A intrigante via expressa de Israel para a vacinação contra a covid-19
Netanyahu aceita fornecer dados sanitários à Pfizer para conseguir imunizar mais de metade da população contra o coronavírus antes das eleições de março
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Israel partia com vantagem. É o laboratório perfeito para as farmacêuticas, o termômetro sanitário ideal para estudar a vacinação contra a covid-19. Com pouco mais de nove milhões de habitantes em um território estreito e bem comunicado, conta com um sólido sistema público de saúde, interconectado por uma base de dados que usa tecnologia de ponta. E por que não a Bélgica ou a Áustria, com população e características semelhantes? O Estado judaico, no qual morreram apenas 4.260 pessoas por causa do coronavírus, tem outras circunstâncias a seu favor. É um país isolado, com rigoroso controle de fronteiras, e sua população diversificada cria um cadinho de etnias.
Seus méritos são notáveis, mas como Israel conseguiu fechar acordos tão rápidos para receber 10 milhões de doses da vacina da Pfizer-BioNTech e outros seis milhões da Moderna, além de uma quantidade ainda não divulgada da AstraZeneca? Alguns acusam o Governo de usar seus cidadãos como cobaias num teste clínico de grande escala e de ter aceitado pagar ágio sobre o preço habitual das vacinas, numa luta para obtê-las antes dos outros. Contra esses argumentos, o Ministério da Saúde local alega que só cede aos laboratórios os dados gerais dos pacientes, sem identificá-los em nenhum caso.
A campanha de vacinação começou em 19 de dezembro, e o primeiro inoculado foi o premiê Benjamin Netanyahu, num afã de dar o exemplo e, de forma nada disfarçada, ganhar protagonismo. Desde então, mais de um quarto dos israelenses já recebeu pelo menos uma dose do imunizante da Pfizer-BioNTech. Cerca de 10%, incluindo idosos e indivíduos de grupos de risco, já tomaram também a segunda e última dose. Em percentual de população vacinada, Israel lidera a lista mundial elaborada pelo site Our World in Data, seguido por Emirados Árabes Unidos, Reino Unido e Estados Unidos.
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Clique aquiA capacidade tecnológica e logística do Estado judaico —que armazena até cinco milhões de dose sob condições ideais de refrigeração nas instalações do laboratório Teva, perto do aeroporto do Tel Aviv— lhe permitiu realizar uma operação-relâmpago em grande escala. Em plena terceira de onda da pandemia, o acelerado programa de vacinação já supera as 200.000 aplicações por dia. Nenhuma dose é desperdiçada em Israel. Grupos de jovens coordenados pelo WhatsApp fazem fila ao anoitecer em frente aos centros de imunização para se oferecerem como candidatos a receber a vacina da Pfizer que restam e estão prestes a perder a eficácia após passarem mais tempo que o recomendado fora da rigorosa cadeia de frio.
Com os israelenses confinados desde 26 de dezembro e até o próximo dia 31, o Executivo ordenou fechar o aeroporto Ben Gurion, em Tel Aviv, a partir de terça-feira para conter a entrada no país das novas cepas e variantes do coronavírus. Depois de começar a achatar o pico superior a 10.000 contágios diários (uma taxa de positividade superior a 10%), na semana passada, os cidadãos continuam comparecendo em massa a centros como o instalado no ginásio Arena de Jerusalém, que ampliou sua capacidade de acolhida com dezenas de postos com enfermeiros para atender a todos os cidadãos maiores de 35 anos. Depois de vacinar 80% dos cidadãos com mais de 60 anos, o programa se estendeu desde o fim de semana aos estudantes de 16 a 18 anos, para que possam prestar os exames de conclusão do ensino médio.
Foi justamente Netanyahu —que disputa em 23 de março a quarta eleição legislativa em Israel em menos de dois anos— quem revelou no começo do mês que o contrato com a Pfizer incluía a cessão de dados sanitários dos vacinados, para que em troca Israel tivesse preferência no fornecimento. “Israel vai se tornar um modelo para o mundo, uma experiência-piloto, e será o primeiro país a emergir do coronavírus”, vangloriou-se o primeiro-ministro, que tem concentrado quase toda a sua atividade pública no programa de vacinações. O confinamento interrompeu, enquanto isso, o julgamento por corrupção no qual o premiê é réu, e que deveria ter começado em janeiro num tribunal de Jerusalém.
Desconfiados por natureza após séculos de discriminação e perseguição contra os judeus, muitos israelenses começaram a temer pela segurança de seus dados médicos confidenciais nas mãos de uma multinacional farmacêutica. O Governo não teve opção senão divulgar as 20 páginas do contrato assinado com a Pfizer, nas quais se fala de um “acordo de colaboração para determinar com que percentagem de vacinação se alcança a imunidade coletiva”. A companhia alemã BioNTech fez constar que o objeto do contrato é “monitorar a evolução da pandemia com o passar do tempo em função de diferentes índices de vacinação”, mediante a cessão de dados epidemiológicos, como o número de casos confirmados, de pacientes hospitalizados ou submetidos a ventilação assistida, de falecidos pela covid-19 e variáveis de idade, gênero e demográficas.
Os parágrafos que fazem referência a aspectos comerciais foram encobertos antes da divulgação à imprensa. O preço pago é mantido em sigilo, embora a Pfizer tenha mencionado uma “tarifa escalonada em função do volume de compra e a rapidez na entrega”. Um alto funcionário israelense revelou à Reuters que seu Governo estava pagando “em torno de 30 dólares (164 reais) por dose”. É o dobro do que paga a União Europeia, segundo revelou um membro do Governo belga em dezembro.
O dilema sobre o rápido envio de vacinas a países ricos e com um sistema de saúde desenvolvido, frente à ausência de suprimentos para Estados pobres e sem os meios sanitários, é visível com absoluta clareza na Terra Santa, onde quase cinco milhões de palestinos ainda não puderam ser vacinados. A Autoridade Palestina, que assinou acordos com a AstraZeneca, espera começar a imunizar seus cidadãos nos próximos dias, após receber as primeira ampolas da vacina russa Sputnik V. A Organização Mundial da Saúde (OMS) espera poder proteger, ainda neste ano, 20% da população dos países com menor nível de desenvolvimento através do fundo Covax para o acesso global às vacinas.
“Dissemos à Pfizer e aos demais fabricantes que se formos um dos primeiros em fazer a vacinação eles terão resultados (em forma de dados) muito em breve”, declarou à imprensa israelense o ministro da Saúde do país, Yuli Edelstein. Houve uma tentativa de mitigar as preocupações éticas sobre a privacidade dos prontuários médicos dando garantias de que a informação pessoal só será entregue de forma desagregada e não identificada, para fins meramente estatísticos. O contrato determina que “caso os dados fornecidos revelem acidentalmente a identidade de um paciente, a Pfizer deve tratá-la de forma confidencial e devolvê-la ao sistema de saúde”. O contrato também obriga o laboratório a “abster-se de obter informação sobre os pacientes entre os dados que recebe”.
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