidente.

“Não há ideologia, essa é uma colocação do século XX e Bukele é um presidente do século XXI”, argumenta Geovani Galeas, um de seus assessores, durante uma entrevista na capital do país. “O eixo ideológico de Bukele deixou de ser esquerda ou direita para ser ‘eles’, os 2% da população que concentram a riqueza, ou ‘nós’, os 98% da população prejudicados por 200 anos de corrupção”, acrescenta.

Galeas, autor de dois livros sobre Nayib Bukele, diz que, para o presidente, seu telefone é suficiente para governar sem precisar perder horas e horas em deslocamentos. Segundo o assessor, que descreve o gabinete de Bukele como uma mesa com várias telas na frente, a principal virtude do mandatário é ser multitarefa —ou seja, capaz de fazer várias coisas ao mesmo tempo— e o principal problema “será encontrar um substituto para ele”. Galeas compara o jovem líder com Fidel Castro ou Mao, na linha da teoria da personalidade relevante apontada nos velhos manuais comunistas.

Seu discurso cala fundo na população salvadorenha, que historicamente alimentou o fluxo migratório para os Estados Unidos com um êxodo de cidadãos que fogem da violência, da pobreza e da falta de oportunidades em seu país. No último ano, a porcentagem de salvadorenhos nas caravanas diminuiu devido, entre outras coisas, aos novos ventos que sopram no país e às medidas de Bukele para impedir a saída de migrantes, como a criação de uma patrulha fronteiriça, a detenção de supostos organizadores de caravanas e o envio de 16.000 pessoas para centros de internação por descumprir o confinamento obrigatório.

Quando Nayib Bukele formou seu novo Governo, em junho de 2019, trocou todos os ministros, menos um, Nelson Fuentes, titular da Fazenda. Fuentes descreve Bukele como um homem enfocado em “executar, executar e executar o orçamento para atender aos cidadãos o mais rápido possível e da melhor forma”. Em junho de 2020, um ano depois de se incorporar ao Governo, Fuentes deixou o cargo por supostas pressões do presidente para utilizar os cofres públicos contra seus inimigos políticos. “Um ministro sempre recebe pressões”, diz. “Em meados do ano passado, considerei que tínhamos visões distintas sobre como obter a estabilidade do país e achei que o melhor era ir embora”, esclarece ele a respeito de sua saída e da complicada situação das contas públicas, em decorrência da disparada dos gastos em meio à queda de 8% do PIB devido à pandemia. “Minhas preocupações são diferentes das do presidente. Foram momentos difíceis”, assinala Fuentes, na única entrevista concedida desde então a um veículo de comunicação.

Nayib Bukele candidatura presidencia de El Salvador
Bukele ao se registrar como candidato a presidente de El Salvador. CORTESÍA

Há dois anos, o telegênico Bukele obteve uma vitória esmagadora, que não precisou de segundo turno, ao derrotar a histórica FMLN, herdeira da guerrilha, que governara o país nos últimos oito anos. Desde então, governa enfrentando um Legislativo controlado pela oposição, situação que pode se reverter se seu partido Novas Ideias obtiver a vitória por ampla margem que as pesquisas preveem. Com isso, obteria o controle da Assembleia e, portanto, a possibilidade mudar a Constituição, a procuradoria ou a Justiça, poderes que atualmente estão fora do seu controle.

Bukele não está interessado em esconder suas ambições de poder, nem procura se mostrar simpático. Nas poucas vezes em que tentou, deixou uma estranha sensação de frivolidade, mais típica de um millennial do que de um chefe de Estado. Como no dia em que fez um vídeo em uma Ferrari em alta velocidade em um dos países mais pobres do continente. Ou quando enviou dezenas de ordens a seus subordinados e acabou ordenando também que a população fosse dormir. Ou, mais recentemente, quando mudou sua foto de perfil e colocou a de um pássaro para rebater os memes que zombavam de suas pernas finas. Em confiança, quando se sente à vontade, gosta de mostrar que antes de ser presidente teve uma casa noturna. Assim, quando quer agradar seu interlocutor, serve rum dando pequenas batidas na boca da garrafa, calculando o número de onças que deve servir como o velho barman que foi. É um dos poucos gestos amáveis reconhecidos pelas pessoas próximas dele.

Fã de games, amante do luxo e dos carros caros, Bukele tem conduzido sua vida pública sem precisar esclarecer se é católico, muçulmano ou evangélico, dizendo, simplesmente, que “acredita em Deus”. Foi precisamente Deus o recurso utilizado por Bukele para resolver o momento mais crítico de sua vida política, quando, naquele 9 de fevereiro de 2020, milhares de seus seguidores exigiam diante da Assembleia que ele tomasse à força o recinto legislativo. Bukele tinha recebido um telefonema da embaixada dos Estados Unidos pedindo-lhe prudência, mas, diante de seus partidários, não disse nada. Ficou em silêncio por alguns segundos, levantou o dedo e apontou para o céu como o lugar de onde vinha a ordem para a retirada. Depois de alguns minutos, a multidão enfurecida foi se acalmando até se retirar pacificamente do lugar. O publicitário tinha vencido novamente, e jurou se vingar neste domingo.

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